Resumo: Este artigo analisa o conceito de apropriação cultural sob a perspectiva do ordenamento jurídico brasileiro, tendo como objeto central as ações judiciais movidas pela Associação Nacional das Baianas de Acarajé (ABAM) contra estabelecimentos que comercializam o acarajé sem respeito à sua representatividade cultural e religiosa. A pesquisa parte do contexto histórico do acarajé como patrimônio imaterial da cultura afro-brasileira, destacando sua origem nos rituais do candomblé e a luta por reconhecimento das baianas de acarajé. Em seguida, discute-se a apropriação cultural no âmbito do direito brasileiro e, por fim, analisa-se o caso do “bolinho de fogo” e o uso indevido da expressão “bolinho de Jesus” por grupos religiosos evangélicos, em confronto com a tradição afro-religiosa. Conclui-se que, embora o ordenamento jurídico brasileiro possua mecanismos de proteção ao patrimônio cultural, ainda há lacunas quanto à responsabilização em casos de apropriação cultural.
Palavras-chave: apropriação cultural; acarajé; patrimônio cultural; direito cultural; identidade afro-brasileira.
1. INTRODUÇÃO
A cultura afro-brasileira ocupa um lugar central na construção da identidade nacional, não apenas por sua riqueza simbólica, mas também por sua trajetória de resistência diante da opressão histórica e da marginalização social. Entre os diversos elementos que compõem esse patrimônio cultural, o acarajé se destaca como uma expressão culinária de profunda relevância religiosa e histórica, enraizada nos saberes tradicionais das mulheres negras que, ao longo dos séculos, preservaram e transmitiram práticas originárias do continente africano.
Mais do que um alimento típico, o acarajé representa um elo vivo entre o passado ancestral e o presente urbano brasileiro. Seu preparo artesanal, sua relação direta com os ritos do candomblé e a atuação das baianas de acarajé como figuras centrais dessa prática conferem a ele um caráter simbólico e identitário que transcende o plano gastronômico. Em 2004, o ofício das baianas de acarajé foi oficialmente reconhecido como patrimônio cultural imaterial pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), consolidando juridicamente sua relevância dentro do arcabouço normativo de proteção à cultura.
Contudo, mesmo diante desse reconhecimento, observa-se, nas últimas décadas, um processo crescente de apropriação indevida desse bem cultural. O fenômeno da apropriação cultural, embora ainda pouco regulamentado de forma específica no Brasil, levanta debates relevantes no campo do direito constitucional, do direito cultural e do direito do consumidor. Trata-se de compreender os limites entre o uso legítimo de expressões culturais e sua exploração comercial dissociada de contexto, que, por vezes, culmina em apagamento simbólico, esvaziamento religioso e deslegitimação de tradições ancestrais.
Este artigo tem por objetivo examinar juridicamente as tensões envolvidas na apropriação cultural do acarajé, tendo como objeto de análise as ações judiciais movidas pela Associação Nacional das Baianas de Acarajé (ABAM). As demandas tratam de duas situações emblemáticas: a venda de produtos rotulados como “acarajé” por padarias e supermercados sem observância às práticas tradicionais, e a utilização do nome “bolinho de Jesus” por grupos evangélicos para comercializar alimentos visualmente semelhantes ao acarajé, com clara desconexão de sua origem religiosa afro-brasileira.
A relevância deste estudo reside no reconhecimento de que a tutela jurídica da cultura não pode se restringir a instrumentos normativos abstratos, mas deve alcançar a efetiva proteção das práticas sociais que traduzem a memória, a identidade e a espiritualidade de grupos minorizados. A análise parte, portanto, de uma abordagem que articula a dogmática constitucional com a justiça cultural, buscando lançar luz sobre a necessidade de um direito comprometido com o pluralismo, o respeito à diversidade e a reparação histórica.
Nos tópicos que se seguem, serão apresentados os marcos normativos da proteção cultural no Brasil, os conceitos centrais acerca da apropriação cultural no campo jurídico, bem como o estudo de casos envolvendo a judicialização da cultura afro-brasileira. Ao final, será proposta uma reflexão crítica sobre os caminhos possíveis para garantir que o direito contribua não para a domesticação, mas para a valorização da diferença.
