I –Conflito art. 32 da LCP Vs art. 309 do CTB sob o ângulo positivista vs pós-positivista
A Lei das Contravenções Penais (decreto-lei, isto é, nível de lei ordinária, de 1941) prescreve, em seu art. 32: "Dirigir, sem a devida habilitação, veículo na via pública, ou embarcação a motor em águas públicas: Pena – multa".
O Código de Trânsito Brasileiro (lei ordinária, de 1997) prescreve, em seu art. 309: "Dirigir veículo automotor, em via pública, sem a devida Permissão para Dirigir ou Habilitação ou, ainda, se cassado o direito de dirigir, gerando perigo de dano: Pena – detenção, de seis meses a um ano, ou multa".
Pergunta-se:
1 - Considerando que, pelo critério da especialidade, a LCP continuaria aplicável aos casos de direção sem habilitação – que não gera perigo de dano –, e levando em conta os princípios aplicáveis a esse caso, pergunta-se: dirigir automóvel sem habilitação – sem gerar perigo de dano – continua sendo contravenção?
RESPOSTA: Em relação à primeira pergunta proposta neste estudo, a resposta é não. Pesquisando o tema no Supremo Tribunal Federal, histórico da Súmula número 720, votos e acórdãos da Corte Suprema e do Superior Tribunal de Justiça, podemos afirmar dado vacilo jurisprudencial até concretização de uma convergência para derrogação parcial da norma contravencional, no que se refere aos veículos automotores terrestres regidos pelo Código de Trânsito Brasileiro.
Numa primeira posição sustentada no âmbito do Superior Tribunal de Justiça aos idos de 2000, a direção inabilitada sem perigo de dano configuraria contravenção, nos termos do art. 32 da lei especial, que não foi revogado pelo art. 309 do Código de Trânsito; ocorrendo perigo de dano, incidiria o art. 309 do CTB (STJ – HC n. 12.420 – 6.ª T. – rel. Min. Hamílton Carvalhido – j. 14.11.2000 – DJU 19.02.2001, p. 247.). Naquela Corte Superior, no HC 12.520, fixou-se a posição oposta que futuramente prevaleceria ali e no Supremo Tribunal Federal além dos Tribunal de norte ao sul do país: o art. 32 da LCP foi derrogado pelo art. 309 do CTB (STJ – HC n. 12.520 – 6.ª T. – rel. Min. Fernando Gonçalves – j. 24.10.2000 – DJU 19.02.2001, p. 247.).
Migrando para o histórico da controvérsia analisada pelos ministros do Supremo Tribunal Federal até chegarem à conclusão estampada na Súmula número 720, encontramos o artigo de Damásio de Jesus [01].
No Recurso Ordinário em Habeas Corpus n. 80.362, de SP, em que se discutia o conteúdo punitivo e a vigência ou derrogação do art. 32 da LCP em face do art. 309 do Código de Trânsito, ambos definindo a infração penal de direção sem habilitação, a Primeira Turma do Pretório Excelso, Relator o Ministro Ilmar Galvão, deliberou afetar ao Plenário o julgamento das questões (Informativo STF, 07.02.2001, n. 215, p. 2.).
Na sessão plenária de 07.02.2001, o Ministro Ilmar Galvão votou pela subsistência e compatibilidade das normas que definem as infrações, i. e., considerou que o art. 309 do CTB (crime de perigo concreto) não derrogou o art. 32 da LCP (contravenção de perigo abstrato). Os Ministros Sepúlveda Pertence e Marco Aurélio, contudo, votaram no sentido de que houve revogação parcial: "A Lei 9.503/97, ao regular inteiramente o direito penal de trânsito nas vias terrestres do território nacional, derrogou parcialmente o citado art. 32". Quer dizer: a direção inabilitada de veículo automotor, excluídas as embarcações a motor, não se encontra mais descrita no art. 32 da LCP e sim no art. 309 do CTB. Naquela oportunidade, pediu vista a Ministra Ellen Gracie (Informativo STF, 5-9 fev. 2001, n. 216, p. 1.).
Na sessão de 14.02.2001, a Ministra Ellen Gracie votou pela derrogação, sendo acompanhada pelos outros ministros, inclusive o relator, que alterou seu voto, alcançando o julgamento a unanimidade (Informativo STF, 12-16 fev. 2001, n. 217, p. 1.). Assim, na direção inabilitada, tratando-se de veículo automotor, com exceção das embarcações a motor em águas públicas, aplica-se o art. 309 do CTB e não o art. 32 da LCP, que foi derrogado. Anote-se que no STJ prevalece a tese da vigência do art. 32 da LCP em face do art. 309 do CT. No TACrimSP, as Câmaras estão divididas, não havendo prevalência de nenhuma orientação. No Ministério Público de SP, a Procuradoria-Geral de Justiça adota a tese da subsistência do art. 32 da LCP.
