3. ASPECTOS JURÍDICOS E CRÍTICOS DA PRESUNÇÃO DE CAPACIDADE DE PAGAMENTO
3.1. INSEGURANÇA JURÍDICA E AUSÊNCIA DE CONTRADITÓRIO EFETIVO
A presunção de capacidade de pagamento, conforme atualmente operacionalizada pela Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN), representa uma problemática jurídica de grande envergadura, notadamente pela fragilidade dos instrumentos administrativos destinados à impugnação dessa estimativa presuntiva. De acordo com a Portaria PGFN nº 6.757/2022, a aferição da capacidade econômica do contribuinte se apoia majoritariamente em modelos automatizados e em bases de dados que, embora robustas, não conseguem capturar a totalidade das variáveis que determinam a real condição financeira do devedor (Brasil, 2022). Essa metodologia, amplamente criticada por especialistas do direito tributário, compromete a efetividade dos direitos fundamentais do contribuinte, uma vez que não assegura um contraditório substancial, mas meramente formal (Andraschko, 2023). Assim, a ausência de um espaço institucional adequado para a contestação do modelo presuntivo resulta em insegurança jurídica, minando a credibilidade e a legitimidade do próprio instituto da transação tributária (Freire, 2023).
Nesse contexto, a segurança jurídica, pilar essencial do Estado Democrático de Direito, sofre significativa erosão. Conforme expõe Hugo de Brito Machado (2003), o contribuinte deve dispor de garantias jurídicas que lhe permitam conhecer, contestar e modificar decisões que afetem seu patrimônio. No entanto, ao presumir-se uma capacidade de pagamento dissociada da realidade financeira individual, impõe-se ao sujeito passivo um ônus probatório desproporcional, sem a correspondente previsão de mecanismos eficazes para rebater a construção estatal (Caliendo, 2021). O sistema atual, ao prescindir de um contraditório dialógico e de uma ampla defesa material, desrespeita os princípios do devido processo legal e da isonomia, criando um cenário de litigiosidade forçada e desconfiança institucional (Torres, 2004).
Ademais, a construção presuntiva da capacidade de pagamento desconsidera elementos contingenciais e conjunturais que impactam diretamente na solvência do contribuinte, como crises econômicas setoriais, eventos extraordinários (como pandemias) e oscilações no mercado financeiro (Insper, 2021). Como salientado por Ribeiro (2022), a generalização de critérios empíricos, sem a possibilidade de sua adequada contestação técnica, resulta na desumanização do processo administrativo tributário. O modelo atual ignora nuances subjetivas e complexidades microeconômicas, gerando distorções que afetam, sobretudo, contribuintes em situação de vulnerabilidade econômica e operacional (De Souza, 2021). Tal descompasso entre a realidade e a construção algorítmica da capacidade de pagamento evidencia a necessidade de uma reforma estrutural do sistema de avaliação da dívida ativa da União (PGFN, 2023).
É imperativo destacar que a presunção de capacidade, tal como concebida, configura verdadeira ficção jurídica. De acordo com Carrazza (1991), presunções legais absolutas devem ser excepcionais no ordenamento jurídico, justamente por sua incompatibilidade com os princípios da ampla defesa e do contraditório. A imposição de um modelo de transação baseado em parâmetros imutáveis e tecnocráticos restringe indevidamente a liberdade negocial do contribuinte, subvertendo a lógica da autocomposição fiscal prevista na Lei nº 13.988/2020 (Brasil, 2020). Como observa Júnior (2023), a transação tributária não pode se converter em instrumento de coerção unilateral, mas deve preservar a essência da bilateralidade, garantindo igualdade material entre as partes.
Outro ponto de inflexão reside na própria metodologia de cálculo da capacidade de pagamento, cuja complexidade técnica contrasta com a ausência de transparência dos algoritmos e dos critérios utilizados pela Administração Tributária. Segundo análise crítica de Natalia Dacomo (2008), a opacidade dessas ferramentas compromete a legitimidade da decisão administrativa, uma vez que o contribuinte não possui pleno acesso aos dados e fundamentos que sustentam sua classificação de risco. Em um sistema republicano, a Administração Pública deve pautar suas decisões nos princípios da motivação e da publicidade, sob pena de nulidade dos atos administrativos (De Faria, 2007). Nesse cenário, a revisão do modelo presuntivo deve incluir a publicização dos critérios técnicos e a disponibilização de ferramentas interativas de revisão e diálogo institucional (Silva, 2022).