2. O ACARAJÉ: ORIGEM E SIGNIFICADO CULTURAL E RELIGIOSO
A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 representa um marco civilizatório na consolidação dos direitos fundamentais, ao reconhecer a diversidade cultural como pilar estruturante do Estado Democrático de Direito. No capítulo destinado à cultura, os artigos 215 e 216 não apenas reconhecem a cultura como direito de todos, mas impõem ao Estado o dever de proteger e promover as expressões culturais dos diversos grupos formadores da sociedade brasileira, com destaque às culturas populares, indígenas e afro-brasileiras.
O artigo 215, em seu §1º, determina que “o Estado protegerá as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional” (BRASIL, 1988). Essa disposição revela uma opção política clara pela valorização da pluralidade cultural, reconhecendo que o Brasil é composto por múltiplas tradições, saberes e modos de viver, que devem ser igualmente respeitados e incentivados.
Já o artigo 216 amplia a concepção de patrimônio cultural, abrangendo não apenas os bens materiais, como monumentos, obras e construções, mas também os bens imateriais, como os modos de fazer, as tradições, os ofícios e as expressões que conferem identidade aos grupos sociais. Tal previsão é particularmente relevante quando se trata de manifestações culturais de matriz africana, muitas vezes baseadas na oralidade e na experiência comunitária, e que, por isso mesmo, foram historicamente excluídas das formas clássicas de reconhecimento institucional.
Além da previsão constitucional, o Decreto nº 3.551/2000 criou o Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial e formalizou a atuação do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) como órgão responsável pela identificação e salvaguarda desses bens. O registro do ofício das baianas de acarajé nesse sistema, ocorrido em 2004, foi um marco na política de valorização da cultura afro-brasileira, pois conferiu respaldo jurídico àquilo que já era reconhecido socialmente como prática ancestral de resistência, saber e religiosidade.
A doutrina contemporânea tem ampliado a leitura desses dispositivos constitucionais. Para Cláudia Lima Marques (2009), os direitos culturais, por sua natureza difusa e coletiva, devem ser entendidos como direitos fundamentais de terceira dimensão, voltados à proteção da identidade e da memória coletiva, especialmente das comunidades historicamente oprimidas. Essa interpretação dialoga com o pensamento de José Geraldo de Sousa Junior (2010), que propõe uma concepção emancipatória do direito cultural, vinculando-o à ideia de “direito achado na rua”, isto é, um direito produzido pela vivência concreta dos sujeitos sociais.
No campo internacional, a Convenção sobre a Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais, aprovada pela UNESCO em 2005 e ratificada pelo Brasil por meio do Decreto Legislativo nº 485/2006, também reforça a importância da diversidade cultural como valor essencial para o desenvolvimento humano, a paz e a convivência democrática. Essa convenção compromete os Estados a promover políticas públicas inclusivas e a adotar medidas que evitem a homogeneização cultural imposta por interesses econômicos ou culturais hegemônicos.
Dessa forma, a análise da Constituição de 1988 e dos instrumentos normativos complementares revela que o ordenamento jurídico brasileiro não apenas reconhece o valor das manifestações culturais tradicionais, como também oferece fundamentos jurídicos sólidos para sua proteção contra usos indevidos, estereotipados ou desrespeitosos. A ausência de uma legislação específica sobre apropriação cultural, portanto, não impede que tais práticas sejam enfrentadas com base nos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, do pluralismo cultural, da igualdade material e da não discriminação.
Nos tópicos seguintes, essa análise será aprofundada com base em casos concretos de judicialização da cultura afro-brasileira, buscando identificar como o direito tem sido (ou pode ser) mobilizado para garantir a integridade simbólica e a autonomia cultural dos grupos tradicionais.
3. A APROPRIAÇÃO CULTURAL SOB A ÓTICA DO DIREITO BRASILEIRO
O conceito de apropriação cultural tem despertado crescente atenção nos debates jurídicos contemporâneos, especialmente no contexto brasileiro, marcado por uma pluralidade étnica, religiosa e cultural profundamente enraizada na formação histórica da sociedade. Tal fenômeno pode ser compreendido, em linhas gerais, como o uso, reprodução ou comercialização de elementos culturais por sujeitos externos à cultura de origem, frequentemente em contextos desprovidos de reconhecimento, consentimento ou respeito aos significados originais desses elementos. Tais práticas, quando dissociadas do devido diálogo com os grupos detentores das tradições apropriadas, tendem a esvaziar o conteúdo simbólico dessas expressões, transformando-as em mercadoria ou entretenimento, em prejuízo da identidade coletiva dos povos envolvidos.