O STF, no mesmo acórdão, decidiu outro tema relevante: o crime de direção sem habilitação depende de o motorista estar conduzindo o veículo de forma anormal. No caso de condução correta, porém inabilitada, há somente infração administrativa (art. 162, I, do CTB). No voto condutor do Ministro Sepúlveda Pertence, que se aprofundou no estudo dos temas, há lições de grande utilidade doutrinária e prática, dentre as quais citamos as seguintes: 1.ª) o art. 32 da LCP prevê infração de perigo abstrato; 2.ª) o art. 309 do CTB define crime de perigo concreto; 3.ª) o art. 32 da LCP foi derrogado, na parte em que trata de veículo automotor (automóvel etc.), pelo art. 309 do CTB; 4.ª) cuidando-se de direção inabilitada de embarcação a motor, incide o art. 32 da LCP; 5.ª) a direção inabilitada, porém normal, de veículo automotor (automóveis etc.) constitui somente ilícito administrativo (art. 162, I, do CTB); 6.ª) a direção inabilitada, porém anormal, de veículo automotor (automóveis etc.), como ultrapassagem perigosa, desrespeito a sinal impeditivo em semáforo, velocidade incompatível etc., configura o crime do art. 309 do CTB. No voto, o Ministro Sepúlveda Pertence cita e adota as posições de Damásio E. de Jesus. Crimes de trânsito, 2. ed., São Paulo, Saraiva, 1998; Luiz Vicente Cernicchiaro. Carteira de habilitação, Correio Braziliense, Direito & Justiça, 30.03.1998; Luiz Flávio Gomes. A derrogação do art. 32 da LCP, Correio Braziliense, Direito & Justiça, 26.06.1999; Ruy Carlos de Barros Monteiro. Crimes de trânsito, São Paulo, Juarez de Oliveira, 2000; Fernando Célio de Brito Nogueira. O novo Código de Trânsito revogou ou não as contravenções dos arts. 32 e 34 da LCP?, Revista Brasileira de Ciências Criminais, 24/226, e João José Caldeira Bastos. Crimes de trânsito: interpretação e crítica, rev. cit., 25/174.
De nossa parte não há muito acrescentar, senão para corroborar posição adotada pelo Supremo Tribunal Federal à luz dos ensinamentos da escola pós-positivista. Há de se salientar que, com a complexidade cada vez mais acentuada das relações jurídicas, um sistema exclusivamente positivista se torna insuficiente para regrar todas as facetas da vida do homem moderno, sobretudo, ante a incerteza gerada pela delegação da solução do caso concreto à figura do juiz e a seu poder discricionário.
É impossível ao legislador, que detém a função primária de criação do direito, regular todos os aspectos da vida social. É verdade, e não podemos esquecer como advertência, que jamais o intérprete poderá transmudar, sob a escusa da hermenêutica, da racionalização e da coesão do sistema, o conteúdo da vontade legislativa perante um fato prévia e expressamente valorado pelo legislativo.
A discricionariedade dos temas abordados em uma República que se vangloria Estado Democrático de Direito, em aspecto primário, pertence aos parlamentares e não ao Judiciário, à doutrina ou ao cientista do direito. Nesse aspecto, e para tais questões expressamente valoradas pelo legislador, não há margem para criação ou interpretação [02], mas apenas juízo de confrontação perante as regras constitucionais vigentes, concluindo-se pela constitucionalidade ou versa da norma investigada, sob pena de incorrermos no temor há muito tempo manifestado por Pimenta Bueno em seu discurso em prol da soberania do Parlamento e contra o controle de constitucionalidade dos Tribunais, ainda na época Imperial, a qual transcrevemos:
"Só o poder que faz a lei é o único competente para declarar por via de autoridade ou por disposição geral obrigatória o pensamento, o preceito dela. Só ele e exclusivamente ele é quem tem o direito de interpretar o seu próprio ato, suas próprias vistas, sua vontade e seus fins. Nenhum outro poder tem o direito de interpretar por igual modo, já porque nenhuma lei lhe deu essa faculdade, já porque seria absurda a que lhe desse.
