8. O PROCESSO VIRTUAL E A VÍTIMA NO ÂMBITO DO DIREITO PROCESSUAL PENAL
Atualmente, o processo não vem mais sendo visto como um simples instrumento à serviço do poder punitivo (direito penal), senão como filtro que desempenha o papel de limitador do jus puniendi estatal. Nesse particular, é importante observar que o respeito às garantias constitucionais fundamentais (due process of law) não se confunde com a impunidade, pois essa difícil missão do processo penal tem como pressuposto atender aos interesses de todas as partes envolvidas na sua tramitação, quer estejam elas no polo ativo ou passivo da relação processual, quer sejam auxiliares técnicos, como peritos e assistentes sociais, quer sirvam como fonte de prova para a descoberta da verdade, como é o caso da vítima e das testemunhas.
O processo penal é um instrumento judicial a serviço do Direito Penal, mas, antes de tudo, essencialmente a serviço da Constituição Federal. Assim, um processo penal que, desde logo, se apresente como despido de condições de possibilidade para gerar pena alguma é inconcebível. Por vezes, nos deparamos com processos penais que são apenas geradores de estigmatização e degradação dos acusados, bem como de fatores negativos à expectativa da vítima. Nesses casos, atuam como pena em si mesmo, causando não apenas ao imputado, mas sobretudo à vítima um mal desnecessário e injusto.
Tomando esse aspecto como tema para discussão, deve-se evitar dar ouvidos a sensacionalismos ou a notícias da imprensa e das redes sociais a respeito de hipóteses que envolvam suspeita de denunciação caluniosa. Um dos casos mais recente, que teve como acusado o jogador de futebol Daniel Alves, é um exemplo de que se deve ter muita cautela na divulgação e banalização dos fatos, antes do julgamento pelo Judiciário.
O Tribunal Superior de Justiça da Catalunha (Espanha), em um órgão colegiado, constituído por três juízas e um juiz, absolveu o atleta brasileiro, por unanimidade, sob o fundamento de que a decisão em primeira instância contém uma série de lacunas, imprecisões, inconsistências e contradições quanto aos fatos. E que não se pode concluir que as evidências ultrapassaram os padrões exigidos pela presunção de inocência.
Observe-se que, em determinado trecho do acórdão58 foi afirmado pelo Tribunal Superior de Justiça da Catalunha que “nos crimes sexuais o relato da denunciante, ainda que coerente e plausível, não é suficiente como prova para condenação. É necessário, além disso, que haja uma corroboração periférica, com base nas provas apresentadas no processo. No presente caso, contudo, as provas disponíveis não apenas não corroboram a hipótese acusatória, como também a colocam em dúvida em diversos aspectos e, em outros, há provas compatíveis com a versão do acusado.”
Muitas pessoas já foram alvo de acusações maledicentes, com base exclusiva no depoimento da vítima, sem a criteriosa análise da cadeia de custódia (art. 158-A, CPP) ou do standard probatório. Tais acusações só serviram para antecipar a formação de opiniões desfavoráveis a suas versões e defesas técnicas, em desabono ao princípio constitucional da presunção de inocência. No final do processo foram absolvidas, mas não conseguiram recuperar o mesmo conceito que tinham como pessoa honrada, empregos, reputações e status social. Sequer os canais informativos que propalavam a feroz acusação deram destaque à absolvição ou desmentiram a imputação dirigida ao acusado.
Ao longo dos tempos, o processo judicial sofreu diversas modificações que buscavam uma solução mais rápida, adequada e segura aos conflitos humanos. Em virtude disso, as constantes transformações da humanidade e sua forma de se relacionar vêm proporcionando as efetivas conquistas que se alcançam na evolução de sua tramitação, já que essas transformações exercem grande influência sobre todas as ciências e, consequentemente, sobre o direito que, como é sabido, integra as ciências sociais e regula a vida em sociedade.
Mas o processo não pode se modernizar apenas nas leis ou nas atitudes dos seus operadores. É indispensável dinamizar o seu desenvolvimento para tornar-se útil e necessário à sociedade. Por isso, cada vez mais é premente a necessidade de dotá-lo de ferramentas que o torne ágil e desburocratizado, não se conhecendo, no atual estágio da tecnologia digital, qualquer instrumento mais eficaz do que a informática, porque contribui satisfatoriamente para a entrega da prestação jurisdicional a custo zero, em curto espaço de tempo, sem os inconvenientes que os autos em papel geram.
A digitalização melhora a comunicação de atos em âmbito nacional e a defesa de interesses supraindividuais, proporcionando maior publicidade aos atos processuais, que agora estão disponíveis na rede mundial de computadores. Maior celeridade na medida em que os atos de cartório deixam de tomar o tempo das varas, menor valor das custas ou impostos uma vez que o processo eletrônico é mais barato e, principalmente, celeridade da resolução do conflito.