Em termos práticos, a aplicação indiscriminada da presunção de capacidade de pagamento pode acarretar sérios efeitos colaterais, tanto para o contribuinte quanto para o próprio Estado. Conforme demonstrado no relatório da PGFN em Números (2023), a inadimplência continua elevada, mesmo diante dos instrumentos de transação tributária, o que sugere um desalinhamento entre os parâmetros estimativos utilizados e a realidade financeira dos devedores. A manutenção de critérios rígidos e unilaterais compromete a efetividade da recuperação fiscal, transformando a transação em um instituto meramente formal, sem potencial real de resolver o conflito tributário (Machado; Catarino; Sobral, 2023). Essa ineficiência estrutural exige a revisão crítica do atual sistema, com vistas à implementação de modelos mais flexíveis, dialógicos e adequados à realidade brasileira (Brasil, 2022).
Além disso, deve-se considerar a desproporcionalidade entre o modelo de presunção adotado e os princípios constitucionais da razoabilidade e proporcionalidade. Como defende Sacha Calmon Navarro Coelho (2000), o direito tributário deve respeitar os postulados do Estado Democrático, o que inclui o direito à defesa plena e ao contraditório substancial. Quando o Estado impõe ao contribuinte uma carga argumentativa sem lhe garantir os meios adequados de contestação, cria-se um desequilíbrio institucional que favorece a arbitrariedade e a iniquidade fiscal (Ribeiro, 2022). Dessa forma, a prática vigente fere o pacto federativo e solapa a confiança legítima que deve existir entre Fisco e contribuinte (De Brito Machado, 2003).
Do ponto de vista teórico, a crítica à presunção de capacidade de pagamento também se ampara no modelo dialético proposto por Paulo Caliendo (2021), que defende uma visão sistêmica e cooperativa do direito tributário. A adoção de métodos participativos de resolução de conflitos fiscais, como a mediação, a conciliação e a arbitragem tributária, pressupõe a superação da lógica impositiva e verticalizada que ainda predomina na atuação da PGFN (Machado; Catarino; Sobral, 2023). Assim, urge repensar o papel da Fazenda Pública não como ente punitivo, mas como agente da justiça fiscal, comprometido com a pacificação social e a sustentabilidade das relações jurídicas (Dacomo, 2008).
3.2. CONSEQUÊNCIAS PRÁTICAS DA RIGIDEZ NA PRESUNÇÃO PARA A EFETIVIDADE DA TRANSAÇÃO INDIVIDUAL
A rigidez na aferição da capacidade de pagamento, conforme atualmente delineada pela Portaria PGFN nº 6.757/2022, tem se revelado um obstáculo substancial à efetividade prática da transação tributária individual no Brasil, especialmente no tocante à sua função conciliatória. O mecanismo de avaliação da capacidade de pagamento, baseado em critérios padronizados e automatizados, desconsidera as especificidades da realidade econômico-financeira do contribuinte, reduzindo a negociação a uma simulação matemática distante da materialidade do caso concreto (Andraschko, 2023). Essa prática, embora tecnicamente eficiente do ponto de vista da celeridade administrativa, conduz à exclusão de propostas viáveis e sustentáveis de adimplemento fiscal, impedindo a celebração de acordos potencialmente benéficos tanto para o Estado quanto para o contribuinte (Silva, 2022). De acordo com a Lei nº 13.988/2020, a transação deve ter por objetivo a superação de litígios com concessões mútuas (Brasil, 2020), o que pressupõe uma postura mais flexível e dialógica por parte da administração tributária.
A lógica inflexível da presunção compromete, ademais, a própria racionalidade econômica que deveria orientar o processo de cobrança da dívida ativa. A imposição de critérios normativos uniformes ignora a diversidade de perfis empresariais, regionais e conjunturais que influenciam diretamente a solvência dos contribuintes (Caliendo, 2021). Estudos do Observatório das Transações Tributárias do Insper (2021) demonstram que cerca de 40% das propostas de transação são recusadas em razão de divergências quanto à capacidade de pagamento presumida, mesmo quando há documentação robusta que atesta a inviabilidade financeira dos termos propostos pela PGFN. Essa postura está em descompasso com os fundamentos principiológicos do direito tributário moderno, que privilegia a razoabilidade, a função social da empresa e a eficiência na arrecadação (Carrazza, 1991). Assim, a rigidez da modelagem atual compromete tanto a efetividade da cobrança quanto a sustentabilidade da atividade econômica.
