Resumo: O presente artigo analisa as implicações da Lei Complementar nº 213/25, que estabelece o marco regulatório para a atividade de rateio de despesas por associações civis de proteção mutualista. O legislador criou uma figura jurídica autônoma, distinta do contrato de seguro empresarial. A nova lei, ao clarificar a natureza da operação, provoca a perda superveniente do objeto das ações judiciais em curso que visavam o reconhecimento de tal atividade como seguro ilegal. A aplicação retroativa da norma, por seu caráter interpretativo e mais benéfico, pacifica um longo e custoso litígio social e jurídico.
Palavras-chave: Proteção Mutualista; Rateio de Despesas; Seguro; Lei Complementar 213/25; Perda Superveniente do Objeto; Retroatividade da Lei; Hermenêutica Jurídica.
1. O FIM DA INCERTEZA JURÍDICA
O fenômeno das associações de proteção veicular emergiu como uma resposta social a uma necessidade econômica: a diluição de riscos patrimoniais fora do modelo empresarial tradicional. Contudo, essa inovação social com base na liberdade constitucional de associação gerou um profundo e desgastante conflito de enquadramento jurídico.
A tensão se estabeleceu entre a liberdade fundamental de associação para fins lícitos (art. 5º, XVII, CF), pilar do direito civil e expressão da autonomia privada coletiva, e o monopólio estatal na regulação do mercado de seguros (Decreto-Lei nº 73/66), um imperativo de ordem pública econômica.
Durante décadas, o cenário jurídico brasileiro foi palco de um intenso debate sobre a natureza das atividades desempenhadas por associações civis que possibilitam proteção patrimonial a seus membros através de um sistema de rateio de prejuízos já ocorridos. De um lado, o Ministério Público e a Superintendência de Seguros Privados (SUSEP) argumentavam que tais operações constituíam uma forma de seguro operada à margem da regulação estatal, em violação ao Decreto-Lei nº 73/66. De outro, as associações defendiam seu enquadramento no direito associativo, previsto no art. 5º, XVII, da Constituição Federal, sustentando que a ausência de fins lucrativos, a natureza de autogestão e o rateio a posteriori dos prejuízos as diferenciavam fundamentalmente das seguradoras.
Este conflito resultou na judicialização massiva da questão, gerando insegurança para milhões de associados e para as próprias entidades. É neste contexto que surge o marco regulatório da Lei Complementar nº 213/25, que visa precisamente pôr fim à controvérsia.
O presente estudo se debruça sobre a inovação legislativa para demonstrar que, ao reconhecer e regulamentar a atividade de proteção mutualista, o legislador a distinguiu, de forma inequívoca, do seguro empresarial. A análise se concentrará na tese de que essa definição legal explícita esvazia o objeto das ações judiciais em curso, impondo sua extinção sem resolução de mérito, à luz dos princípios da hermenêutica e do direito processual.
2. A NATUREZA DA PROTEÇÃO MUTUALISTA SOB A ÓTICA DA NOVA LEI
A chave para a resolução da controvérsia reside na interpretação do texto legal. A LC 213/25 não apenas cria regras para a operação das associações, mas, fundamentalmente, define sua identidade jurídica. O art. 88-N, §2º, II, do Decreto-Lei nº 73, de 21 de novembro de 1966 (Lei do Seguro Privado) é dispõe a esse respeito: “as operações de proteção patrimonial mutualista não correspondem a operações de seguros”.
A interpretação literal, ou gramatical, é o primeiro passo. O texto do inciso II é cristalino e não deixa margem para ambiguidades: as operações "não correspondem a operações de seguros". Trata-se de uma negativa expressa, uma opção clara do legislador. Conforme ensina Carlos Maximiliano, em sua clássica obra "Hermenêutica e Aplicação do Direito", a clareza do texto legal é o ponto de partida e de chegada da interpretação, quando não contraria a finalidade da norma. A finalidade da LC 213/25 é, justamente, criar um ambiente de segurança jurídica, retirando a atividade do limbo regulatório. A maneira mais eficaz de atingir esse objetivo era, precisamente, afirmar sua natureza distinta do seguro, encerrando a disputa conceitual.
