Resumo: Este artigo analisa a efetividade da Lei Henry Borel (Lei nº 14.344/2022) no combate à violência contra crianças e adolescentes no Brasil, examinando seus avanços, lacunas e desafios de implementação. Com base em dados e revisão de literatura, o estudo contextualiza a violência infanto-juvenil como fenômeno estrutural, marcado por desigualdades de gênero, raça e território. A metodologia combina análise da legislação, avaliação de políticas públicas e discussão teórica sobre direito penal. Os resultados indicam que a lei introduziu inovações relevantes, como medidas protetivas de urgência e a tipificação do homicídio infantil como crime hediondo. No entanto, sua eficácia é limitada pela falta de coordenação entre as instituições, subnotificação de casos e recursos insuficientes para redes de atendimento. A ênfase em soluções penais revela-se insuficiente para enfrentar causas sociais da violência, como pobreza e discriminação racial. Conclui-se que a efetiva proteção infanto-juvenil depende da integração intersetorial de políticas públicas, financiamento estável e estratégias preventivas baseadas em evidências, indo além de medidas punitivas.
Palavras-chave: Lei Henry Borel; violência infantil; políticas públicas; direito penal; proteção integral.
Sumário: Introdução. 1. Violência infanto-juvenil no Brasil. 2. Efetividade normativa e políticas públicas integradas: desafios de implementação. 3. A Lei Henry Borel no sistema de proteção: avanços normativos e tensões. Considerações finais. Referências.
Introdução
A violência contra crianças e adolescentes constitui um fenômeno persistente que tensiona a promessa constitucional de proteção integral e desafia, em sua radicalidade, o próprio projeto democrático brasileiro. Dados do Atlas da Violência 2025 indicam que, embora o país tenha regressado em 2023 à menor taxa de homicídios dos últimos onze anos, a incidência de violências letais e não letais sobre populações infanto-juvenis mantém patamar alarmante, com forte recorte de gênero, raça e território (Cerqueira; Bueno, 2025).
O perfil dessas ocorrências, já evidenciado na edição anterior do relatório (Cerqueira; Bueno, 2024), demonstra que a casa – espaço que deveria ser de cuidado – converte-se frequentemente em lugar de violações, agravadas no contexto pós-pandemia. Ao sancionar a Lei n.º 14.344/2022, conhecida como Lei Henry Borel, o legislador buscou reagir a esse quadro mediante incremento de tutela penal e ampliação de medidas protetivas. Contudo, a lei por si só não resolve o problema e não garante grandes transformações, sobretudo quando falta integração entre políticas públicas e recursos para sua aplicação.
Nesse marco, o presente artigo tem como objetivo geral analisar de forma crítica a efetividade jurídica e político-institucional da Lei Henry Borel no combate à violência contra crianças e adolescentes, analisando: i) o cenário da violência contra crianças e adolescentes no Brasil; ii) As mudanças trazidas pela Lei em comparação com a Constituição de 1988 e com o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA); iii) Os riscos de a Lei ser apenas simbólica, sem efeitos práticos; e iv) Os desafios para sua implementação, sobretudo no que se refere à articulação entre rede de proteção, sistema de justiça e políticas educacionais .
Essas metas convergem para a pergunta de pesquisa que orienta o estudo: em que medida a Lei Henry Borel, associada a políticas públicas integradas, contribui para reduzir a violência doméstica e familiar contra crianças e adolescentes no Brasil? A resposta demanda análise e avaliação de ideias capaz de conciliar não apenas punições, mas estratégias preventivas baseadas em evidências, reconhecendo que o controle social democrático se realiza mais pela efetivação de direitos do que pela mera intensificação de sanções.