"Primeiramente é visível que nenhum outro poder é o depositário real da vontade e inteligência do legislador. Pela necessidade de aplicar a lei deve o executor ou juiz, e por estudo pode o jurisconsulto formar sua opinião a respeito da inteligência dela, mas querer que essa opinião seja infalível e obrigatória, que seja regra geral, seria dizer que possuía a faculdade de adivinhar qual a vontade e o pensamento do legislador, que não podia errar, que era o possuidor dessa mesma inteligência e vontade; e isso seria certamente irrisório.
"Depois disso é também óbvio que o poder a quem fosse dada ou usurpasse uma tal faculdade predominaria desde logo sobre o legislador, inutilizaria ou alteraria como quisesse as atribuições deste ou disposições da lei, e seria o verdadeiro legislador. Basta refletir por um pouco para reconhecer esta verdade, e ver que interpretar a lei por disposição obrigatória, ou por via de autoridade, é não só fazer a lei, mas é ainda mais que isso, porque é predominar sobre ela" (citação de Gilmar Ferreira Mendes, Caderno de Direito Constitucional, 2006, EMAGIS, p. 7-8.). [03]
Nesse desiderato, temos que a função do intérprete e aplicador seria, portanto, a de reconstruir racionalmente a ordem jurídica vigente, identificando os princípios fundamentais que lhe dão sentido dentro, obviamente, de um contexto ético-social, respeitando, porém, nas questões valoradas pelo legislativo, as decisões ali tomadas no esquema da teoria tridimensional do direito. [04] Rompe-se, assim, com a dicotomia hermenêutica clássica que contrapõe a descoberta (cognição passiva) e a invenção (vontade ativa), na busca dos significados jurídicos. O hermeneuta, diante de um caso concreto, não pode criar direito novo, mas racionalizar o material normativo existente no vazio de uma tomada de decisão expressa pelo legislador dada a complexidade das relações humanas. O que se trata é de buscar identificar os princípios que podem dar coerência e justificar a ordem jurídica, bem como as instituições políticas vigentes.
Na questão proposta, outra não foi a posição adotada pela Suprema Corte, com a qual nos filiamos, ao decidir pela derrogação do art. 32 da Lei de Contravenções Penais, no tocante aos veículos automotores terrestres. A Suprema Corte buscou nos princípios e na vontade do parlamento a solução para o caso sob seu julgo. Utilizou-se além do princípio da especialidade [05] notoriamente dimensionado nos v. acórdãos, cronologia das disposições legais, bem como, direção constitucional de intervenção mínima do direito penal como forma de aglutinar o entendimento pelo qual o legislador dos anos 90 ao tipificar o crime em testilha apenas para os casos em que gerado perigo de dano concreto para pessoas determinadas ou indeterminadas, derrogou, num silêncio eloqüente, o artigo contravencional em referência.
A lei nova contém hipótese de abolitio criminis, no tocante à direção inabilitada normal de veículo automotor (caminhões, automóveis etc.). Por ser a Lei de Contravenções Penais, neste ponto em análise, norma mais geral do que outras na visão kelseniana, generalíssimas nos dizeres de Bobbio ou Textura Aberta para Hart, cede, num ângulo interpretativo pós-positivista, para as normatizações incluídas na Lei 9.503/97, com caráter nitidamente especial e cronologicamente posterior em relação ao tema de forma a derrogar a norma contravencional, no tocante aos veículos automotores terrestres.
Racionalmente, o silêncio do legislador no art. 309 do CTB, depois de passarmos pelas disposições do art. 162, I e II, do mesmo código, é realmente eloqüente. Disse sem dizer ao decidir escalonar direção sem habilitação como infração puramente administrativa e direção sem habilitação gerando perigo de dano como fato típico criminal. Daí em diante, num juízo de argumentações, critério da especialidade da norma, validade procedimental, alicerçando bases das teses argumentativas dos princípios da intervenção mínima do direito penal, da razoabilidade e da proporcionalidade entre ação e reação estatal – fórmula esta há muito abordada por Cesar Beccaria em sua obra Dos delitos e das penas –, é forçoso reconhecer a derrogação da LCP, em relação aos veículos terrestres.
2 - A solução desse caso é diferente conforme se considere o modelo positivista ou pós-positivista?
RESPOSTA: Sim.