A lei é a expressão da vontade soberana do Estado, manifestada por seus representantes eleitos. O Poder Legislativo exerceu sua prerrogativa de definir os contornos das relações privadas e associativas. A distinção contida no art. 88-N, § 2º, II, não é um mero detalhe, mas o pilar central do novo diploma. Trata-se de uma "norma definidora de regime jurídico", que cria um microssistema próprio para a proteção mutualista, paralelo e não concorrente ao sistema de seguros privados.
O rateio de despesas entre os associados é a expressão máxima do mutualismo, em que não há transferência de risco para um terceiro (a seguradora) em troca de um prêmio calculado atuarialmente, mas sim a divisão de um prejuízo comum entre os próprios membros do grupo. A LC 213/25, portanto, apenas positivou o que a melhor doutrina já defendia.
A promulgação da Lei Complementar nº 213/25 demonstra o legislador ordinário na sua prerrogativa soberana para solucionar um litígio social. Este artigo avança a tese de que a LC 213/25 não é uma mera lei regulatória, mas uma norma de interpretação autêntica e de pacificação, cujos efeitos transcendem sua vigência, impactando diretamente a estrutura lógica das ações judiciais em curso que estão tratando sobre a operação da proteção veicular, de forma específica, se essa operação é de seguros ou não.
3. RETROATIVIDADE DA NORMA E A PERDA SUPERVENIENTE DO OBJETO PROCESSUAL
Se a nova lei estabelece que a atividade de rateio não é uma operação de seguro, qual o destino das ações judiciais, ajuizadas antes de sua vigência, cuja causa de pedir é exatamente a alegação de que tal atividade seria um seguro ilegal? A resposta está na teoria do direito processual civil, especificamente na figura da perda superveniente do interesse de agir, que leva à extinção do processo por perda de seu objeto.
O interesse de agir, uma das condições da ação, repousa no binômio necessidade-adequação. A ação judicial precisa ser necessária para que o autor obtenha o bem da vida pretendido.
A pretensão nas ações contra as associações era obter uma declaração judicial de que suas operações eram securitárias. Contudo, com o advento da LC 213/25, o próprio ordenamento jurídico agora afirma o contrário. A tutela jurisdicional tornou-se, portanto, desnecessária e até mesmo inadequada, pois um provimento judicial que contrariasse o texto expresso da nova lei seria, em si, ilegal.
O interesse de agir deve perdurar até o final do processo, se um fato novo (fato superveniente) esvazia a pretensão do autor, o processo perde seu sentido. A LC 213/25 é, para esses processos, o fato superveniente.
Reforça essa tese o argumento da retroatividade benigna da lei. O art. 6º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB) consagra o princípio da irretroatividade. Contudo, a própria LINDB e a doutrina majoritária admitem exceções, como no caso de normas de caráter interpretativo ou quando a retroatividade beneficia o sujeito.
A LC 213/25 pode ser vista como uma lei interpretativa, pois ela não cria uma realidade jurídica do zero, mas clarifica a natureza de uma relação social e jurídica preexistente e controversa. Se ela define qual era a interpretação correta a ser dada à atividade das associações de proteção veicular; dessa forma, sua aplicação deve retroagir para pacificar as relações pendentes.
As ações em curso buscavam a aplicação de sanções, como o encerramento das atividades e multas, com base na suposta ilegalidade. Aplicando-se por analogia o princípio da retroatividade da lei penal mais benéfica (lex mitior), seria um contrassenso continuar a processar uma associação por uma conduta que o próprio Estado, em um momento posterior, reconheceu como legítima e dotada de regime jurídico próprio.
A nova lei se impõe por ser uma norma de ordem pública mais benéfica, ela visa proteger a segurança jurídica e a confiança legítima de milhões de associados que aderiram a um modelo de proteção patrimonial agora reconhecida sua natureza jurídica. Seria uma quebra da isonomia e da razoabilidade permitir que uma associação fosse punida com base em uma interpretação legal que o próprio Estado rechaçou e superou.
