Sumário: 1. Introdução - 2. Sintéticas considerações sobre prova ilícita - 3. A descontaminação do julgado - 4. O vetado § 4º do art. 157 da nova Lei 11.690/ 2008 - 5. Conclusão - 6. Referências.
Palavras- chave: prova ilícita – descontaminação do julgado – veto ao § 4º do art. 157 da nova Lei 11.690/ 2008–declaração de ofício de suspeição por motivo íntimo.
Resumo: este artigo pretende, após brevíssimas considerações em torno do tema provas ilícitas, apresentar a teoria da descontaminação do julgado e comentar o inoportuno veto ao § 4º do art. 157 da nova Lei 11.690/ 2008.
1. Introdução
A Lei 11.690, de 10 de junho de 2008, dentre outras tantas novidades, acrescentaria ao art. 157 do Código de Processo Penal (CPP) o §4º. No referido dispositivo legal, previa-se importante inovação na temática de prova ilícita: a descontaminação do julgado. Ocorre que, conforme já anunciado no título deste artigo, o dispositivo foi vetado. Pretende-se, assim, fazer uma crítica ao veto e sugerir um modo de descontaminação, segundo as normas dispostas no sistema processual.
2. Sintéticas considerações sobre prova ilícita
Segundo o disposto no art. 5º, LVI, da Constituição Federal (CF), "são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos". Prevendo o direito fundamental à inadmissibilidade de provas obtidas por meios ilícitos, pretende-se, por via reflexa, a proteção de outros direitos fundamentais, como, por exemplo, o direito à privacidade, à intimidade, à vida privada (art. 5º, X), à inviolabilidade domiciliar (art. 5º, XI), à intangibilidade corpórea (vedação à tortura) (art. 5º, III), ao sigilo de correspondência, de dados, das comunicações telegráficas e, em regra, das comunicações telefônicas [01] (art. 5º, XII) etc.
Quanto ao conceito de prova obtida por meio ilícito, acesas controvérsias existem em sede doutrinária [02], muito em razão de o legislador ter sido omisso quanto ao tema. Entende-se, contudo, majoritariamente, que prova ilícita e prova ilegítima são espécies do gênero prova ilegal. Prova ilegal é aquela obtida ao sacrifício do Direito, seja material (prova ilícita), seja processual (prova ilegítima), enfim, por violação à lei [03].
Posto isto, pode-se conceituar prova ilícita como aquela conseguida por meio de expedientes contrários ao direito material. Tem-se, como exemplo, no processo penal, a confissão arrancada a fórceps por tortura. Ou, no processo civil, a prova documental obtida mediante a violação de sigilo profissional.
Deve-se anotar, ainda, que, de acordo com a teoria dos frutos da árvore envenenada (fruits of the poisonous tree), sobre as provas derivadas efetivamente das provas ilícitas também recai a pecha da ilegalidade, sendo, por isso, igualmente inadmissíveis no processo [04]. A matéria ganha regulamentação com nova Lei 11.690/2008 (ver art. 157 e parágrafos).
Vem se admitindo, noutro contexto, a prova obtida ilicitamente quando aquele que a produz o faz amparado por alguma causa de exclusão de ilicitude da conduta, a exemplo do estado de necessidade ou legítima defesa. Nesse caso, a prova ilícita é convalidada, sendo plenamente válida no processo e podendo influenciar na convicção do magistrado [05].
No que toca ao uso excepcional da prova ilícita por invocação da proporcionalidade, razoabilidade ou proibição de excesso, tendo em mira que nenhum direito é absoluto (com exceção da proibição de tortura [06]) e a força que têm as circunstâncias singulares do caso, o Supremo Tribunal Federal (STF) a admite, mas, com muita razão, com bastantes restrições [07].