Partindo-se da concepção do direito positivo como um sistema de comandos legais, de validade formal, e como método interpretativo mecanicista com função puramente declaratória, inexiste aqui o choque normativo. [06] Se por ventura adotássemos uma linha argumentativa positivista, reconhecendo a coexistência de regras e de princípios (Bobbio, Kelsen e Hart) [07] e a discricionariedade do juiz para adotar decisão do caso concreto, mesmo assim não existiria conflito. As duas normas coexistiriam em situações semelhantes, porém, distintas. A aplicação da norma jurídica ao caso concreto se limitaria a uma neutra operação lógico-formal – subsunção e não ponderação ou racionalização de argumentos – e, como tal, refratária aos valores sociais e aos ensinamentos de validade procedimental. Aos positivistas, norma é norma e pronto, inexistindo lacunas no ordenamento jurídico, tudo é solucionável por métodos de hermenêutica, no qual se excluem criação, integração e construção. Aqui, a letra da lei difere adequação dos fatos em caso de perigo concreto e abstrato aos veículos terrestres. Existindo o perigo concreto, aplica-se o art. 309 do CTB; ausente o perigo de dano, vige o art. 32 da LCP.
Lado outro, a derrogação do art. 32 da LCP, em razão da promulgação, publicação e vigência do art. 309 do CTB, decorre de uma interpretação mais ampla decorrente da validade procedimental – ora formal, ora material, sem ser nenhuma das duas. Argumentações racionais não contraditórias, sistemáticas, não exclusivas ao texto legal dos artigos em conflito ou aos limites positivistas mecanicistas ou corrente diversa delegatária discricionariedade do parlamento ao juiz, onde dada inexistência de uma opção expressa e literal do parlamento incluída no texto desse normativo mais recente tornar-se-á necessário buscar a coerência do sistema com objetivo de trazer à lume, num juízo de ponderação de princípios, aquela decisão razoável, justa e legítima para o caso concreto dentro dos padrões do pós-positivismo, imperativo categórico e dos parâmetros traçados pela vigas mestras de sua construção.
Surge, daí, em linha argumentativa, o silêncio eloqüente do legislador no art. 309, no que se refere à direção sem gerar perigo de dano, é, de antemão, suprido pelo art. 162, I e II, do mesmo código, por meio dos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade entre ação e reação estatal atreladas ao princípio da fragmentariedade e da intervenção mínima do direito penal. Tudo isso, pesado e sopesado, indica-nos que o art. 32 da LCP encontra-se derrogado para os fatos que envolvem veículos terrestres.
Há que se dizer que a liberdade regrada do hermeneuta na seara pós-positivista ou a escravidão formal positivista aqui é, senão, o âmago, o centro, o cerne de duas soluções absolutamente antagônicas para um só sistema: posicionar-se pela derrogação ou não do art. 32 da Lei de Contravenções Penais nos casos de veículos automotores terrestres. Outrossim, mesmo sob a égide do pós-positivismo, não podemos deixar de reconhecer influências do jusnaturalismo no reconhecimento de princípios e de normas naturais em busca da transcendência de valores ao sistema normativo justo ou moralmente aceito pelos súditos, bem como do próprio positivismo para os casos de deliberação expressa do parlamento infraconstitucional e sua concepção em torno da validade formal dessa manifestação. Nesse caso, não haverá margens para interpretação e racionalização do texto legal, mas, sim, mero juízo de constitucionalidade ou versa do objeto estudado. A vontade expressa nos casos ali abordados é a do legislador, sendo, em tais casos, constitucionalmente adequada ou inadequada. Esse limiar entre a plena liberdade do intérprete e o que denominamos de liberdade parametrizada do pós-positivismo é a linha divisória entre mens legis e transferência de soberania parlamentar de muito temida por Pimenta Bueno.
II -Interpretação por desintegração, integração e hiper-integração [08]
Quando nos referirmos em ler por desintegração, significa aproximarmo-nos da Constituição ignorando o fato, claramente visível, de que suas partes estão ligadas ao todo: é a Constituição que carece de interpretação e não um apanhado de cláusulas desconexas e meras provisões com históricos diversos.
Quando nos referirmos em ler por hiper-integração, significa aproximarmo-nos da Constituição ignorando o fato, não menos importante, de que o todo é composto por diferentes partes: partes que, em alguma instância, foram adicionadas por uma ampla variedade de questões relativas à história da América; partes que são defendidas ou atacadas por grupos opostos e completamente diferentes entre si; partes que refletem premissas diferentes e, com freqüência, radicalmente incompatíveis.