Em um caso emblemático, uma empresa do setor de construção civil teve sua proposta indeferida com base no rating atribuído automaticamente pelo sistema da PGFN, desconsiderando uma queda abrupta no faturamento decorrente da paralisação de obras públicas durante a pandemia (Ribeiro, 2022). Tal cenário evidencia o déficit de diálogo e de reconhecimento da especificidade econômica que deveria nortear a transação como instrumento de justiça tributária (De Souza, 2021).
O modelo atual, ainda fortemente enraizado em uma concepção centralizadora do direito tributário, revela-se contraditório em relação à lógica da autocomposição e da consensualidade que a própria Lei nº 13.988/2020 se propôs a implementar (Brasil, 2020). A presunção rígida de capacidade contributiva configura uma antinomia entre o espírito da norma e sua concretização administrativa, criando um contrassenso normativo que compromete a eficácia da política pública (Freire, 2023). O ideal de uma transação justa e eficiente, com base em concessões recíprocas, pressupõe a existência de um espaço de negociação autêntico, no qual as alegações do contribuinte sejam ouvidas, examinadas e ponderadas de modo substancial e não apenas formal. Nesse contexto, a padronização excessiva converte-se em fator de exclusão, e não de racionalização.
A Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, ao adotar critérios uniformes e índices fechados de aferição da capacidade econômica, promove uma espécie de tecnocracia fiscal que ignora a dinâmica e a heterogeneidade das realidades empresariais (Machado; Catarino; Sobral, 2023). O “modelo de rating” que classifica os contribuintes como “A”, “B”, “C” ou “D”, conforme a capacidade presumida de pagamento tem servido como critério limitador e não habilitador da transação, contrariando a lógica de flexibilização que deveria pautar a autocomposição (Insper, 2021). Segundo dados do relatório “PGFN em Números” (2023), mais de R$ 1,2 trilhão em dívida ativa permanece sem perspectiva real de recuperação, e parte expressiva desse valor decorre de contribuintes economicamente inviáveis que, ainda assim, não são contemplados pelas transações por conta do modelo presuntivo de aferição da capacidade contributiva (PGFN, 2023).
A doutrina crítica tem apontado que o modelo atual fere o princípio da isonomia tributária, pois contribuintes em situações semelhantes podem receber tratamentos diametralmente opostos em virtude de erros ou imprecisões na modelagem dos algoritmos de classificação. O modelo desconsidera fatores conjunturais, como flutuações cambiais, crises setoriais ou eventos imprevisíveis, comprometendo a aderência da presunção ao princípio da capacidade contributiva (Torres, 2004). O tratamento padronizado, ao ignorar as especificidades fáticas do contribuinte, impede a análise individualizada e racional dos casos, afastando a possibilidade de soluções equitativas e eficientes. Trata-se, portanto, de uma disfunção normativa que compromete a finalidade precípua da transação: viabilizar a recuperação de créditos sem asfixiar a atividade econômica.
A jurisprudência já começa a reconhecer os limites da atuação administrativa baseada em presunções inflexíveis. Em decisões recentes, tribunais federais têm determinado a reanálise de propostas de transação com base na realidade documental do contribuinte, sob pena de violação aos princípios do contraditório e da ampla defesa (Júnior, 2023). Nesses casos, a atuação judicial funciona como mecanismo de correção das falhas estruturais da PGFN, reforçando a necessidade de uma abordagem mais flexível, dialógica e sensível à realidade empresarial (Silva, 2022). A recusa infundada de propostas viáveis, além de comprometer a arrecadação, afeta diretamente a imagem institucional do Estado, que passa a ser percebido como um ente intransigente, distante da lógica de parceria que a Lei nº 13.988/2020 busca instaurar (Caliendo, 2021).