Traçado este panorama geral sobre as provas ilícitas, encerrasse-se este ponto, citando-se, com as vênias de estilo, o magistério jurisprudencial do Ministro do STF Celso de Mello, que guarda muita pertinência com tudo que acabou de ser dito:
A ação persecutória do Estado, qualquer que seja a instância de poder perante a qual se instaure, para revestir-se de legitimidade, não pode apoiar-se em elementos probatórios ilicitamente obtidos, sob pena de ofensa à garantia constitucional do due process of law, que tem, no dogma da inadmissibilidade das provas ilícitas, uma de suas mais expressivas projeções concretizadoras no plano do nosso sistema de direito positivo. A Exclusionary Rule consagrada pela jurisprudência da Suprema Corte dos Estados Unidos da América como limitação ao poder do Estado de produzir prova em sede processual penal. A Constituição da República, em norma revestida de conteúdo vedatório (CF, art. 5º, LVI), desautoriza, por incompatível com os postulados que regem uma sociedade fundada em bases democráticas (CF, art. 1º), qualquer prova cuja obtenção, pelo Poder Público, derive de transgressão a cláusulas de ordem constitucional, repelindo, por isso mesmo, quaisquer elementos probatórios que resultem de violação do direito material (ou, até mesmo, do direito processual), não prevalecendo, em conseqüência, no ordenamento normativo brasileiro, em matéria de atividade probatória, a fórmula autoritária do male captum, bene retentum. Doutrina. Precedentes [08].
3. A descontaminação do julgado
Quando se alude à descontaminação do julgado, quer-se referir a um mecanismo processual que torne possível o julgamento da demanda por outro juiz que não aquele que conheceu da prova tida, posteriormente, como ilícita. Em outros termos, trata-se de impedir que o juiz que conheceu de prova ilícita julgue a causa, porquanto, ainda que não queira, poderá ser influenciado pelo conteúdo do material probatório ilícito conhecido.
Não há, pela própria condição humana, pelas próprias características que revestem qualquer tipo de interpretação, como garantir-se, no caso, uma pretensa imparcialidade. Ainda que o magistrado tente a todo custo mantê-la, poderá contrariar inconscientemente todo o conjunto probatório válido apenas para poder emitir um juízo de procedência.
Imagine-se, por exemplo [09], uma ação ajuizada por uma mulher contra o ex-marido pedindo indenização pelos danos extrapatrimoniais causadas em virtude de espancamentos e tortura psicológica sofridos por ela durante o casamento. Tendo tudo ocorrido há anos, a prova dos espancamentos torna-se de difícil obtenção e a tortura psicológica só é provada por uma testemunha, a empregada doméstica que até hoje trabalha com a mulher, não tendo a perícia médica chegado a qualquer conclusão definitiva. Até que a mulher junta gravações ambientais entre ela e o ex-marido em que fica amplamente comprovado tudo que se disse. Porém, após o conhecimento da prova pelo magistrado, alega o ex-marido que a mulher que fala na gravação não é a autora, pedindo, por conseguinte, que a prova seja tida como ilícita, já que feita por quem não participou da conversa. O juiz ordena perícia, que conclui positivamente ao réu. O magistrado, então, afasta a prova do processo, em face de sua constatada ilicitude.
Pergunta-se: seria possível ele, o juiz, julgar, ainda que inconscientemente, desconsiderando o que ele ouviu na gravação? Será que toda a confissão do ex-marido na conversa, narrando à outra pessoa em detalhes todo o mal que fez à ex-mulher conseguiria ser desconsiderado? Pode-se afirmar que a condenação poderia se fundar exclusivamente na prova testemunhal. Mas será que o juiz condenaria com base somente no depoimento da empregada se não tivesse conhecimento da gravação? E se não houvesse depoimento da testemunha, seria sadio para o juiz prolatar uma sentença sabidamente injusta? Ou, melhor ainda, ele não buscaria, no caso, ainda que de forma inconsciente, uma sentença de procedência?
Nesse sentido são as lições de Marinoni e Arenhart:
Não se quer dizer, note-se bem, que o juiz que se baseou na prova ilícita irá buscar uma sentença de procedência a qualquer custo, ainda que inexistam outras provas válidas, mas apenas que a valoração dessas outras provas dificilmente se livrará do conhecimento obtido através da prova ilícita.
Trata-se de situação que é peculiar à natureza humana, e assim algo que deve ser identificado para que a descontaminação do julgado seja plena ou para que a sua descontaminação pelo tribunal elimine- ou previna- qualquer possibilidade de infecção posterior. Portanto, se o tribunal decide que uma das provas que a sentença se baseou é ilícita, o julgamento de primeiro grau deverá ser feito por outro juiz, que não aquele que proferiu a decisão anterior. [10]
Por tudo isso que se faz prudente encontrar meios de se descontaminar o julgado, dando a outro juiz a atribuição de julgar aquela causa que teve prova ilícita afastada. Acreditávamos- e, com o veto, continuamos a acreditar- que isso poderia ser feito mediante a declaração de ofício da suspeição do juiz por motivo íntimo, com fundamento no art. 135, parágrafo único, do Código de Processo Civil, ou nos arts. 97 e 112 do CPP.