Sobre as importantes características do processo judicial digital, podemos destacar as mais significativas:
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Publicidade: com a adoção do processo judicial eletrônico, consegue-se satisfazer de forma plena o princípio constitucional da publicidade presente no art. 93, IX, da Constituição Federal Brasileira. Uma vez que os autos processuais estão disponíveis através da Internet, qualquer pessoa, de qualquer lugar do mundo, poderá ver a situação de um processo judicial, ler seu conteúdo na íntegra e fazer o dowload (desde que não se trate de um processo que tramite em segredo de justiça).O nível de publicidade disponibilizado a partir da adoção do processo digital, fornece automaticamente uma infinidade de economias: além da facilidade das partes e advogados no acompanhamento de processos, e do desafogamento dos cartórios (haja vista que a consulta a processos ocupa notoriamente grande parte do tempo dos serventuários), o Poder Judiciário tem mais facilidade para realizar seu ofício de fiscalização, posto que os corregedores não precisam se deslocar até a sede física dos juízos para fazerem correições ou fiscalizar a produtividade dos juízes togados, tornando assim o acompanhamento do trabalho dos magistrados algo dinâmico, frequente e habitual.
Velocidade: a tão condenada demora na prestação jurisdicional, talvez a maior crítica feita ao Poder Judiciário, será extremamente minimizada. Sabe-se que a maior parte do tempo gasto pelos serventuários da justiça justifica-se na prática de trabalhos manuais de organização e movimentação de processos. Com o processo digital, este encargo passa a ser praticamente inexistente e evitada a morosidade processual. Resta aos serventuários apenas alimentar o sistema com as informações a respeito da tramitação processual e armazenar documentos e objetos que venham a ser depositados em razão de um processo.
Comodidade: a completa informatização do processo judicial, evitará que as partes compareçam ao Cartório/Secretaria ou perguntem ao advogado como está o andamento de seus processos. Por sua vez, os advogados não precisam mais se dirigir aos Cartórios ou Secretaria da Vara para peticionar ou “fazer carga” dos processos (atividades que será extinta). De outra parte, os juízes não mais terão de levar processos para casa, caso desejem despachar ou sentenciar em seus lares. Através de um convênio bancário, o advogado poderá fazer o pagamento de custas, honorários periciais, consignações em pagamento, calculando e preenchendo um DARF on-line.59
Facilidade de acesso às informações (democratização das informações jurídicas): embora o princípio processual da publicidade seja indiscutível, na prática forense, sabe-se da dificuldade que pessoas que não compõem a lide têm para visualizar o conteúdo de um processo judicial. Com o processo digital, valendo-se da rede de Internet, estas informações tornam-se de facílimo acesso a qualquer pessoa, desde que disponham de um dispositivo denominado token (dispositivo USB) no qual será instalado um certificado digital que o habilitará a pesquisas em processos que não tramitem sob o segredo de justiça.
Diminuição do contato pessoal: em função da automação de várias atividades, bem como da não necessidade de comparecer em Cartório ou Secretária Judicial para outras funções, há uma diminuição do contato pessoal entre as partes e advogados e as pessoas que compõem o aparelho jurisdicional, sejam magistrados ou serventuários.
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Automação das rotinas e das decisões judiciais: em razão da utilização da informática, várias atividades tornar-se-ão automáticas, como por exemplo, a conclusão dos processos para despacho pela inteligência artificial e a intimação pelo próprio sistema virtual a partes e advogados cadastrados. Já discutimos o caso em que os advogados são intimados por e-mail, bem como a autuação do processo, que ocorrerá tão logo uma petição seja enviada pela Internet. Além disso, os próprios sistemas virtuais poderão montar cartas de citação/intimação, com informações totalmente corretas, evitando sua desnecessária digitação com o tradicional formato dos mandados judiciais.
Digitalização dos autos: trata-se de particularidade que se confunde com o próprio processo digital, sendo sua característica e requisito mais marcante. O que se espera do processo digital é que não mais haja a utilização desnecessária do meio físico, isto é, do papel. Documentos que venham a instruir os processos devem ser digitalizados com a utilização de scanners e comporem os autos eletrônicos, que ficaram guardados sob a chancela do tribunal.
Produtividade jurisdicional: com as ferramentas digitais disponíveis, a capacidade de produção jurisdicional é fantástica, haja vista que muitas atividades podem ser otimizadas com o auxílio da inteligência artificial, aprimorando-se a prestação dos serviços forenses, a identificação de processos pendentes de impulsionamento e o atingimento das metas anuais.
8.1. A importância da videoconferência para a situação da vítima no processo penal
Outros recursos, como a videoconferência, também podem ser amplamente utilizados no processo penal. A videoconferência já é utilizada em vários países como Alemanha, Austrália, Canadá, Cingapura, Chile, Espanha, França, Holanda, Índia, Itália, Reino Unido e Timor Leste. Nos Estados Unidos também é permitida a sua utilização como forma de garantir a coleta de depoimentos de crianças e adolescentes nos casos de violência sexual, evitando que o confronto em audiência com o acusado cause transtorno à vítima ou a testemunhas.