É importante destacar que a rigidez da presunção também desestimula a adesão dos contribuintes aos programas de transação, reduzindo o potencial arrecadatório e a legitimidade da política pública (De Souza, 2021). Muitos contribuintes, ao perceberem que suas peculiaridades não serão levadas em conta, optam por não apresentar propostas ou mesmo abandonam a negociação em curso, frustrando os objetivos de eficiência fiscal e de redução do contencioso tributário (Insper, 2021). Essa realidade denota um claro descompasso entre o desenho normativo e a prática institucional, sugerindo a necessidade de uma profunda reestruturação do modelo presuntivo vigente (Andraschko, 2023). Tal reestruturação não deve se limitar a ajustes técnicos, mas sim envolver uma revisão paradigmática da forma como o Estado compreende e operacionaliza o conceito de capacidade contributiva no âmbito da transação tributária.
4. A REVISÃO DA CAPACIDADE PRESUMIDA COMO MECANISMO DE JUSTIÇA FISCAL
4.1. CONCEITO, CARACTERÍSTICAS E APLICAÇÕES PRÁTICAS DA CAPACIDADE CONTRIBUTIVA
A capacidade contributiva, no âmbito do direito tributário, emerge como um constructo teórico e normativo de relevância, traduzindo-se na possibilidade de o legislador estabelecer, de forma apriorística, critérios que indiquem a aptidão econômica do contribuinte para suportar encargos tributários (de Brito Machado, 2003). Trata-se, pois, de uma presunção legal, muitas vezes relativa, que, desconsiderando uma apuração individualizada da situação patrimonial, autoriza a imposição fiscal com base em elementos objetivos e generalizantes (Carvalho, 2012). Essa técnica de presunção revela-se indispensável para assegurar a efetividade da tributação, sobretudo em contextos nos quais a mensuração direta da capacidade contributiva seria excessivamente onerosa ou inviável (Carranza, 1991).
Ao distinguir-se entre capacidade contributiva real e presumida, evidencia-se a tensão intrínseca entre a busca da justiça fiscal e as exigências de praticabilidade do sistema tributário (Velloso, 2012). A capacidade real, ou efetiva, pressupõe uma avaliação concreta da situação econômica do sujeito passivo da obrigação tributária, fundamentada em dados individualizados sobre sua renda, patrimônio ou consumo (Paoliello, 2016). Em contraposição, a capacidade presumida opera por meio de ficções legais, permitindo ao Estado, com base em indicadores genéricos, imputar ao contribuinte uma potencialidade econômica que pode não corresponder fielmente à sua condição fática (Kirchner, 2011). Essa divergência não é meramente teórica, mas reflete importantes implicações práticas, sobretudo na calibração dos princípios da igualdade tributária e da vedação ao confisco (Brasil, Constituição, 1988).
Entre os exemplos paradigmáticos da utilização da capacidade contributiva destaca-se o Imposto sobre Grandes Fortunas (IGF), cuja previsão constitucional ainda carece de regulamentação efetiva (Sabbag, 2012). A própria ideia de se tributar fortunas pressupõe uma inferência normativa de que determinados patamares de riqueza traduzem uma maior aptidão contributiva, independentemente de aferições mais minuciosas (Folloni, 2019). De igual modo, a progressividade do Imposto de Renda da Pessoa Física (IRPF) configura uma aplicação clássica da capacidade contributiva presumida, pois presume que maiores rendimentos indicam capacidade econômica superior, legitimando a aplicação de alíquotas mais elevadas (Meirelles, 1997). Esse mecanismo reflete o compromisso constitucional com a justiça fiscal, estabelecendo uma proporcionalidade entre a carga tributária e a potência financeira do indivíduo (Becho, 2011).
As presunções legais de capacidade contributiva, todavia, não se encontram livres de controvérsias e críticas no plano doutrinário e jurisprudencial (Moraes, 1994). Questiona-se, por exemplo, a legitimidade de presunções absolutas que, ao não admitirem prova em contrário, possam instaurar situações de injustiça tributária, penalizando contribuintes cuja real situação econômica não se coaduna com a ficção normativa (Dias, 2019). A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, em precedentes como o REsp 1.104.900/SP, reafirma a necessidade de respeito, no caso concreto, aos princípios da razoabilidade e da capacidade contributiva, exigindo que as presunções sejam sempre pautadas por critérios de razoabilidade e ponderação (Brasil, STJ, 2009).
