O que é a Teoria da Zona Livre de Ofensas?
Ao ler importante artigo de Lênio Streck sobre o Gaslighting processual1, onde o autor faz severas (e acertadas) críticas à postura de alguns magistrados brasileiros, nos deparamos com uma triste realidade: a justiça se tornando uma verdadeira loteria.
Apenas para contextualizar o tema que será tratado adiante no presente artigo, citemos as lições de Lênio em trabalho:
“E o que seria, então, o gaslighting jurídico-processual? É como a angústia. Difícil ou impossível de explicar. Mas tentarei. (...) É quando o Judiciário ignora os “sintomas”. Ignora o que foi alegado. (...) É desse modo que o gaslighting processual ceifa direitos todos os dias. Ignorar claros limites semânticos também é jus gaslighting. (...) Com efeito, o gaslighting processual é a manipulação do próprio direito para dizer que não se tem direitos.” (grifos no original”
E conclui o jurista: “O jus gaslighting mata direitos (por vezes, tira liberdades e vidas), e o Direito, por ser também coisa séria, deveria criar mecanismos para vedar a prática .”
Nos últimos tempos, a chamada "Teoria da Zona Livre de Ofensas" tem sido invocada por magistrados do TJDFT para afastar o dever de responsabilização civil e penal por ofensas proferidas em grupos de WhatsApp condominiais.
Em tese, trata-se de uma tentativa de valorizar a liberdade de expressão e evitar a judicialização de discussões banais e corriqueiras. Na prática, no entanto, a teoria vem sendo aplicada de forma arbitrária e contraditória, dando margem a favoritismos e decisões incoerentes.
O que deveria ser uma zona livre de ofensas virou, na verdade, uma zona de insegurança jurídica. Uma verdadeira zona!
1. A teoria surgiu para conter o exagero da judicialização de picuinhas
A Teoria da Zona Livre de Ofensas não surgiu no Brasil. Sua formulação foi inspirada em precedente do Tribunal de Justiça de Frankfurt am Main (Az. 16. W 54/18), no qual se analisou o caso de um genro que tentou impedir sua sogra de falar mal dele em grupo familiar de mensagens.
O tribunal negou o pedido do genro e introduziu a ideia de uma “zona livre” de proteção para manifestações no círculo familiar, protegendo as relações de confiança e a liberdade de expressão de familiares próximos. Para o Tribunal, essa área de confiança é uma esfera de proteção constitucional onde a honra do indivíduo é relativizada, prevalecendo o direito à liberdade de expressão.
Essa interpretação se fundamenta nos artigos 1.º e 2.º da Lei Fundamental da Alemanha, que garantem uma esfera de comunicação confidencial dentro das relações pessoais.
Adaptada ao contexto brasileiro, a teoria passou a ser utilizada no Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios pela 2ª Turma Recursal dos Juizados Especiais.
Nos bastidores do próprio tribunal, a teoria foi alvo de duras críticas por parte de magistrados, justamente pela ausência de critérios objetivos para uma medida tão drástica (ainda que louvável): afastar a tipicidade penal em casos supérfluos.
Mas o risco que a teoria, criada para garantir justiça, evidencia agora, é que ela acabe servindo de escudo para injustiças. Para ser aplicada nos casos de Francisco, mas não nos de Chico. O motivo será tratado nas linhas a seguir.
Por ser recente e por sua essência representar um avanço importante para o direito brasileiro — especialmente no campo da liberdade de expressão —, é dever institucional da 2ª Turma Recursal, que a inaugurou no TJDFT, zelar para que ela não caia em descrédito.
Caso contrário, a teoria corre o risco de virar piada no meio jurídico, mais lembrada por sua aplicação caótica do que por sua contribuição doutrinária.
Não é incomum que síndicos, condôminos e vizinhos transformem grupos de WhatsApp em campos de batalha verbal. Críticas à gestão, ironias e provocações são frequentes.
2. Quando vale? Quando não vale? Eis a zona...
O problema é que a teoria não tem sido aplicada com critérios minimamente objetivos. Em casos idênticos, a mesma Turma Recursal ora aplica a teoria, ora a ignora, sem qualquer distinguishing plausível.