No Brasil, a Constituição Federal de 1988 estabelece um marco normativo robusto para a proteção da diversidade cultural. O artigo 215, caput, assegura a todos o pleno exercício dos direitos culturais, reconhecendo que o acesso às fontes da cultura nacional é um direito fundamental. O §1º do referido artigo é ainda mais específico ao afirmar que “o Estado protegerá as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras e das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional” (BRASIL, 1988). Já o artigo 216 define o patrimônio cultural brasileiro como o conjunto de bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, que constituem referências à identidade, à ação e à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira. Esses dispositivos não apenas reconhecem a diversidade cultural como valor constitucional, mas também impõem ao Estado e à sociedade o dever de protegê-la de práticas que possam descaracterizá-la ou explorá-la de maneira indevida.
A partir desse arcabouço, o Decreto nº 3.551/2000 instituiu os instrumentos de registro de bens culturais de natureza imaterial, estabelecendo o Programa Nacional do Patrimônio Imaterial e conferindo ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) a atribuição de coordenar as ações de salvaguarda desses bens. O registro de bens como o ofício das baianas de acarajé, o samba de roda, o jongo e a capoeira ilustra a consolidação de uma política pública de proteção simbólica, voltada à valorização e preservação das práticas culturais tradicionais (IPHAN, 2000).
Contudo, ainda que haja previsão normativa para a proteção do patrimônio cultural imaterial, o ordenamento jurídico brasileiro carece de legislação específica que regule de forma clara e objetiva a apropriação cultural. A ausência de um marco legal preciso dificulta a tipificação da conduta e a responsabilização de práticas que, embora não sejam ilícitas em sentido estrito, podem resultar em danos morais coletivos ou em violações à dignidade cultural de povos e comunidades tradicionais.
Nesse vácuo legislativo, a doutrina tem exercido papel fundamental na construção de interpretações jurídicas que busquem proteger os direitos culturais. A jurista Maria Paula Dallari Bucci argumenta que o direito à cultura, enquanto direito fundamental, está intrinsecamente ligado à cidadania e deve ser compreendido como um direito de afirmação das identidades coletivas, cuja efetividade depende da atuação estatal na contenção de práticas que esvaziem ou desrespeitem os sentidos originais das manifestações culturais (BUCCI, 2002). Do mesmo modo, Dalmo de Abreu Dallari defende que a democracia cultural só se realiza com o reconhecimento equitativo das culturas subalternizadas, sendo a apropriação indevida de seus símbolos uma forma de opressão simbólica (DALLARI, 2004).
Do ponto de vista jurisprudencial, ainda que a apropriação cultural não esteja tipificada como infração autônoma, alguns precedentes judiciais começam a delinear parâmetros para sua análise à luz dos direitos culturais e do princípio da dignidade da pessoa humana. Um caso paradigmático foi a Ação Civil Pública nº 1004808-94.2015.4.01.3300, movida pelo Ministério Público Federal da Bahia contra uma rede de fast-food que passou a comercializar produtos inspirados no acarajé sem qualquer vínculo com as comunidades afro-brasileiras que tradicionalmente produzem e comercializam o alimento. O juízo reconheceu a relevância simbólica e religiosa do acarajé, destacando que o uso comercial descontextualizado de bens culturais imateriais pode caracterizar ofensa à identidade coletiva e à liberdade religiosa, ainda que não tenha havido, naquele momento, decisão condenatória.
Além disso, o caso do “Jongo Brasileiro”, em que uma empresa registrou como marca um nome diretamente associado a prática cultural tradicional protegida, suscitou um intenso debate sobre a interface entre os regimes de propriedade intelectual e o direito ao patrimônio cultural. Após mobilização das comunidades detentoras da tradição e manifestação do IPHAN, o processo administrativo de registro da marca foi anulado, evidenciando a importância de se assegurar o consentimento prévio e informado dos grupos culturais afetados (CARVALHO, 2019).