No que tange à estrutura normativa da Constituição Federal de 1988, o princípio da capacidade contributiva, insculpido no art. 145, §1º, impõe um balizamento ético e jurídico ao poder de tributar, exigindo que a tributação seja graduada conforme a aptidão econômica dos sujeitos (Carrazza, 1991). Assim, o legislador tributário deve respeitar o mínimo existencial e a vedação do confisco, princípios correlatos que buscam assegurar a dignidade da pessoa humana (Iatarola, 2019). O Supremo Tribunal Federal, em julgados como o RE 576967/PR, tem reafirmado que a progressividade de tributos deve observar o equilíbrio entre o interesse arrecadatório do Estado e a preservação dos direitos fundamentais dos contribuintes (Brasil, STF, 2014).
No plano comparativo, verifica-se que a utilização de presunções de capacidade contributiva é um fenômeno recorrente em diversos sistemas tributários contemporâneos, sendo especialmente acentuada em regimes de tributação indireta e simplificada (Pereira, 1999). Modelos como o presumptive taxation, adotado em vários países em desenvolvimento, baseiam-se na atribuição de bases de cálculo fixas ou estimadas para determinadas categorias de contribuintes, com o objetivo de reduzir custos de conformidade e de fiscalização (Peixoto, 2014). Todavia, esses modelos exigem cautela, pois, se mal calibrados, podem gerar distorções graves e comprometer a função distributiva do sistema tributário (Leão, 2020).
Ademais, a adoção de presunções no direito tributário deve ser permanentemente escrutinada à luz dos princípios da proporcionalidade e da isonomia, para que se evite a criação de privilégios injustificados ou a imposição de ônus excessivos a determinados segmentos sociais (Amaro, 2016). A construção de presunções equilibradas demanda, portanto, um esforço hermenêutico constante por parte do legislador, da administração tributária e do Judiciário, no sentido de compatibilizar a efetividade da arrecadação com o respeito à justiça fiscal (Paoliello, 2016). A atuação crítica da doutrina e a vigilância cidadã constituem, igualmente, mecanismos imprescindíveis para a correção de desvios e a promoção de um sistema tributário mais equitativo e eficiente (Folloni, 2019).
4.2. O PROCEDIMENTO DE REVISÃO DA CAPACIDADE DE PAGAMENTO PRESUMIDA
A Portaria PGFN nº 6.757/2022, que regula os procedimentos da transação tributária no âmbito da dívida ativa da União, incorporou um dispositivo de extrema relevância para a justiça fiscal: a possibilidade de revisão da capacidade de pagamento presumida do contribuinte. Tal prerrogativa, ainda que positivada, revela-se limitada diante da metodologia pouco transparente e excessivamente discricionária com que é conduzida pela Administração Tributária, a qual, segundo Andraschko (2023), compromete a própria essência do instituto da transação, que exige, por definição, a equivalência material entre as partes envolvidas. Ocorre que o critério hoje utilizado pela Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN) fundamenta-se majoritariamente em dados padronizados e documentos genéricos, sem considerar, de maneira minuciosa, a realidade financeira efetiva da empresa, conforme apontado por Souza et al. (2015). Essa superficialidade metodológica cria um abismo entre a capacidade real e a capacidade presumida, o que, em última análise, distorce o propósito conciliatório do instituto, conforme preceitua Freire (2023).
A capacidade de pagamento presumida, nos moldes atualmente adotados, é aferida com base em modelos estatísticos e relatórios genéricos, que não se amoldam à multiplicidade de realidades empresariais existentes. O modelo aplicado pela PGFN, em geral, não incorpora a lógica dos fluxos de caixa nem considera os efeitos específicos da atividade econômica sobre o resultado operacional da empresa, como já denunciado por Godri (2023). A imposição de critérios homogêneos para estruturas econômicas heterogêneas, além de tecnicamente inadequada, pode se configurar como afronta aos princípios constitucionais da isonomia tributária e da capacidade contributiva, ambos previstos no artigo 150, inciso II, da Constituição Federal (BRASIL, 1988). Como ensina Carrazza (1991), o princípio da capacidade contributiva exige que a imposição fiscal observe a situação econômica concreta do sujeito passivo, devendo ser aferida com base em dados reais e não em projeções abstratas. Nesse sentido, o descompasso metodológico compromete a segurança jurídica e a função econômica da transação tributária.