No Brasil, ela foi permitida, em casos excepcionais, conforme preceitua a Lei n.º 11.900, de 08/01/2009, que alterou o parágrafo segundo do artigo 185 do CPP. Ela foi integrada ao Código de Processo Penal Brasileiro como facilitadora dos procedimentos do devido processo legal.
Os casos em que ela pode ser utilizada são assim definidos, como dissemos, no § 2.º, do art. 185. do CPP:
I - prevenir risco à segurança pública, quando exista fundada suspeita de que o preso integre organização criminosa ou de que, por outra razão, possa fugir durante o deslocamento;
II - viabilizar a participação do réu no referido ato processual, quando haja relevante dificuldade para seu comparecimento em juízo, por enfermidade ou outra circunstância pessoal;
III - impedir a influência do réu no ânimo de testemunha ou da vítima, desde que não seja possível colher o depoimento destas por videoconferência, nos termos do art. 217. deste Código;
IV - responder à gravíssima questão de ordem pública.
Observa-se no item três, acima citado, que a videoconferência é muito importante para que a vítima não tenha seu estado anímico influenciado pelo acusado através do contato direto em audiência. O acusado pode querer intimidá-la ou constrangê-la na audiência de instrução e julgamento, utilizando-se do temor da vítima para favorecê-lo no resultado do processo criminal.
Por isso, observa-se que a videoconferência contribui consideravelmente para o andamento do processo criminal sem danos para a parte ofendida, já que diminui a interferência do acusado sobre a vítima na elucidação dos fatos.
Um dos objetivos primordiais da videoconferência, no caso em estudo, além de propiciar a participação das partes, acusação e defesa que estão em cidades ou lugares diferentes, é proteger a dignidade pessoal da vítima, a qual, ainda que não estivesse prevista na Constituição Federal, merece proteção do ordenamento jurídico, porque a proteção da dignidade humana importa no asseguramento da tutela estatal a todos os demais direitos e liberdades fundamentais do indivíduo, haja vista ser um atributo do ser humano que antecede a atividade normativa do legislador.
Sobre a sua utilidade, colhemos, na doutrina estrangeira, a lição de Juan Carlos Ortiz Pradillo60, segundo a qual a videoconferência é "como un sistema de comunicación a distancia capaz de transmitir, en tiempo real y a la vez, la imagen, el sonido y los datos, entre personas situadas en dos o más lugares distintos, a través de la línea telefônica, fibra óptica, o vía satélite. En cada punto de conexión se utiliza un equipo compuesto por un televisor o monitor de alta resolución capaz de reproducir la imagen y el sonido, y un equipo de transmisión, de modo que se establece entre los distintos grupos de partícipes una comunicación bidirecional plena en tiempo real de un acto al que asisten personas que se encuentran en lugares diferentes, como si dicho acto tuviere lugar en la misma sala."
O artigo 217 do CPP61 estabelece o uso da videoconferência, conforme se observa adiante:
“Se o juiz verificar que a presença do réu poderá causar humilhação, temor, ou sério constrangimento à testemunha ou ao ofendido, de modo que prejudique a verdade do depoimento, fará a inquirição por videoconferência e, somente na impossibilidade desta forma, determinará a retirada do réu, prosseguindo na inquirição, com a presença do seu defensor.” (VADE MECUM, RIEDEL EDITORA, 2009, p. 390).
Desse modo, é necessário ainda frisar que a vítima tem que ser poupada em certas situações que venham a afrontar sua integridade psicológica. Por isso, é de suma importância essa novidade trazida pelo Código de Processo Penal, permitindo à vítima prestar, através da videoconferência, seu depoimento sem o risco de ser maculada pela presença do acusado em audiência, tendo, assim, o Juiz uma convicção límpida e segura da prova produzida.
Com a implantação do processo judicial digital, sistema de informática que reproduz todo o procedimento judicial em meio eletrônico, substituindo o registro dos atos processuais realizados em papel, a justiça tende a tornar-se mais ágil e inserida nas redes sociais do mundo cibernético, o que constitui um avanço não só para o Judiciário, mas para sua própria sobrevivência, porque o aproxima cada vez mais de seus usuários e das novas ferramentas da tecnologia postas à disposição da sociedade.
A dogmática jurídica haverá, entretanto, de tratar cada hipótese com a especificidade que a realidade processual exigir. Essa tarefa deve ficar a cargo do Juiz condutor do processo, que poderá adotar a técnica da oitiva não apenas da vítima, mas também do acusado e das testemunhas por videoconferência sempre que entender ser essa a melhor fórmula para dar presteza, segurança jurídica e celeridade à tramitação processual.
Porém, o magistrado não deve descurar o dever de, sempre que possível, proceder a todos esses atos instrutórios na forma presencial tradicional, pois, a despeito dos avanços da modernidade tecnológica da informática, o princípio do devido processo legal impõe ao julgador certa dose de cautela e prudência para não prejudicar a isenta e transparente produção da prova, mediante a resolução definitiva do julgamento do mérito do processo.