Na tentativa de distinguir o uso legítimo do indevido de expressões culturais, autores como Antônio Carlos Wolkmer propõem uma abordagem decolonial e intercultural do direito, que rejeite a monocultura jurídica de matriz ocidental e reconheça a legitimidade epistemológica dos saberes ancestrais. Para Wolkmer, a apropriação cultural configura-se quando há um desequilíbrio de poder entre os sujeitos culturais, em que um grupo dominante extrai valor simbólico, estético ou econômico de práticas subalternas sem contrapartida ou reconhecimento (WOLKMER, 2010).
Por fim, é necessário ressaltar que a promoção de uma justiça cultural exige mais do que uma simples regulamentação normativa. Implica, sobretudo, a construção de um ambiente jurídico e institucional comprometido com o respeito à diversidade, com a escuta ativa das comunidades detentoras do patrimônio imaterial e com a reparação de práticas históricas de silenciamento e mercantilização cultural. A apropriação cultural, nesse cenário, não pode ser tratada apenas como uma ofensa moral ou estética, mas sim como uma violação a direitos fundamentais coletivos, que comprometem a autodeterminação, a memória e a identidade de povos e comunidades.
4. O CASO DO "BOLINHO DE FOGO" E A JUDICIALIZAÇÃO DA APROPRIAÇÃO CULTURAL
A judicialização da cultura afro-brasileira, especialmente no que se refere ao ofício das baianas de acarajé, ilustra a complexa relação entre tradição, identidade e mercado. Ao acionar o Poder Judiciário para contestar práticas de comercialização indevida do acarajé, a Associação Nacional das Baianas de Acarajé (ABAM) dá visibilidade às disputas simbólicas e econômicas em torno de um patrimônio que, embora reconhecido oficialmente pelo Estado, ainda carece de proteção efetiva frente aos interesses comerciais hegemônicos.
Um dos principais focos das ações propostas pela ABAM diz respeito à comercialização de produtos rotulados como “acarajé” por estabelecimentos comerciais – como supermercados, padarias e lanchonetes – que não respeitam os métodos tradicionais de preparo, tampouco mantêm qualquer relação com as baianas de acarajé ou com a cultura afro-brasileira. O uso da nomenclatura “acarajé” nesses contextos, muitas vezes associado a produtos industrializados ou descaracterizados, configura, segundo a associação, um processo de esvaziamento simbólico e de deslegitimação cultural, que agride tanto o valor ritualístico do alimento quanto os direitos socioeconômicos das mulheres que o produzem tradicionalmente.
Do ponto de vista jurídico, tais práticas podem ensejar diferentes formas de responsabilização. Em primeiro lugar, sob a ótica do Direito Civil, a conduta das empresas pode ser enquadrada no artigo 927 do Código Civil, que trata da responsabilidade por dano moral coletivo. O dano, neste caso, não atinge apenas indivíduos isoladamente, mas compromete a dignidade cultural de um grupo historicamente vulnerabilizado, privando-o do controle sobre suas referências identitárias.
Além disso, o artigo 20 do mesmo código protege a imagem e a honra de pessoas e grupos, permitindo a propositura de ação quando há exploração indevida de símbolos associados a uma coletividade. A vinculação do termo “acarajé” a produtos desprovidos de legitimidade cultural pode ser interpretada como violação da imagem coletiva das baianas, sujeita à reparação moral e patrimonial.
Na esfera do Direito do Consumidor, a situação também demanda atenção. O artigo 37, §1º do Código de Defesa do Consumidor estabelece que é abusiva toda forma de publicidade enganosa, inclusive aquela que induz o consumidor a erro sobre a origem ou qualidade do produto ofertado. Nesse sentido, rotular produtos como “acarajé” quando não o são de fato pode configurar infração legal, passível de sanção administrativa e judicial.
Adicionalmente, sob a perspectiva da concorrência leal, é possível argumentar que tais práticas violam o princípio da boa-fé e criam um ambiente de competição desleal, ao se apropriar indevidamente de um símbolo cultural consolidado sem cumprir os requisitos tradicionais ou valorizar os detentores legítimos do saber-fazer.
A atuação da ABAM, portanto, ultrapassa a defesa de um interesse meramente econômico e insere-se em um movimento mais amplo de reivindicação de reconhecimento e reparação histórica, nos moldes do que autores como Axel Honneth (2003) apontam como luta por reconhecimento. Ao judicializar a apropriação indevida do acarajé, a associação exige não apenas o respeito ao seu modo de vida, mas também a inclusão plena no espaço público, com voz ativa sobre os sentidos atribuídos aos seus bens culturais.
