5. A valorização da resistência cultural: uma questão de justiça social
A judicialização de conflitos envolvendo práticas culturais afrodescendentes deve ser compreendida como parte de um movimento mais amplo de resistência simbólica e afirmação de identidades coletivas historicamente marginalizadas. No Brasil, a trajetória das religiões de matriz africana e das práticas culturais a elas vinculadas — como é o caso do ofício das baianas de acarajé — revela uma luta constante por reconhecimento, dignidade e respeito no espaço público. A atuação da Associação Nacional das Baianas de Acarajé (ABAM), ao recorrer ao Poder Judiciário para a defesa de seus direitos, representa a materialização daquilo que José Geraldo de Sousa Junior (2010) denomina de "direito achado na rua": um direito que emerge das vivências e da resistência cotidiana de sujeitos historicamente excluídos.
A Constituição Federal de 1988 incorporou de maneira inédita os direitos culturais como parte integrante dos direitos fundamentais, reconhecendo expressamente o dever do Estado de proteger e valorizar as manifestações culturais dos diversos grupos formadores da sociedade brasileira (art. 215, caput e §1º). Além disso, o artigo 23, inciso V, estabelece a competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios para proteger os bens de valor histórico, artístico e cultural. Esses dispositivos conferem base normativa para o exercício da cidadania cultural, entendida como o direito de produzir, preservar, praticar e transmitir os saberes e expressões que compõem a identidade de um povo.
No entanto, o reconhecimento formal não tem sido suficiente para garantir o respeito pleno às tradições afro-brasileiras. Muitas vezes, a patrimonialização de uma prática cultural — como no caso do registro do ofício das baianas de acarajé pelo IPHAN — convive com situações de exploração econômica, deslegitimação simbólica e apagamento religioso. Diante disso, a judicialização surge como uma estratégia de resistência e de reafirmação da autonomia cultural das comunidades tradicionais, funcionando como instrumento de acesso à justiça e de reparação histórica.
Nesse sentido, a doutrina contemporânea aponta para a necessidade de se compreender os direitos culturais como direitos fundamentais de terceira geração, voltados à proteção da diversidade, da solidariedade e da dignidade coletiva. Canotilho (2003) observa que a proteção à identidade cultural deve ser pensada em articulação com os princípios da igualdade material e da não discriminação, especialmente quando se trata de grupos que historicamente sofreram violência epistêmica, simbólica e econômica.
A atuação das baianas de acarajé, portanto, não se limita à manutenção de um ofício tradicional. Ela representa uma forma de resistência política, cultural e espiritual diante de estruturas sociais que ainda hoje reproduzem desigualdades raciais e religiosas. Como destaca Regina Abreu (2003), o processo de patrimonialização cultural deve ser compreendido não apenas como reconhecimento estatal, mas como validação pública da dignidade de grupos sociais invisibilizados, fortalecendo sua presença e participação na construção da memória coletiva.
Dessa forma, valorizar juridicamente a resistência cultural afro-brasileira é também um imperativo de justiça social. Implica reconhecer que a cultura é um campo de disputa e de poder, no qual o direito deve atuar como ferramenta de proteção, reparação e promoção da pluralidade. A defesa do acarajé e do ofício das baianas, nesse contexto, simboliza muito mais do que a preservação de uma receita: representa a defesa do direito de existir, de resistir e de narrar a própria história a partir de um lugar de fala legítimo e respeitado.
Nos termos da Constituição de 1988 e dos compromissos internacionais assumidos pelo Brasil, o Estado e a sociedade civil têm o dever jurídico e ético de proteger as expressões culturais afrodescendentes, garantindo não apenas sua permanência formal, mas a integridade simbólica e material que lhes é devida.
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A análise desenvolvida ao longo deste artigo permitiu compreender que a apropriação cultural, embora ainda carente de regulamentação específica no ordenamento jurídico brasileiro, encontra respaldo normativo suficiente para ser enfrentada sob a perspectiva dos direitos fundamentais. A proteção ao patrimônio imaterial, a liberdade religiosa, a dignidade da pessoa humana e a igualdade material são princípios constitucionais que permitem a construção de respostas jurídicas adequadas diante da exploração simbólica de expressões culturais tradicionalmente marginalizadas.
O caso do acarajé e a atuação da Associação Nacional das Baianas de Acarajé (ABAM) ilustram, com clareza, como práticas culturais afro-brasileiras são cotidianamente submetidas a processos de esvaziamento simbólico e exploração comercial descontextualizada. A comercialização do acarajé por redes de padarias e supermercados sem vínculo com sua tradição, bem como a ressignificação religiosa promovida pelo uso da expressão “bolinho de Jesus”, representam formas de apropriação que fragilizam a identidade cultural de comunidades tradicionais e comprometem sua autonomia simbólica e econômica.
Ao judicializar essas situações, a ABAM não apenas reivindica proteção patrimonial ou reparação material, mas exige o reconhecimento jurídico de sua história, de sua espiritualidade e de sua contribuição à formação da identidade nacional. A atuação judicial nesse campo revela-se, portanto, como ferramenta legítima de resistência e de afirmação de direitos culturais, conforme previsto nos artigos 215 e 216 da Constituição Federal.
Para além das demandas específicas analisadas, este artigo defende que é necessário avançar na construção de uma doutrina e de uma jurisprudência mais sensível à diversidade cultural brasileira, que reconheça o pluralismo como valor fundante do Estado e promova o equilíbrio entre os direitos individuais e os direitos coletivos de identidade e memória. Isso requer uma atuação ativa do Poder Público, da sociedade civil e das instituições do sistema de justiça na valorização das culturas tradicionais e na prevenção de práticas que reforcem estigmas ou desigualdades estruturais.
Em suma, proteger juridicamente o acarajé e o ofício das baianas é mais do que preservar uma tradição: é assegurar o direito à diferença, à expressão religiosa e ao pertencimento cultural em uma sociedade plural e democrática. Trata-se, portanto, de uma questão de justiça social e de efetivação dos direitos humanos no Brasil contemporâneo.
REFERÊNCIAS
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Abstract: This article analyzes the concept of cultural appropriation from the perspective of the Brazilian legal system, focusing on the lawsuits filed by the National Association of Acarajé Vendors (ABAM) against establishments that commercialize acarajé without respecting its cultural and religious significance. The research begins with the historical context of acarajé as intangible heritage of Afro-Brazilian culture, highlighting its origin in Candomblé rituals and the struggle for recognition of the baianas de acarajé. Subsequently, the article discusses cultural appropriation within the scope of Brazilian law and, finally, analyzes the case of the so-called "bolinho de fogo" and the improper use of the expression "bolinho de Jesus" by evangelical religious groups, in contrast to the Afro-religious tradition. It concludes that, although the Brazilian legal framework contains mechanisms for the protection of cultural heritage, there are still gaps in holding individuals accountable in cases of cultural appropriation.
Key words : cultural appropriation; acarajé; cultural heritage; cultural rights; Afro-Brazilian identity.