A proposta de revisão metodológica para que a aferição da capacidade de pagamento se fundamente, prioritariamente, no resultado operacional líquido da empresa, mostra-se não apenas oportuna, mas tecnicamente embasada. Segundo Altman (1968), indicadores como o lucro operacional, a margem líquida e o EBITDA são mais eficazes para avaliar a solvência e a sustentabilidade financeira de uma entidade do que modelos baseados exclusivamente em endividamento ou patrimônio. Essa orientação é corroborada por Barboza, Kimura e Altman (2017), que apontam a superioridade dos modelos de análise baseados em machine learning, os quais levam em consideração dados mais granulares e contextuais da empresa. Tal abordagem encontra respaldo também em Shumway (2001), que defende modelos hazard para previsão de insolvência, pautados em múltiplos períodos e em variáveis que capturam o comportamento financeiro do contribuinte ao longo do tempo. A adoção desses parâmetros garantiria maior equidade e eficácia na mensuração da real capacidade de adimplemento das obrigações tributárias.
Outro aspecto crucial reside na ausência de um critério normativo específico e objetivo que oriente a PGFN na condução do procedimento de revisão. Atualmente, a análise é realizada de forma unilateral, com base na documentação apresentada pelo contribuinte, sem previsão de contraditório efetivo nem de fundamentação vinculante da decisão. Essa lacuna normativa compromete o direito à ampla defesa e o devido processo legal, conforme previsto nos artigos 5º, incisos LIV e LV, da Constituição Federal (BRASIL, 1988). De acordo com Caliendo (2021), a ausência de critérios claros e previsíveis cria um cenário de insegurança jurídica que afasta os contribuintes da negociação com o Estado, enfraquecendo o caráter autocompositivo da transação tributária. Nesse contexto, seria imprescindível que a legislação ou, ao menos, a regulamentação infralegal, estabelecesse parâmetros técnicos mínimos, como índices contábeis validados e percentuais de comprometimento da receita com despesas operacionais, de modo a garantir transparência, imparcialidade e coerência decisória, como recomenda Mattos e Proença (2023).
A incorporação da análise do resultado econômico-operacional como elemento central da avaliação da capacidade de pagamento permitiria alinhar a prática administrativa brasileira às melhores práticas internacionais de previsão de insolvência. Conforme destaca Ohlson (1980), a performance operacional é um dos vetores mais robustos para antever situações de default, especialmente quando combinada com dados de liquidez e alavancagem. Duffie, Saita e Wang (2007) reforçam essa premissa ao defender modelos preditivos multivariados com covariáveis estocásticas, que capturam a dinamicidade dos fluxos financeiros empresariais. A integração desses conceitos à realidade da PGFN poderia, inclusive, fomentar uma reformulação nos sistemas de classificação de risco dos contribuintes, promovendo uma taxonomia mais justa e racional dos devedores perante o fisco. A observância de tais elementos qualificaria o processo decisório e tornaria a política de transações mais sensível à real situação econômico-financeira das empresas, conforme recomenda Mattos e Shasha (2024).
A Portaria PGFN nº 6.757/2022, embora tenha representado um avanço institucional importante ao normatizar a transação tributária no âmbito federal, carece de mecanismos mais refinados para lidar com a pluralidade de cenários enfrentados pelos contribuintes. Como demonstrado por Júnior (2023), o atual sistema de classificação fiscal dos devedores ignora variáveis críticas como sazonalidade de receita, grau de obsolescência tecnológica, dependência de crédito externo e impacto de fatores macroeconômicos. A superficialidade com que se realiza a presunção da capacidade de pagamento, sem levar em conta tais especificidades, acaba por comprometer o potencial da transação como instrumento de resolução fiscal eficiente. Ribeiro (2022) enfatiza que a negociação tributária deve ser construída sobre concessões mútuas reais, e não sobre estimativas frágeis e artificiais, sob pena de esvaziamento do instituto. A introdução de critérios técnicos mais sofisticados, especialmente aqueles baseados em análises financeiras e contábeis contemporâneas, como sugerido por Beaver (1966), é condição sine qua non para a consolidação de um sistema mais justo e funcional.