Acusações de "ladrão de projeto" ou xingamentos como "trupe medíocre" foram tidos como toleráveis, e a teoria, aplicada para livrar os “agressores”.
Já em recente julgamento de um habeas corpus que visava trancar uma (vergonhosa) ação penal por injúria decorrente de queixa-crime ajuizada por um síndico contra dois moradores do condomínio, a 2ª Turma Recursal do TJDFT entendeu que expressões por eles usadas como "palhaço", "ridículo" e "viuvinho da ditadura" devem ser tratadas como possíveis crimes capazes de justificar a famigerada ação criminal.
Um detalhe que não pode passar despercebido: um dos acusados é pessoa com transtorno do espectro autista nível 2 de suporte! Não matou, não gritou, não bateu em ninguém, apenas se utilizou daquilo que ele dispõe para expressar seus sentimentos (a escrita) para manifestar profundo descontentamento em relação a gestão condominial. O laudo foi juntado ao processo, mas até agora (infelizmente) o Poder Judiciário tem fechado os olhos para essa peculiaridade.
Em simpósio realizado no Superior Tribunal de Justiça em (20/5/2025), cujo tema foi AUTISMO E JUSTIÇA,1 o assunto foi brevemente abordado nos bastidores pelo autista acusado do crime de injúria, que assistiu atentamente a todos os painéis na Corte, já que estava envolto num ambiente de proteção e acolhimento, onde a sua voz poderia ser ouvida.
Obviamente que causou espécie em quem o ouviu, pois não acreditaram que uma magistrada pudesse levar adiante um caso desse jaez onde uma pessoa autista apenas manifestou o seu direito de livre manifestação do pensamento, da forma como é peculiar do seu autismo: direto e contundente.
Não é a práxis do cotidiano judicante. Normalmente ações como tais são arquivadas ab initio. Quando o Judiciário transforma críticas ácidas em crimes, vira instrumento de censura indireta e promove a blindagem emocional de quem se sujeita ao debate coletivo (ainda amis quando se candidata e é eleito síndico de um condomínio de moradores).
Voltando para o julgamento do habeas corpus na Turma Recursal sob comento, o seu resultado apontou para a tenebrosa impressão de que a jurisprudência virou loteria. A previsibilidade das decisões, essencial à segurança jurídica, parece que foi para o ralo.
Como é que o Poder Judiciário aplica a referida Teoria para afastar a tipicidade da conduta de quem imputa a outrem o qualificativo de "ladrão de projeto", e, ao mesmo tempo, recusa-a quando se trata de uma pessoa autista que chama o outro de "palhaço, ridículo e viuvinho da ditadura"? Que Xou da Xuxa é esse? Causa espécie esse tipo de postura jurisprudencial.
3. A inversão da lógica da última ratio penal
O Direito Penal deve ser o último recurso, não o primeiro. O tipo penal de injúria exige dolo específico de ofender a honra subjetiva. Críticas à gestão condominial, ainda que firmes ou irônicas, estão no âmbito da liberdade de expressão.
Ninguém pode ser criminalizado por chamar outrem de "palhaço" em uma discussão pública, tampouco de “ridículo” (se fosse assim, o saudoso ator e comediante Paulo Gustavo estaria perdido), e muito menos de “viuvinho da ditadura” (em embates envolvendo cargos políticos essa expressão é fichinha diante de tantas agressões que de fato são proferidas).
4. O precedente cível da mesma comarca que desmonta a queixa-crime
Na mesma comarca judicial, o processo cível 0711310-41.2024.8.07.0004 analisou o mesmo conjunto de fatos, com as mesmas partes envolvidas. A magistrada de primeiro grau, vizinha de porta da juíza que levou à frente a ação penal por injúria, afastou expressamente qualquer intenção ofensiva nas mensagens do grupo de moradores, reconhecendo tratar-se de críticas políticas à gestão condominial.
