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A compreensão do termo “arma” para fins de aplicação do Direito Internacional Humanitário.

Uma proposta de entendimento em face dos conflitos armados omnidimensionais do século XXI

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04/06/2025 às 15:32
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3. O termo “arma” nos tratados internacionais de DIH e na legislação de alguns Estados.

Como já adiantado, não há conceito de arma nos tratados de DIH.

As Convenções de Genebra, os Protocolos Adicionais, ou a Convenção sobre Certas Armas Convencionais, adotada em Genebra, em 10 de outubro de 1980 não trazem qualquer definição de arma.

O Tratado sobre o Comércio de Armas36, firmado em Nova York em 3 de junho de 2013, omite uma conceituação de “arma”. Apenas estabelece um rol não taxativo das categorias de armas convencionais - tanques de guerra; veículos de combate blindados; sistemas de artilharia de grande calibre; aeronaves de combate; helicópteros de ataque; navios de guerra; mísseis e lançadores de mísseis; e armas pequenas e armamento leve.

De igual modo, a BWC não conceitua “arma”. Porém, afirma, em seu preâmbulo que os Estados Partes estão “(r)esolvidos, para o bem de toda a humanidade, a excluir completamente a possibilidade de agentes bacteriológicos (biológicos) e toxinas serem usados ​​como armas”.

Por seu turno, a CWC, que vigora desde 29 de abril de 1997, no artigo II, traz o significado de armas químicas como sendo produtos químicos tóxicos e seus precursores listados nos três anexos à CWC, exceto quando destinados a fins não proibidos por aquela Convenção. Trata-se a arma química de produto químico que, através de sua ação química nos processos vitais, possa causar morte, incapacitação temporária ou dano permanente a seres humanos ou animais37.

A CWC também considera que o significado de armas químicas abrange as munições e os dispositivos especificamente concebidos para causar a morte ou outros danos através das propriedades tóxicas dos produtos químicos tóxicos e também qualquer equipamento especificamente projetado para uso direto em conexão com o emprego das mencionadas munições e dispositivos38.

Em verdade, a CWC, embora delimite a abrangência do que seja uma arma química, não conceitua o termo “arma”. A convenção apenas retrata a vedação do uso de certos produtos químicos tóxicos, listados nos seus anexos, como armas.

Cabe mencionar que o Tratado Sobre a Proibição de Armas Nucleares, aprovado em 7 de julho de 2017, mas ainda em busca de cinquenta assinaturas para entrar em vigor, e o Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares39, em vigor desde 5 de março de 1970, não trazem o conceito de “arma”, tampouco o de “arma nuclear”.

De igual modo, as Resoluções da Assembleia Geral40 e do Conselho de Segurança41 da ONU sobre Armas de Destruição em Massa42 não trazem conceito a respeito do que seja o termo “arma”. Limitam-se a declarar que as armas nucleares, químicas e biológicas, assim como os seus vetores, são ameaça para a paz e para a segurança internacionais.

Portanto, torna-se necessário averiguar como a questão é tratada internamente pelos Estados signatários dos tratados de DIH. A pesquisa, então, constata o seguinte óbice à regulamentação dos AWS como armas: no âmbito de diversos Estados não se encontra uma definição uníssona sobre o que seja “arma”. Para ampliar a dificuldade, poucos Estados quando adotam alguma conceituação sobre o termo “arma”.

Lawand, Coupland e Herby43 elencam diversos conceitos empregados por alguns países, citando, por exemplo, que a Austrália define ''arma'' como ''instrumento ofensivo ou defensivo de combate usado para destruir, ferir, derrotar ou ameaçar”. O conceito de arma australiano inclui, ademais, os “sistemas de armas, munições, submunições, munições, dispositivos de mira e outros mecanismos de dano ou ferimento''.

Os autores mencionam que, para a Bélgica, o termo “arma” significa “'qualquer tipo de arma, sistema de arma, projetil, munição, pólvora ou explosivo, projetado para colocar fora de combate pessoas e/ou material''.

Lawand, Coupland e Herby informam que a Noruega define “arma” como “qualquer meio de guerra, sistemas/projeto de armas, substância, etc. que seja particularmente adequado para uso em combate, incluindo munição e partes funcionais semelhantes de uma arma.''

Os citados autores aduzem que, nos Estados Unidos, o termo “arma” se refere a “todas as armas, munições, material, instrumentos, mecanismos ou dispositivos que tenham o efeito pretendido de ferir, danificar, destruir ou incapacitar pessoal ou propriedade''.

Ainda segundo os referidos autores, os Estados Unidos adotam, ainda, entendimento sobre o que seja ''sistema de armas'', qual seja, a própria arma e os componentes necessários para a sua operação, aí inclusas as tecnologias novas, avançadas ou emergentes, as quais podem resultar no desenvolvimento de armas ou sistemas de armas e que têm implicações legais e políticas significativas.