Com base na referida lei, uma ação civil pública em curso reconheceu a perda do objeto, a magistrada decidiu “Constata-se, pois, que não subsiste qualquer utilidade prática em um futuro provimento judicial, uma vez que o objeto da presente ação fora perdido ante a superveniência da aplicação da nova lei em detrimento da antiga interpretação legal. Sendo assim, a atuação da empresa, ora ré, passou a se encaixar na previsão legal de operação de proteção”1
Portanto, em qualquer ação ainda não transitada em julgado, cabe à parte interessada peticionar ao juízo, demonstrando que:
A associação se enquadra no conceito de grupo de proteção patrimonial mutualista, conforme os ditames da LC 213/25,
A inovação do novo art. 88-N, § 2º, II, do Decreto-Lei nº 73/1966 representa um fato novo que remove a causa de pedir da ação (a alegação de que a atividade é seguro) e
Diante da perda superveniente do objeto e do interesse de agir, o processo deve ser extinto sem resolução do mérito, nos termos do art. 485, VI, do Código de Processo Civil.
CONCLUSÃO
A Lei Complementar nº 213/25 representa um divisor de águas para as associações de proteção veicular. Ao intervir de forma decisiva na controvérsia, o legislador não apenas criou regras para o futuro, mas ofereceu a chave hermenêutica para a solução do passivo judicial, evitando o gasto dos recursos públicos e privados, fornecendo uma solução definitiva sobre a natureza da operação da proteção veicular.
A afirmação expressa de que a "proteção patrimonial mutualista não corresponde a operações de seguros" (art. 88-N, § 2º, II, Decreto-Lei nº 73/1966) tem o condão de fulminar o objeto das ações judiciais que se baseavam em tese oposta. A continuidade desses processos representaria uma afronta à vontade do legislador, um desperdício da atividade jurisdicional e a manutenção de uma insegurança jurídica que a própria lei visou extinguir.
Cabe ao Poder Judiciário, em sua função de aplicar o direito vigente, reconhecer a inovação legislativa e, com base na doutrina processual da perda superveniente do objeto e nos princípios da hermenêutica que governam a aplicação da lei no tempo, decretar a extinção dos feitos pendentes, consagrando a pacificação social e a segurança jurídica que a Lei Complementar 213/25 buscou estabelecer. A extinção desses processos por perda superveniente do objeto não é uma opção, mas uma imposição da correta aplicação do direito processual, da hermenêutica jurídica e dos princípios fundamentais que regem o Estado Democrático de Direito.
A tarefa do Judiciário, agora, é reconhecer a decisão do Poder Legislativo de que a operação de proteção não pode ser configurada como seguro empresarial, aplicar a norma de pacificação e, ao extinguir os feitos, chancelar o fim do litígio, permitindo que a energia social e estatal seja canalizada para a fiscalização do cumprimento do novo e claro regime jurídico.
Portanto, em qualquer ação ainda não transitada em julgado e trate apenas da natureza da operação de rateio, cabe o reconhecimento, de ofício ou a requerimento, de que o advento da LC 213/25 constitui fato superveniente que acarreta a perda do interesse de agir. A extinção dos feitos é a medida de correta aplicação do direito processual, da hermenêutica jurídica e dos princípios fundamentais que regem o Estado Democrático de Direito, consagrando, por fim, a pacificação social e a segurança jurídica que a nova lei visou estabelecer.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal, 1988.
BRASIL. Decreto-Lei nº 73, de 21 de novembro de 1966. Dispõe sobre o Sistema Nacional de Seguros Privados, regula as operações de seguros e resseguros e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 22 nov. 1966.
BRASIL. Decreto-Lei nº 4.657, de 4 de setembro de 1942. Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro. Diário Oficial da União, Rio de Janeiro, 9 set. 1942.
BRASIL. Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015. Código de Processo Civil. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 17 mar. 2015.
BRASIL. Lei Complementar 213, de 15 de janeiro de 2025.
MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito. 22ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020.
Nota
1 ACP nº. 0804417-10.2023.4.05.8300