E, antes que se encerrasse o prazo para recurso, o próprio suposto ofendido, o síndico, manifestou que não iria recorrer, concordando com a conclusão de que não houve dano moral. Como então, na Vara ao lado, sustentar o dolo penal?
Sabemos que a independência das instâncias cível e penal é regra, mas, como toda regra, comporta exceção. No RHC 173.448/DF, o Superior Tribunal de Justiça reconheceu que, havendo sentença cível envolvendo as mesmas partes e os mesmos fatos, não há justa causa para persecução penal, notadamente quando a sentença transita em julgado.
No caso em análise, não apenas há anuência do suposto ofendido, como também sentença afirmando que ele não comprovou a violação que alegava ter sofrido, tendo em vista que apenas se voltou contra o democrático exercício do direito à liberdade de expressão. A insistência na via penal (autorizada pelo Judiciário distrital) beira as raias do absurdo.
5. A jurisprudência como loteria: o risco de julgamentos por empatia
A última oportunidade em que a 2ª Turma Recursal do TJDFT enfrentou expressamente a Teoria da Zona Livre de Ofensas — para afastá-la — foi muito recente, em 10 de maio de 2025, conforme consulta pública à jurisprudência. Apenas uma juíza divergiu do voto da relatora.
A terceira integrante do colegiado, ao que parece, nem sequer leu a peça de habeas corpus que visava trancar a ação penal de injúria, cuja audiência de instrução e julgamento já foi marcada. Limitou-se a usar a famigerada expressão “voto com a relatora”, sem qualquer acréscimo argumentativo.
Foi distribuído memorial pela advogada alertando sobre a necessidade de coerência na aplicação da Teoria. Mas, como infelizmente tem acontecido na atualidade, sem nenhum sucesso. Opôs-se embargos de declaração com pedido de efeitos infringentes, e espera-se que a Turma recobre o seu tão importante dever (com previsão no CPC/2015): observar e aplicar com coerência os seus próprios precedentes.
Na prática, o que temos assistido boquiabertos é que o destino do processo depende menos dos fatos e mais da empatia (ou antipatia) que a parte inspira nos julgadores. Quem liga mais no gabinete, quem envia memoriais e quer despachar com o magistrado ganha antipatia e desconfiança.
É a conclusão a que chegamos quando três julgadores analisam três casos semelhantes e dão três soluções tão distintas. Parece que onde deveria haver isonomia, há favoritismo. Onde deveria haver segurança, há arbitrariedade.
A Teoria da Zona Livre de Ofensas virou um coringa hermenêutico: serve para tudo, inclusive para justificar a ausência de justificativa.
6. Conclusão: mais técnica, menos zona
Se a Teoria da Zona Livre de Ofensas quer sobreviver, precisa ser aplicada com critérios técnicos, isonômicos e fundamentados. Deve-se por ser nova, fazer-se a necessária distinção entre o caso concreto sob exame e os demais precedentes onde ela foi aplicada, explicando-se, por exemplo, o porquê de naqueles casos ela ter sido aplicada e no caso concreto sob exame, ela merece ser afastada.
O que não se pode admitir é que o destino de uma ação penal dependa da simpatia pessoal de quem julga ou da identidade de quem ofende e de quem é ofendido.
Quando a jurisprudência vira um improviso, a teoria vira uma zona. E o jurisdicionado perde aquilo que mais deveria ter garantido: o direito de ser julgado com justiça e segurança.
Depois do julgamento dos embargos de declaração, retomaremos este espaço para analisar criticamente a aplicação da Teoria da Zona Livre de Ofensas, seja em sua defesa ou rejeição.
Notas
1 Simpósio – Autismo e Justiça. Superior Tribunal de Justiça. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=jtIC2dWABRo
2 CONSULTOR JURÍDICO. STRECK Lênio Luiz. Gaslighting: e o médico invocou a Súmula 7 e não requisitou exames. Consultor Jurídico, 26 dez.2024, Disponível em: https://www.conjur.com.br/2024-dez-26/gaslighting-e-o-medico-invocou-a-sumula-7-e-nao-requisitou-exames/. Consulta em: 19.5/2025.