O Brasil possui sua definição de arma, contida no Glossário das Forças Armadas do Ministério da Defesa44, no qual “arma convencional” é descrita como sendo aquela que atende a usos e costumes da guerra e sistema de armas como o conjunto composto de armas, munições, acessórios, equipamentos bélicos, computadores/calculadores, sensores e interligações, que interagem para levar o poder destruidor das armas ao alvo.


4. A proposta de um norte para a compreensão do termo “arma” em DIH.

As definições e entendimentos transcritos no capítulo anterior abarcam elementos comuns, aptos a nortear a noção do que vem a ser “arma”: instrumento de combate para destruir e causar danos ao inimigo; instrumento para colocar fora de combate os integrantes ou materiais das forças armadas inimigas; meio de guerra para uso em combate, podendo ser também o material, os instrumentos, os mecanismos ou os dispositivos com esse desiderato e que atendam aos usos e costumes da guerra.

Esses elementos comuns às diversas definições de “arma” podem auxiliar na elaboração do conceito ou do entendimento a ser adotado.

Porém, para gizar o conceito de “arma”, deve ser adicionada a Declaração de São Petersburgo de 1868, em cujo preâmbulo consta que, numa guerra, “o único objetivo legítimo que os Estados devem se esforçar para realizar (...) é enfraquecer as forças militares do inimigo”.

O rápido desenvolvimento tecnológico que caracteriza o Conflito Armado Omnidimensional do Século XXI conduz ao entendimento de que “arma” não se trata necessariamente do objeto criado especialmente para o combate ou adaptado para o combate, podendo ser aquele, mesmo intangível, ou imaterial, empregado para debilitar o aparato militar do inimigo e o seu esforço de guerra. Importa que o objeto seja voltado para o uso contra um objetivo militar.

Atualmente, deve-se considerar que o termo “arma”, consoante a definição da qual se valem os Estados Unidos, abrange também um software, como um vírus e especialmente um worm 45, uma vez que é comprovada a sua capacidade de inabilitar ou comprometer a produção de energia de centrais elétricas e nucleares. Logo, incapacitam um meio de emprego militar.

Nesse sentido, conveniente relembrar que o jornal The Washington Post publicou, em 2002, reportagem informando que em “1998, um hacker de 12 anos, explorando por brincadeira, invadiu o sistema de computador que administra a Represa Roosevelt, no Arizona”, tendo acesso a abertura das comportas46.

De igual modo, tem-se o bem documentado ataque realizado contra o sistema nuclear iraniano, por intermédio do worm Stuxnet. Esse worm é considerada por grande parte da literatura especializada como a primeira arma cibernética do mundo. Seu uso impactou uma infraestrutura física, atacando centrífugas nucleares iranianas, entre novembro de 2009 e o final de janeiro de 2010, danificando e destruindo recursos militares críticos e causando grandes interrupções no programa nuclear do Irã47.

Blake e Imburgia48, no entanto, relatam que, já durante a Guerra Fria, a Agência Central de Inteligência (CIA), supostamente, obteve acesso não autorizado a um computador soviético para instalar um código malicioso, chamado de bomba lógica, posteriormente utilizado para destruir um gasoduto soviético.

São também conhecidos os ataques cibernéticos lançados pela Rússia contra a Estônia, entre o final de abril e 18 de maio de 2007, os quais consistiram na negação de serviços de Internet. Esses ataques foram direcionados à infraestrutura do país, aos sites dos ministérios do governo, partidos políticos e bancos, com a intenção de causar sentimento de vulnerabilidade na população da Estônia49.

Esses exemplos de ataques a sistemas críticos revelam a possibilidade de que malwares sejam empregados para inutilizar drones e até mesmo AWS integrantes de um sistema de defesa. Também podem ser utilizados contra um sistema bélico de ataque que empregue a IA ou softwares convencionais, reduzindo as capacidades militares do inimigo. Por essa razão, embora sejam intangíveis, devem ser considerados, também, no conceito de “arma” e, nessa circunstância, seu emprego deve seguir as normas de DIH previstas para o emprego de armas.

Essa conclusão também foi alcançada por Blake e Imburgia50, os quais consignaram que é inconvincente sustentar que as capacidades espaciais e do ciberespaço não se qualificam como armas ou pelo menos como meios ou métodos de guerra.

Diante disso, este artigo propõe que deve ser considerado como “arma” qualquer material, instrumento, mecanismo ou dispositivo, inclusive softwares ou outro qualquer material intangível, que possa ou venha a ser empregado por uma das partes envolvidas em um Conflito Armado Internacional ou Não-Internacional, visando enfraquecer as capacidades bélicas de seu inimigo.