4. O vetado § 4º do art. 157 da nova Lei 11.690/ 2008
O vetado § 4º do art. 157 da nova Lei 11.690/ 2008 dispunha que "o juiz que conhecer do conteúdo da prova declarada inadmissível não poderá proferir a sentença ou acórdão".
Ia se consagrar, pois, no direito positivo, a teoria da descontaminação do julgado. Mas, como já dito, o referido dispositivo foi vetado. O veto se fundamenta, resumidamente, no descompasso existente entre o quanto previsto no §4º e os sentimentos que nortearam a criação da Lei 11.690/2008, que busca dar mais celeridade aos julgamentos. Alega-se que o tempo exigido para que o juiz substituto tomasse conhecimento de toda a instrução processual seria prejudicial à celeridade almejada.
Perdeu-se, assim, a oportunidade de inserir no sistema norma de mais alto valor, que, com certeza, espraiaria seus efeitos para além do processo penal, visto tratar de tema comum ao processo como um todo. Afinal, onde há as mesmas razões de fato, deve haver, também e necessariamente, quando inexistente lei específica, as mesmas razões de direito, sendo de rigor aplicar-se analogicamente [11] o novo dispositivo também ao processo civil e ao processo administrativo.
Mais uma vez, valores caros à ordem constitucional- julgamentos imparciais e justos- são sacrificados pelo utilitarismo e por imposição de circunstâncias não jurídicas. Toda a atividade do legislador atualmente é guiada pela celeridade que se deve imprimir à prestação jurisdicional e à atividade judiciária, o que é bem-vindo desde que não tenha como preço – alto, que se diga- a desconsideração de princípios estruturantes e garantísticos do sistema normativo de um Estado que é Constitucional. Torna-se ainda pertinente, nesse sentido, o que já se disse em outra oportunidade. À época que proferidas, as seguintes palavras foram direcionadas contra os julgadores da jurisprudência defensiva, mas encontram felizes destinatários naqueles que alçam a celeridade à categoria suprema de objetivo maior a ser alcançado pelo Estado:
É sabido por todos que o Poder Judiciário encontra-se assoberbado, tendo que apreciar uma quantidade de demandas muito acima do que sua estrutura pode suportar. Não bastasse, os recursos financeiros disponíveis não são suficientes para satisfazer as necessidades da Justiça. Ocorre que tal situação, em essência política, não pode dar ensejo à denegação da justiça, sob pena de desvincular o sistema de seu fim maior: a pacificação social com a realização do direito material in concreto [12].
Em face disso, continua se sustentando a posição de que, quando o julgado estiver contaminado, ou seja, quando o juiz que conheceu da prova declarada ilícita tiver que prolatar sentença, a saída para um julgamento mais imparcial e justo será a declaração de ofício pelo magistrado de sua suspeição por motivo íntimo, seja no processo penal, seja no processo civil, ou ainda administrativo.
5. Conclusão
Diante do exposto, conclui-se que o veto ao § 4º do art. 157 da nova Lei 11.690/ 2008 foi inoportuno, por tudo que de importante acrescentaria à temática da prova ilícita e à justiça nas decisões, que se pretendem imparciais, subsistindo, ainda assim, um modo de realizar a descontaminação do julgado, vale dizer, a declaração de ofício de suspeição por motivo íntimo pelo magistrado que conheceu de prova posteriormente julgada ilícita e desentranhada dos autos do processo.
6. Referências
MARINONI, Luiz Guilherme e ARENHART, Sérgio Cruz. Manual de Processo de Conhecimento. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007.
MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 14. ed. São Paulo: Atlas, 2003.
NADER, Paulo. Introdução ao estudo do direito. 23. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2003.
NERY JUNIOR, Nelson. Princípios do Processo Civil na Constituição Federal. 6. ed. São Paulo: RT, 2000.
OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de Processo Penal. 8. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007.
SILVA, Ticiano Alves. Para além de uma aplicação tradicional do princípio da fungibilidade: possibilidade de conhecimento do ato "intempestivo" no caso de existência de dúvida fundada sobre a natureza do prazo de art. 2°, caput, da Lei 9.800/99. Revista de Processo. Ano 32, n. 150, agosto de 2007. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007.
