Considerações finais
Este artigo teve como objetivo analisar criticamente a efetividade jurídica e político-institucional da Lei Henry Borel (Lei nº 14.344/2022) no combate à violência contra crianças e adolescentes no Brasil, considerando seu alinhamento com o arcabouço protetivo existente e os desafios práticos de implementação. A investigação revelou que, embora a lei represente um avanço normativo ao reforçar medidas protetivas e qualificadoras penais, sua eficácia social permanece condicionada à superação de obstáculos estruturais, como a fragmentação de políticas públicas, a subnotificação de casos e a cultura institucional punitivista.
A Lei Henry Borel surge em resposta a um cenário alarmante de violência infanto-juvenil, marcado por altas taxas de letalidade, violência doméstica e desigualdades interseccionais de gênero, raça e território. Ao tipificar o homicídio de menores de 14 anos como crime hediondo e instituir medidas protetivas inspiradas na Lei Maria da Penha, a legislação busca conferir maior segurança jurídica às vítimas. Contudo, a análise demonstra que o enfoque excessivo na ampliação de sanções penais reproduz uma lógica simbólica, que prioriza respostas punitivas em detrimento de ações preventivas e redistributivas. A redundância de qualificadoras penais, como a sobreposição com dispositivos já existentes no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), evidencia riscos de inconstitucionalidade e ineficiência prática, sobretudo quando desacompanhada de investimentos em rede de proteção.
A efetividade da lei depende, fundamentalmente, da integração intersetorial entre sistemas de justiça, saúde, educação e assistência social. A subnotificação de casos, agravada pela falta de interoperabilidade entre bases de dados como o SINAN e o Disque 100, limita a capacidade de diagnóstico e intervenção precoce. Além disso, a fragilidade operacional de conselhos tutelares e a escassez de equipes multiprofissionais em regiões periféricas perpetuam a desconexão entre a norma e a realidade das vítimas. A pandemia de COVID-19 expôs ainda mais essas vulnerabilidades, ao intensificar a violência intrafamiliar e reduzir o acesso a canais de denúncia, como escolas e unidades de saúde.
Para além do recrudescimento penal, a construção de um sistema protetivo efetivo exige políticas públicas integradas, capazes de enfrentar determinantes sociais da violência, como pobreza, racismo estrutural e desigualdade de gênero. A implementação de programas de parentalidade positiva, a criação de fundos específicos para financiamento de equipamentos sociais e a padronização de protocolos de atendimento emergencial são medidas urgentes. A priorização de estratégias restaurativas, em vez da mera criminalização, poderia romper ciclos intergeracionais de violência, promovendo reinserção social de agressores e reparação às vítimas.
Desta maneira, a Lei Henry Borel simboliza um compromisso político com a proteção integral da infância, mas sua concretização demanda transformações profundas na governança pública. A indignação social frente a casos emblemáticos, como o homicídio do menino Henry, deve catalisar não apenas reformas legais, mas investimentos sustentáveis em infraestrutura social, formação de profissionais e transparência de dados. Somente assim será possível converter promessas jurídico-formais em práticas emancipatórias, garantindo que crianças e adolescentes brasileiros vivam livres de violência e em condições dignas.
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Abstract: This article analyzes the effectiveness of the Henry Borel Law (Law nº 14.344/2022) in combating violence against children and adolescents in Brazil, examining its advances, gaps, and implementation challenges. Based on data and a literature review, the study contextualizes child and adolescent violence as a structural phenomenon, marked by gender, race, and territorial inequalities. The methodology combines analysis of legislation, evaluation of public policies, and theoretical discussion on criminal law. The results indicate that the law introduced relevant innovations, such as emergency protective measures and the classification of child homicide as a heinous crime. However, its effectiveness is limited by the lack of coordination between institutions, underreporting of cases, and insufficient resources for care networks. The emphasis on criminal solutions proves insufficient to address social causes of violence, such as poverty and racial discrimination. It is concluded that effective child and adolescent protection depends on the intersectoral integration of public policies, stable funding, and evidence-based preventive strategies, going beyond punitive measures.
Keywords: Henry Borel Law; child abuse; public policies; criminal law; comprehensive protection.