Vale salientar, antes de abordamos a problemática com base nos ensinamentos de Laurence Tribe e Michael Dorf, que o todo não significa unidade. Visão única. A constituição daqueles que estão lá no norte ou de nós aqui no sul é composta por variedades, direita, esquerda e grande centro, e ainda partes adicionadas no curso da vigência constitucional. Traz em seu bojo subsistemas constitucionais ligados, obviamente, a uma proposta de constituição ou núcleo duro do texto constitucional, nos ensinamentos de Carlos Ayres Britto. [09]
Primeiro, é importante identificarmos quais os princípios constitucionais estão direta e indiretamente relacionados com a problemática proposta na primeira parte deste estudo. Salientamos, outrora, que, desde nosso primeiro contato com a questão e no curso da solução encontrada, já identificamos interesse constitucional direto na controvérsia do tema ao abordamos, ainda que de passagem, o princípio da intervenção mínima do direito penal, da proporcionalidade entre ação e reação estatal, e, por último, da razoabilidade nas aplicações e determinações constitucionais.
Relembro nossa argumentação.
"Na questão proposta, outra não foi a posição adotada pela Suprema Corte, com a qual nos filiamos, ao decidir pela derrogação do art. 32 da Lei de Contravenções Penais, no tocante aos veículos automotores terrestres. A Suprema Corte buscou nos princípios e na vontade do parlamento a solução para o caso sob seu julgo. Utilizou-se além do princípio da especialidade [10] notoriamente dimensionado nos v. acórdãos, cronologia das disposições legais, bem como, direção constitucional de intervenção mínima do direito penal como forma de aglutinar o entendimento pelo qual o legislador dos anos 90 ao tipificar o crime em testilha apenas para os casos em que gerado perigo de dano concreto para pessoas determinadas ou indeterminadas, derrogou, num silêncio eloqüente, o artigo contravencional em referência.
"A lei nova contém hipótese de abolitio criminis, no tocante à direção inabilitada normal de veículo automotor (caminhões, automóveis etc.). Por ser a Lei de Contravenções Penais, neste ponto em análise, norma mais geral do que outras na visão kelseniana, generalíssimas nos dizeres de Bobbio ou Textura Aberta para Hart, cede, num ângulo interpretativo pós-positivista, para as normatizações incluídas na Lei 9.503/97, com caráter nitidamente especial e cronologicamente posterior em relação ao tema de forma a derrogar a norma contravencional, no tocante aos veículos automotores terrestres.
"Racionalmente, o silêncio do legislador no art. 309 do CTB, depois de passarmos pelas disposições do art. 162, I e II, do mesmo código, é realmente eloqüente. Disse sem dizer ao decidir escalonar direção sem habilitação como infração puramente administrativa e direção sem habilitação gerando perigo de dano como fato típico criminal. Daí em diante, num juízo de argumentações, critério da especialidade da norma, validade procedimental, alicerçando bases das teses argumentativas dos princípios da intervenção mínima do direito penal, da razoabilidade e da proporcionalidade entre ação e reação estatal – fórmula esta há muito abordada por Cesar Beccaria em sua obra Dos delitos e das penas –, é forçoso reconhecer a derrogação da LCP, em relação aos veículos terrestres."
Daí, então, podemos perceber que, durante nossa argumentação na primeira parte deste artigo, passamos desapercebidos ou, propositadamente, desvinculados da cláusula constitucional que determina presunção de inocência, do subprincípio da necessidade e do devido processo legal. Numa visão substantiva, todos, no entanto, abordados nas argumentações doutrinárias e jurisprudências adiante mencionadas.
Na doutrina, Luiz Flávio Gomes entende que "a presunção legal de perigo viola o Direito Penal da culpa e conflita radicalmente com a presunção constitucional de inocência". [11]
Na condução do voto divergente pelo Ministro Sepúlveda Pertence, no julgamento do RHC n. 80362-8/SP, foi inserida importância da intervenção mínima do direito penal como fundamento, inclusive, do devido processo legal, do subprincípio da necessidade e aquele outro da proporcionalidade entre ação e reação estatal.
Transcrevo o trecho:
"Last but not least, Sr Presidente, não posso deixar de explicitar minha convicção de que – ante o quadro de notória impotência do Judiciário para atender à demanda multiplicada de jurisdição e, de outro, à também notória impotência do Direito Penal para atender aos que pretendem transformá-lo em mirífica, mas ilusória, solução de todos os males de vida em sociedade –, tendo, cada vez mais, aplaudir a reserva à sanção e ao processo penal do papel de ultima ratio, e, sempre que possível, a sua substituição por medidas civis ou administrativas, menos estigmatizantes e de aplicabilidade mais efetiva.