______. DANTAS, Rodrigo Tourinho; MASCARENHAS, Oacir Silva; RIBEIRO, Daniel Leite. Manifesto Contra Lei de Tortura dos EUA. Revista Jurídica dos Formandos em Direito da UCSal 2006.2. Ano I, n. I. nov./dez. de 2006.
Notas
01 Diz-se "em regra" porque a própria Constituição admite, em determinados casos (investigação criminal ou instrução processual penal) e preenchidos determinados requisitos (por ordem judicial etc.), a violação do sigilo telefônico.
02 Sobre isso, conferir NERY JUNIOR, Nelson. Princípios do Processo Civil na Constituição Federal. 6. ed. São Paulo: RT, 2000. p. 157
03 Por todos, ver OLIVEIRA, Eugênio Pacelli. Curso de Processo Penal. 8. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. p. 309. Conferir, também, na doutrina constitucional, MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 14. ed. São Paulo: Atlas, 2003. p. 126.
04 "Fruits of the poisonous tree. (...) Assentou, ainda, que a ilicitude da interceptação telefônica — à falta da lei que, nos termos do referido dispositivo, venha a discipliná-la e viabilizá-la — contamina outros elementos probatórios eventualmente coligidos, oriundos, direta ou indiretamente, das informações obtidas na escuta." STF, HC 73.351, Rel. Min. Ilmar Galvão, julgamento em 9 5-96, DJ de 19-3-99.
05 "Utilização de gravação de conversa telefônica feita por terceiro com a autorização de um dos interlocutores sem o conhecimento do outro quando há, para essa utilização, excludente da antijuridicidade. Afastada a ilicitude de tal conduta — a de, por legítima defesa, fazer gravar e divulgar conversa telefônica ainda que não haja o conhecimento do terceiro que está praticando crime —, é ela, por via de conseqüência, lícita e, também conseqüentemente, essa gravação não pode ser tida como prova ilícita, para invocar-se o artigo 5º, LVI, da Constituição com fundamento em que houve violação da intimidade (art. 5º, X, da Carta Magna)." STF, HC 74.678, Rel. Min. Moreira Alves, julgamento em 10-6-97, DJ de 15-8-97.
06 Nesse sentido, conferir: SILVA, Ticiano Alves; DANTAS, Rodrigo Tourinho; MASCARENHAS, Oacir Silva; RIBEIRO, Daniel Leite. Manifesto Contra Lei de Tortura dos EUA. Revista Jurídica dos Formandos em Direito da UCSal 2006.2. Ano I, n. I. nov./dez. de 2006.
07 "Da explícita proscrição da prova ilícita, sem distinções quanto ao crime objeto do processo (CF, art. 5º, LVI), resulta a prevalência da garantia nela estabelecida sobre o interesse na busca, a qualquer custo, da verdade real no processo: conseqüente impertinência de apelar-se ao princípio da proporcionalidade — à luz de teorias estrangeiras inadequadas à ordem constitucional brasileira — para sobrepor, à vedação constitucional da admissão da prova ilícita, considerações sobre a gravidade da infração penal objeto da investigação ou da imputação." STF, HC 80.949, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, julgamento em 30-10-01, DJ de 14-12-01.
08 STF, HC 82.788, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 12-4-05, DJ de 2-6-06.
09 O exemplo dado é intencionalmente de natureza cível, a se demonstrar a pertinência do tema também para outros processos, que não o penal. Além disso, parece claro que o exemplo dado repercute também na esfera criminal, a comprovar mais uma vez a comunicação existente entre processo e direito, e a constante alimentação feita por este àquele.
10 MARINONI, Luiz Guilherme e ARENHART, Sérgio Cruz. Manual de Processo de Conhecimento. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. p. 401. Rendem-se, aqui, loas aos citados processualistas por serem os únicos autores de obras gerais de processo civil a cuidarem do assunto.
11 Conforme ensina Paulo Nader, "a analogia é um recurso técnico que consiste em se aplicar, a uma mesma hipótese não prevista pelo legislador, a solução por ele apresentada para um caso fundamentalmente semelhante à não prevista". NADER, Paulo. Introdução ao estudo do direito. 23. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2003. p. 188.
12 SILVA, Ticiano Alves. Para além de uma aplicação tradicional do princípio da fungibilidade: possibilidade de conhecimento do ato "intempestivo" no caso de existência de dúvida fundada sobre a natureza do prazo de art. 2°, caput, da Lei 9.800/99. Revista de Processo. Ano 32, n. 150, agosto de 2007. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007.