5. CONCLUSÕES
A revisão da capacidade de pagamento presumida, conforme delineada na Portaria PGFN nº 6.757/2022, representa um avanço significativo na construção de um modelo de transação tributária individual mais equitativo e eficaz. Ao permitir que o contribuinte conteste os parâmetros fiscais fixados unilateralmente pela Administração Tributária, abre-se um espaço importante para a consideração da realidade econômica específica de cada sujeito passivo. Tal possibilidade de revisão se mostra fundamental, pois afasta a rigidez dos critérios automatizados e muitas vezes descolados da realidade concreta, possibilitando que a negociação tributária cumpra efetivamente sua finalidade de promover a recuperação do crédito sem sacrificar a sobrevivência financeira do contribuinte.
O mecanismo da transação tributária, instituído pela Lei nº 13.988/2020, trouxe uma nova lógica para o tratamento de créditos inscritos em dívida ativa, substituindo a antiga e ineficaz política de execuções fiscais massificadas por uma abordagem consensual e personalizada. Entretanto, a eficácia dessa política depende da adequação dos critérios de aferição da capacidade de pagamento, elemento essencial para definir o percentual de descontos e prazos de parcelamento. A presunção administrativa, embora tecnicamente eficiente do ponto de vista da gestão pública, tende a desconsiderar peculiaridades relevantes de cada contribuinte, gerando distorções que podem comprometer a isonomia e a efetividade da transação.
Nesse cenário, o procedimento de revisão da capacidade de pagamento presumida adquire centralidade como instrumento de correção de injustiças fiscais e reforço à legitimidade da atuação estatal. Ao conferir ao contribuinte a prerrogativa de apresentar documentos e argumentos para demonstrar sua real situação financeira, o ordenamento jurídico se aproxima dos princípios constitucionais do contraditório e da ampla defesa, fundamentos que sustentam o devido processo legal tributário. Essa abertura procedimental contribui não apenas para a justiça fiscal, mas também para a construção de uma cultura de cooperação entre Fisco e contribuinte, substituindo a lógica de confronto por uma dinâmica de negociação.
A análise crítica do instituto revela, contudo, que a eficácia da revisão depende de sua operacionalização concreta, incluindo a clareza dos critérios técnicos utilizados pela PGFN, a disponibilidade de canais de comunicação efetivos com os contribuintes, e a razoabilidade dos prazos e exigências documentais. O excesso de tecnicidade e a rigidez na aceitação de provas podem esvaziar a função corretiva da revisão, transformando o procedimento em mero formalismo sem capacidade real de alterar a conclusão inicial da Fazenda. Por isso, a revisão da capacidade presumida deve ser acompanhada de uma estrutura normativa transparente e acessível, garantindo previsibilidade e segurança jurídica a todos os envolvidos.
A partir do estudo da estrutura normativa da transação tributária federal, verifica-se que há um esforço da legislação e da regulamentação administrativa em promover soluções consensuais de cobrança. No entanto, a existência de uma presunção de capacidade de pagamento baseada em dados muitas vezes defasados ou genéricos exige do contribuinte um elevado esforço probatório para demonstrar a inadequação do cálculo fiscal. Esse cenário evidencia um desequilíbrio de forças que pode comprometer a própria lógica de paridade negocial que deve pautar as transações tributárias, demandando maior simetria procedimental e suporte técnico para os contribuintes.
Os desafios enfrentados pelos contribuintes, especialmente os de menor porte ou com menor acesso a assessoria especializada, incluem a dificuldade de reunir e apresentar documentação contábil complexa, compreender os critérios técnicos utilizados pelo Fisco, e responder tempestivamente às exigências administrativas. Além disso, a ausência de parâmetros objetivos para avaliação dos argumentos apresentados gera incerteza quanto à real possibilidade de revisão, afastando o contribuinte do processo e reforçando a percepção de que a negociação continua sendo, na prática, uma imposição unilateral do Estado.
Para superar essas dificuldades, é necessário investir em propostas normativas e procedimentais que ampliem o acesso e a efetividade da transação tributária individual. Isso inclui a elaboração de manuais explicativos, a criação de núcleos especializados de atendimento e orientação, bem como a possibilidade de intermediação por órgãos de conciliação fiscal ou defensorias públicas. Do ponto de vista normativo, a fixação de parâmetros mais objetivos e a exigência de motivação detalhada por parte da PGFN em caso de indeferimento da revisão podem contribuir para a transparência e a confiança no processo.
Assim, conclui-se que a revisão da capacidade de pagamento presumida é essencial para assegurar que a transação tributária individual cumpra seu papel de instrumento de justiça fiscal. Sua efetividade, contudo, depende de uma implementação que considere as assimetrias entre Fisco e contribuinte, respeite os princípios constitucionais do devido processo e adote uma postura verdadeiramente dialógica. Apenas assim será possível garantir uma atuação estatal que, ao mesmo tempo em que busca a recuperação de créditos, respeite os limites econômicos dos contribuintes e promova a regularização fiscal com dignidade e equilíbrio.
Por fim, a transação tributária individual, em sua forma atual, representa uma oportunidade ímpar de reinvenção da relação entre o contribuinte e o Estado. Ao permitir uma atuação mais personalizada e flexível da Administração Tributária, a possibilidade de revisão da capacidade de pagamento presumida se apresenta como um verdadeiro catalisador da justiça fiscal contemporânea. Contudo, é imperativo que essa ferramenta seja aprimorada continuamente, por meio de ajustes normativos, capacitação dos agentes fiscais e fortalecimento da participação cidadã, garantindo que o direito tributário avance em direção a um modelo mais democrático, eficaz e sensível à realidade econômica e social dos contribuintes brasileiros. Como nova linha de pesquisa, sugere-se a realização de estudos empíricos e estatísticos sobre os casos de revisão já processados pela PGFN, com vistas a mapear padrões, avaliar índices de êxito dos contribuintes e propor indicadores de efetividade e equidade no âmbito da transação tributária federal.
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Keywords: Tax Settlement; Presumed Payment Capacity; Federal Tax Administration.