As decisões judiciais nesses casos, ainda que não totalmente pacificadas, vêm apontando para a necessidade de um olhar mais atento à tutela do patrimônio imaterial. O Judiciário tem, progressivamente, reconhecido a legitimidade da proteção coletiva da cultura, admitindo a possibilidade de concessão de tutelas inibitórias e reparatórias em favor de comunidades tradicionais. Essa evolução jurisprudencial reforça o papel do direito como instrumento de mediação de conflitos culturais, capaz de equilibrar os direitos à livre iniciativa e à concorrência com os princípios constitucionais da igualdade, da dignidade humana e da proteção à diversidade.
Nos próximos tópicos, será abordado o caso específico do “bolinho de Jesus”, em que a ressignificação simbólica do acarajé por grupos religiosos evangélicos acirrou os debates em torno da liberdade religiosa, da laicidade do Estado e da integridade cultural das tradições afro-brasileiras.
4.1. Comercialização indevida do acarajé: concorrência desleal e descaracterização cultural
A comercialização do acarajé por agentes econômicos desvinculados de sua origem tradicional configura um dos principais pontos de conflito jurídico-cultural analisados neste estudo. O que está em jogo não é apenas o uso indevido de uma receita culinária, mas a apropriação simbólica de um bem cultural imaterial cuja significação extrapola o campo gastronômico. O acarajé, nascido das práticas religiosas do candomblé e perpetuado pelas mãos das baianas, carrega consigo uma carga espiritual, histórica e identitária que não pode ser dissociada de sua origem.
Quando supermercados, padarias ou redes de fast-food passam a oferecer produtos nomeados como “acarajé”, porém sem respeitar os modos tradicionais de preparo nem as pessoas que historicamente detêm o saber-fazer, ocorre uma prática que pode ser juridicamente compreendida como concorrência desleal. A Lei da Propriedade Industrial (Lei nº 9.279/1996), em seu artigo 195, considera ato de concorrência desleal aquele que utiliza indevidamente elementos que possam causar confusão ao consumidor quanto à origem, natureza ou qualidade do produto.
Mais ainda, tal prática incorre em publicidade enganosa, conforme o artigo 37, §1º, do Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/1990), por apresentar ao público um produto descaracterizado como se fosse o legítimo acarajé. Nesse cenário, o consumidor é induzido ao erro, e o patrimônio cultural das baianas é explorado sem contrapartida ou respeito, revelando a assimetria de poder entre as grandes corporações e os grupos culturais tradicionais.
Sob a perspectiva do direito civil, aplica-se ainda o artigo 927 do Código Civil, que trata da responsabilidade civil por dano causado a outrem, permitindo pleito de indenização por dano moral coletivo. Como salienta Maria Celina Bodin de Moraes (2010), o dano moral coletivo é cabível quando a conduta atinge valores fundamentais compartilhados por uma coletividade, como ocorre na violação da identidade cultural de um grupo.
No caso em tela, não se trata apenas de concorrência comercial entre produtos semelhantes, mas de uma relação desigual em que empresas se apropriam da reputação histórica do acarajé — construída por gerações de mulheres negras — para fins econômicos, sem qualquer diálogo ou reconhecimento com a coletividade que lhe deu origem. Essa situação fere o princípio da boa-fé objetiva e compromete o equilíbrio das relações de mercado, tal como defendido por Cláudia Lima Marques (2009), ao tratar da função social dos contratos e das práticas comerciais no Estado Democrático de Direito.
Em termos jurisprudenciais, embora ainda escassos, existem precedentes que apontam para o reconhecimento da proteção simbólica e coletiva da cultura tradicional. Um exemplo emblemático é o caso da Ação Civil Pública nº 1004808-94.2015.4.01.3300, ajuizada pelo Ministério Público Federal da Bahia contra uma empresa que comercializava um produto semelhante ao acarajé, sem qualquer vínculo com a tradição. Embora o juízo tenha negado liminar, reconheceu expressamente a relevância da demanda no tocante à proteção do patrimônio imaterial e à identidade religiosa afro-brasileira.
Dessa forma, a comercialização indevida do acarajé, além de afetar economicamente as baianas e violar seu direito ao trabalho tradicional, representa um risco concreto de descaracterização cultural. A atuação jurídica nesses casos deve buscar não apenas a reparação, mas sobretudo a prevenção da exploração predatória de símbolos culturais, por meio de ações educativas, políticas públicas e instrumentos legais que assegurem o protagonismo das comunidades detentoras do saber.