Sob a perspectiva dogmática, é necessário reconhecer que a capacidade de pagamento, quando presumida de forma arbitrária ou dissociada da realidade contábil do contribuinte, torna-se um obstáculo ao cumprimento voluntário das obrigações fiscais. Conforme leciona Hugo de Brito Machado (2003), o direito tributário deve se pautar por uma racionalidade voltada à justiça fiscal, o que implica reconhecer os limites econômicos do contribuinte sem inviabilizar a arrecadação estatal. Tal racionalidade demanda uma intersecção entre o direito, a contabilidade e a economia, na qual a avaliação da capacidade de pagamento se apoie em relatórios financeiros auditados, análises de desempenho setorial e índices históricos de rentabilidade e solvência. Mattos (2023) argumenta que a subprecificação do risco no valuation de empresas em crise pode comprometer não apenas o processo de recuperação judicial, mas também a credibilidade dos órgãos fiscais no contexto das transações. Assim, urge uma revisão metodológica que contemple, de forma integral e cientificamente validada, os elementos que verdadeiramente influenciam a solvência de uma entidade.
Do ponto de vista jurídico-institucional, a revisão da capacidade de pagamento deve ser concebida como um procedimento dialógico, no qual o contribuinte tenha a oportunidade de participar ativamente da construção da sua própria classificação fiscal. Tal abordagem encontra respaldo na doutrina da autocomposição administrativa, segundo a qual a Administração deve buscar soluções consensuais e equitativas para a resolução de conflitos tributários (Dacomo, 2008). A prática atual, que se limita à análise documental unidirecional, contradiz o espírito da Lei nº 13.988/2020 (BRASIL, 2020), que inaugura um novo paradigma de relacionamento entre Fisco e contribuinte, pautado na confiança mútua e na cooperação institucional. Nesse sentido, a adoção de procedimentos mais abertos, transparentes e interativos, nos moldes do modelo multiportas sugerido por Machado, Catarino e Sobral (2023), seria um avanço civilizatório na gestão fiscal contemporânea. A própria PGFN, em seu relatório “PGFN em números” (2023), reconhece que a efetividade da cobrança está diretamente vinculada à percepção de justiça e previsibilidade no tratamento dos devedores.
4.3. PROPOSTA ESTIPULAÇÃO DE CRITÉRIO BASE PARA A REVISÃO DA CAPACIDADE DE PAGAMENTO
A proposta de estipulação de um critério-base para a revisão da capacidade de pagamento no âmbito da transação tributária representa um avanço normativo e institucional com impactos diretos na racionalidade fiscal e na efetividade do sistema de arrecadação estatal. Segundo a Lei nº 13.988/2020, a transação tributária tem como fundamento a solução consensual de litígios tributários mediante concessões mútuas entre o contribuinte e a Fazenda Pública (Brasil, 2020). Contudo, a metodologia atualmente utilizada pela Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN), em especial por meio da Portaria nº 6.757/2022, tem sido objeto de críticas por adotar um modelo rígido e, muitas vezes, descolado da realidade econômica das empresas devedoras (Andraschko, 2023). Nesse sentido, estabelecer um critério-base revisável, com fundamentação técnico-contábil e respaldo jurídico, pode ampliar a previsibilidade, garantir maior justiça fiscal e tornar o instituto da transação mais eficiente e efetivo (Freire, 2023).
O conceito de capacidade de pagamento, embora aparentemente simples, comporta uma complexidade técnica e jurídica que demanda uma abordagem multidisciplinar. Na seara contábil-financeira, esse conceito está associado à análise da solvência empresarial, do fluxo de caixa descontado e dos índices de liquidez e rentabilidade, conforme demonstrado nos estudos de Altman (1968) e Beaver (1966). Já sob o enfoque jurídico, a capacidade de pagamento deve refletir a efetiva possibilidade de o contribuinte adimplir com a obrigação tributária sem comprometer a continuidade de suas atividades, o que se alinha ao princípio da preservação da empresa, consagrado na Lei de Recuperação e Falência (Lei nº 11.101/2005). Assim, qualquer modelo de revisão dessa capacidade deve observar não apenas dados históricos, mas também variáveis prospectivas, circunstanciais e setoriais (Duffie; Saita; Wang, 2007).