5. Considerações finais

Durante o desenvolvimento do DIH, mais importante do que conceituar o que vem a ser arma, é adequar o seu uso para proteger as populações civis e os próprios combatentes envolvidos num conflito armado.

Por uma vertente, pode-se afirmar que a fixação de um conceito fechado poderia resultar em que as partes envolvidas nos conflitos armados adotassem interpretações mais elásticas quanto ao uso de certos materiais, instrumentos, mecanismos ou dispositivos.

Por outra, será sempre inviável que os tratados de DIH, como qualquer norma jurídica, consiga abranger todos os casos que possam ser previstos de acontecer no mundo real, notadamente, numa área em constante evolução como é a arte da guerra.

Ainda há que se considerar que os tratados precisam congregar sempre uma visão que possa ser adotada de maneira mais ampla possível uma gana de Estados com pontos de vista divergentes.

Trata-se de um desafio antigo do DIH, que foi enfrentado na Convenção da Haia de 1899, convocada pelo Czar Nicolau II, a qual reuniu cento e oitenta delegados de vinte e seis países para discutir a manutenção da paz e a possibilidade de redução dos arsenais dos Estados51.

Na ocasião os signatários reconheceram a impossibilidade de acordar disposições abrangentes para todas as hipóteses de conduta em um Conflito Armado. Mas reconheceram que a ausência de regras abrangentes poderia vir a ser um grande problema porque resultaria em lacunas as quais, no fragor de um conflito armado, acabariam sendo preenchidas livremente pelos comandantes militares. Em consequência, haveria o risco de que fossem adotadas condutas contrárias ao espírito das normas estipuladas pela Convenção, podendo conduzir ao seu completo descrédito.

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Então, optaram por inserir essa disposição no Preâmbulo da Convenção da Haia II, da forma a seguir transcrita:

No entanto, não foi possível acordar imediatamente disposições que abranjam todas as circunstâncias que ocorrem na prática;

Por outro lado, não poderia ser pretendido pelas Altas Partes Contratantes que os casos não previstos, por falta de disposição escrita, fossem deixados ao julgamento arbitrário dos comandantes militares;

Até que seja emitido um código mais completo das leis da guerra, as Altas Partes Contratantes julgam por bem declarar que, nos casos não incluídos nos Regulamentos por elas adotados, as populações e beligerantes permanecem sob a proteção e o império dos princípios do direito internacional, como resultam dos usos estabelecidos entre as nações civilizadas, das leis da humanidade e das exigências da consciência pública; 52 (...) (Destaques nossos.)

Trata-se da chamada “Cláusula Martens”, nomenclatura ou termo empregado para designar o parágrafo 9º do Preâmbulo da Convenção da Haia II, relativa a Leis e Costumes de Guerra Terrestre e seus anexos (Haia II, de 1899), aprovada em 29 de julho de 1899. Sua leitura não pode ser feita fora do contexto dos dois parágrafos que a antecedem e a justificam.

Ainda hoje, permanecem como grandes questões do DIH a legalidade das armas empregadas nos conflitos armados e o uso das armas legais em conformidade com as Leis dos Conflitos Armados. Tais questões passam pela compreensão da noção do seja arma, a qual, no contexto dos Conflitos Armados Omnidimensionais do Século XXI – e do futuro - deve ser pensada como muito mais do que o artefato disparado no campo de batalha.

Nessa senda, esse artigo defende que, a partir do momento em que o Estado desenvolve algum material, instrumento, mecanismo ou dispositivos, inclusive softwares ou outro qualquer material intangível, com a finalidade de ser empregado em um Conflito Armado visando o enfraquecimento militar da força oponente, este objeto deve ser visto como tendo natureza jurídica de arma e, em consequência, e o seu emprego passa a ser regido, na condição de arma, pelo DIH.

Por essa razão, antes mesmo de ser empregado como nova arma, o Estado deve verificar se esse material está adequado às disposições tanto de direito consuetudinário e como positivadas em tratados de DIH, dos quais o Estado é parte, bem assim se o seu emprego está de acordo com as normas do Protocolo Adicional I e aos dos princípios da humanidade e dos ditames da consciência pública, ou seja, à luz da Cláusula Martens.

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Sobre o autor
Claudio Alves

Mestre em Direito. Oficial Superior do Quadro Complementar de Oficiais do Exército Brasileiro.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Claudio Alves. A compreensão do termo “arma” para fins de aplicação do Direito Internacional Humanitário.: Uma proposta de entendimento em face dos conflitos armados omnidimensionais do século XXI. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 30, n. 8008, 4 jun. 2025. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/114239. Acesso em: 5 dez. 2025.

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