Nos tópicos seguintes, será aprofundada a análise sobre a tentativa de cristianização do acarajé e seus desdobramentos jurídicos, com enfoque na tensão entre liberdade religiosa e laicidade do Estado frente à diversidade cultural.
4.2. O caso “Bolinho de Jesus”: conflito simbólico e liberdade religiosa
A utilização do termo “bolinho de Jesus” por grupos evangélicos para designar um alimento com características visivelmente semelhantes ao acarajé constitui mais do que uma estratégia de marketing: trata-se de uma tentativa de reconfiguração simbólica que desconsidera a origem e o significado religioso do prato no contexto das religiões de matriz africana. Ao ressignificar o alimento e atribuir-lhe nova identidade vinculada ao cristianismo, a prática resulta em apagamento cultural e ofensa ao direito à autodeterminação religiosa das comunidades afro-brasileiras.
O acarajé não é meramente uma iguaria. É um elemento ritualístico consagrado nos cultos do candomblé, especialmente como oferenda à orixá Iansã. Sua preparação, ingredientes e forma de comercialização pelas baianas carregam significados religiosos e históricos que compõem o patrimônio imaterial do Brasil, conforme reconhecido pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) desde 2004. Assim, sua utilização em contextos completamente alheios a esse universo, especialmente com conotação cristã, promove uma ruptura simbólica e agride a identidade cultural dos povos tradicionais de terreiro.
Sob o aspecto jurídico, essa prática pode ser analisada à luz do artigo 5º, inciso VI, da Constituição Federal, que assegura a inviolabilidade da liberdade de consciência e de crença, garantindo o livre exercício dos cultos religiosos e a proteção aos seus rituais. Como ensina Daniel Sarmento (2009), essa liberdade deve ser interpretada de maneira substancial, abrangendo não apenas o direito de professar uma fé, mas também o direito à não-interferência simbólica ou cultural de outras religiões sobre as expressões religiosas de minorias.
O uso do termo “bolinho de Jesus” configura uma forma de substituição simbólica forçada, que compromete a laicidade do Estado e o princípio da neutralidade religiosa. A laicidade brasileira, conforme pontua José Reinaldo de Lima Lopes (2011), não implica a exclusão do religioso da esfera pública, mas sim o dever do Estado de assegurar o tratamento igualitário entre as diversas manifestações religiosas, inclusive protegendo as expressões culturais derivadas dessas religiões contra tentativas de silenciamento ou assimilação forçada.
Do ponto de vista da responsabilidade civil, é possível enquadrar a conduta como passível de reparação por dano moral coletivo, com fundamento no artigo 927 do Código Civil. O uso comercial e desvinculado do simbolismo original do acarajé não apenas gera confusão e apropriação indevida, como também contribui para o esvaziamento identitário de um grupo cultural específico, o que afeta sua dignidade coletiva. Nesse sentido, a jurisprudência já reconheceu, como no caso da Ação Civil Pública nº 1013949-82.2016.8.26.0053, que a exploração de símbolos culturais de minorias sem seu consentimento pode gerar responsabilização por violação de direitos coletivos difusos.
A crítica jurídica à prática em análise não pretende restringir a liberdade de expressão religiosa de qualquer grupo, mas delimitar os limites constitucionais do exercício dessa liberdade, de modo a impedir que se sobreponha ao direito de outras coletividades à preservação de sua cultura, sua fé e sua memória. Como afirma Luís Roberto Barroso (2008), a dignidade da pessoa humana exige não apenas respeito à individualidade, mas também o reconhecimento da identidade coletiva como parte do pluralismo democrático.
Logo, a ressignificação do acarajé sob a denominação de “bolinho de Jesus”, ao descontextualizar um símbolo afro-religioso e vinculá-lo a outra matriz de fé, representa uma forma de apropriação cultural que viola o direito à diferença, fragiliza o reconhecimento público da diversidade religiosa e cultural e reforça estruturas históricas de silenciamento das tradições afro-brasileiras. A atuação do direito, nesse caso, deve ser pautada pela lógica da reparação simbólica e da garantia da igualdade material entre as culturas, como exigência de um constitucionalismo plural e inclusivo.