A construção de um critério-base para revisão da capacidade de pagamento deve ser ancorada em metodologia técnico-científica que considere não apenas o patrimônio líquido contábil, mas também fatores como inadimplência sistêmica, perfil de endividamento, elasticidade de receita, e exposição setorial a riscos macroeconômicos. Modelos como os de previsão de insolvência propostos por Shumway (2001) e Ohlson (1980) revelam a importância da utilização de dados probabilísticos e de variáveis estocásticas para uma avaliação mais acurada do risco de inadimplemento. A adoção de ferramentas baseadas em aprendizado de máquina, como discutido por Barboza, Kimura e Altman (2017), também poderia aprimorar substancialmente a acurácia preditiva desses modelos, fornecendo subsídios mais sólidos para decisões de deferimento ou indeferimento da transação (Mattos; Shasha, 2024).
Do ponto de vista jurídico, é imprescindível que o critério-base proposto esteja alinhado aos princípios constitucionais da capacidade contributiva (art. 145, §1º, CF/88), da legalidade (art. 5º, II, CF/88) e da isonomia tributária (art. 150, II, CF/88). Conforme observa Caliendo (2021), qualquer intervenção do Estado na esfera patrimonial do contribuinte deve respeitar os limites formais e materiais do direito tributário, exigindo, portanto, uma metodologia que seja tanto tecnicamente adequada quanto juridicamente sustentável. A ausência de transparência e de critérios objetivos pode ferir o devido processo legal substantivo e comprometer a confiança legítima dos contribuintes, violando, inclusive, tratados internacionais sobre segurança jurídica e estabilidade normativa (Carrazza, 1991).
A revisão da capacidade de pagamento também deve ser pautada pela boa-fé objetiva, prevista no Código Civil brasileiro (art. 422), e pela teoria do adimplemento substancial, aplicada subsidiariamente ao direito tributário por força dos princípios da função social da empresa e da razoabilidade. Como observa Ribeiro (2022), a transação tributária deve ser vista como um instrumento de pacificação fiscal e não como uma mera ferramenta arrecadatória, sendo essencial que os critérios adotados para sua celebração sejam razoáveis, proporcionais e ajustados à situação concreta do contribuinte. A adoção de um critério-base único e inflexível ignora a heterogeneidade das situações econômicas e pode conduzir à frustração do objetivo normativo da Lei nº 13.988/2020 (Silva, 2022).
Outro ponto sensível refere-se ao papel da contabilidade como ciência instrumental para a aferição da capacidade de pagamento. Estudos como os de Beaver, Correia e McNichols (2012) indicam que a qualidade das informações contábeis é determinante para a eficácia de modelos preditivos de inadimplência. No Brasil, porém, muitas empresas de pequeno e médio porte ainda operam com escrituração deficitária ou de baixa confiabilidade, o que compromete a aplicação objetiva de modelos que dependam exclusivamente de dados contábeis. Assim, propõe-se um modelo híbrido, que combine indicadores contábeis auditáveis com informações qualitativas obtidas por meio de due diligence fiscal e entrevistas com representantes legais da empresa (Godri, 2023).
Ademais, o critério-base de revisão deve ser dinâmico e adaptável a contextos de crise econômica, desastres naturais ou mudanças estruturais nos mercados. A jurisprudência administrativa e judicial tem reconhecido a importância da flexibilização de obrigações fiscais em contextos excepcionais, como evidenciado nas decisões do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF) e nas medidas adotadas durante a pandemia de COVID-19. A Portaria PGFN nº 6.757/2022, embora traga avanços procedimentais, ainda carece de dispositivos que permitam revisão periódica da capacidade de pagamento com base em eventos supervenientes, o que compromete sua efetividade prática (Insper, 2021).
A implementação de um critério-base também requer infraestrutura institucional adequada, com sistemas informatizados de análise de risco, capacitação técnica dos servidores da Fazenda Nacional e mecanismos de controle externo. A utilização de ferramentas digitais de triagem e classificação de contribuintes, com base em inteligência artificial e análise de big data, já é uma realidade em países como Estados Unidos e Reino Unido e poderia ser integrada ao sistema brasileiro com os devidos ajustes normativos (Barboza; Kimura; Altman, 2017). A Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional já dispõe de sistemas como o Sispar e o Regularize, que podem ser aprimorados para integrar os novos critérios de avaliação (PGFN, 2023).