"Mais que tradução de uma simples tendência de política criminal, o princípio da intervenção mínima se me afigura derivado do substantive process of law, consagrado no art. 5.º, LIV, da Constituição, e que traz consigo, segundo já se tem assinalado o Tribunal, o princípio da proporcionalidade: certo que a pena – como corretamente observou Roxin – é ‘a intervenção mais radical na liberdade do indivíduo que o ordenamento jurídico permite ao Estado’, segue-se – como é do subprincípio da necessidade, que o apelo à criminalização só se legítima na medida em que seja a sanção penal ‘a medida restritiva indispensável à conservação do próprio ou de outro direito fundamental a que não possa ser substituído por outra igualmente eficaz, mas menos gravosa’". [12]
Cumpre, em nome da intervenção mínima – contra a doença sempre tendente às recidivas, que Carrara chamou de "nomomania ou monorréia" penal –, a esquecida primeira parte do art. 8.º da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789:
"La loi ne doit pás établir que des peines strictmente e évidemment nécessaires. ..".
Solução encontrada pela doutrina, pelo Supremo Tribunal Federal e indicada por nós, na primeira parte deste estudo, data venia, é exata, no ponto, no meio termo. Não desintegra nem tampouco hiper-integra normas e princípios na interpretação do caso em apreço.
Não desconhecemos que, assim como a constituição dos Estados Unidos da América, a nossa, de texto analítico, com cinqüenta e tantas emendas, igualmente não pode ser lida como uma só voz, única, um todo unitário, coeso, complexo e perfeito. A Constituição para breve completará 20 anos de promulgação, com alterações, sobreposições, oposições e situações, mas temos uma diferença: nosso problema de coesão é sabidamente de menor intensidade àquela dos colegas americanos do hemisfério norte, em que vige a mesma constituição com pouquíssimas emendas desde século XVIII e, sobretudo, na qual as emendas constitucionais não são passíveis de controle de constitucionalidade pela Suprema Corte. [13] Fortalecendo a unidade de nossa constituição, existe ainda o fato de que a despeito das subcomissões temáticas criadas quando dos trabalhos da assembléia constituinte originária, tivemos, às pressas é verdade, comissão de revisão e sistematização, preocupação inexistente nos trabalhos constitucionais norte americanos. Na eventualidade de que tudo isso falhe, temos o controle de constitucionalidade preventivo conduzido diuturnamente pelas Comissões de Constituição e Justiça na Câmara e no Senado, controle de constitucionalidade difuso, incidental, de competência de qualquer órgão do Judiciário e o controle concentrado de constitucionalidade, também, sobre as emendas constitucionais propostas e promulgadas pelo poder Constituinte Reformador.
Se aqui o mundo girou algumas vezes nesses quase vinte anos, lá, na América do Norte, centenas de dezenas de vezes a sociedade mudou, evoluiu, amadureceu, involuiu.
Dizemos isso para consignar que o nosso todo constitucional é muito mais integrado do que a constituição estadunidense, com mecanismos de controle de constitucionalidade sobre alterações de seu texto, os quais não existem efetivamente na constituição americana.
Disso decorre que a solução do tema, – conflito LCP vs CTB –, integrar, desintegrar e hiper-integrar torna-se mais árduo em relação em encontrar uma solução hiper-integrativa.
Desintegrar é simples. Bastaria manter ambas as normas em validade sob a escusa de que tratam de delitos similares, mas distintos; cujo objetivo é resguardar a segurança do trânsito de veículos automotores terrestres como forma de garantir a inviolabilidade à vida e à incolumidade física dos motoristas, pedestres e passageiros, conforme o art. 5.º, caput, do texto constitucional.
A integração é a resultante e o resultado anteriormente abordados com exclusão. Pedimos venia ao Ministro Sepúlveda Pertence, em relação à cláusula do devido processo legal.
A hiper-integração, dentro de nossa visão mitigada, seria, afora todos os argumentos da solução encontrada, acrescentarmos, além da intervenção mínima do direito penal, da proporcionalidade, da razoabilidade, da necessidade, da presunção inocência e da dignidade da pessoa humana, [14] o posicionamento sobre as vigas dos direitos sociais da pessoa humana no aspecto segurança [15] e por último no art. 196 do texto constitucional sob a literalidade da primeira parte que garante a saúde como direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas [16] sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos. Nesse caso, ambas as figuras criminais coexistiriam para tais fins: redução da insegurança e dos danos físicos às pessoas como corolário da função preventiva da pena.