A relevância do tema é justificada por três ordens de argumentos. Primeiro, a magnitude empírica: estimativas de subnotificação apontam que a violência doméstica contra crianças pode ser cinco vezes maior que os casos oficialmente registrados, cenário parcialmente confirmado por análises estaduais de bases SINAN (Malta et al., 2025). Segundo, a densidade normativa: o Brasil exibe arcabouço protetivo robusto, ancorado na Convenção sobre os Direitos da Criança e no artigo 227 da Constituição, mas persiste uma lacuna entre promessa jurídico-formal e realidade das vítimas (Miranda; Carvalho, 2023). Terceiro, a dimensão civilizatória: a forma como uma sociedade trata sua infância traduz seu compromisso com a dignidade humana e com a própria democracia. Uma leitura cidadã da Lei Henry Borel reclama, portanto, não apenas coerência dogmática, mas políticas redistributivas que enfrentem determinantes sociais da violência, como pobreza, discriminação de gênero e racismo estrutural.
Ao articular evidências empíricas, crítica dogmática e defesa inegociável dos direitos humanos, este estudo pretende subsidiar agendas de pesquisa e de ação estatal que vão além de soluções temporárias e construam, progressivamente, um sistema de proteção verdadeiramente efetivo.
1. Violência infanto-juvenil no Brasil
A persistência da violência infanto-juvenil no Brasil desvela contradições centrais do Estado social: enquanto a Constituição de 1988 outorga prioridade absoluta à infância, os indicadores empíricos mostram que meninos e meninas seguem expostos a riscos letais e não letais em proporções epidêmicas. Entre 2013 e 2023 foram assassinadas 2.124 crianças de 0-4 anos, 6.480 entre 5-14 anos e impressionantes 90.399 adolescentes de 15-19 anos, com armas de fogo respondendo por 70 % a 84 % dos óbitos nas faixas de 5-14 e 15-19 anos (Cerqueira; Bueno, 2025).
Embora a taxa nacional de homicídios infantis tenha recuado 29,4 % em dez anos, o patamar de 1,2 por 100 mil infantes em 2023 continua superior ao de países de renda equivalente, e a heterogeneidade federativa revela realidades extremas: Acre, Amapá e Amazonas registraram elevação acima de 50 % entre 2022-2023 (Cerqueira; Bueno, 2025). A letalidade, contudo, é a face mais visível de um continuum de violações que começam nos lares, atravessam escolas e se intensificam em territórios marcados por segregação racial e desigualdade de renda.
Os dados de morbidade captados pelo SINAN corroboram a complexidade desse fenômeno. O número de notificações de violência física, sexual, psicológica e negligência contra crianças e adolescentes saltou de 35.691 em 2013 para 115.384 em 2023, com destaque para o crescimento de 36,2 % apenas entre 2022 e 2023 (Cerqueira; Bueno, 2025). Tal expansão não se explica apenas pela maior cobertura do sistema de vigilância: séries paralelas indicam tendência real de aumento, sobretudo na pós-pandemia (Cerqueira; Bueno, 2025). A análise etária demonstra uma transição tipológica: infantes de 0-4 anos concentram 61,7 % de todos os registros de negligência; crianças de 5-14 anos lideram em violência psicológica (53,5 %) e sexual (65,1 %); adolescentes de 15-19 anos são maioria nas agressões físicas (59,3 %) (Cerqueira; Bueno, 2024).
Pesquisa específica com base no SINAN-2022 aprofunda o padrão: para vítimas de 0-1 ano predomina negligência intrafamiliar; dos 2-5 anos, assédio e estupro cometidos por conhecidos; dos 6-9 anos, violência física e psicológica no espaço escolar ou comunitário (Malta et al., 2025). Tais achados reforçam a necessidade de políticas que considerem ciclos de vida e contextos de socialização.
A dimensão de gênero atravessa todas as estatísticas. No recorte 2009-2021, a violência sexual domiciliar atingiu picos de 69,8 % (2020) e 71,7 % (2021) de todas as notificações, com meninas sistematicamente mais vitimadas; as taxas cresceram 44,4 % ao ano entre 2009-2012, mantiveram incremento de 16,6 % em 2015-2019 e só recuaram no biênio 2019-2021, possivelmente por subnotificação vinculada ao isolamento (Oliveira et al., 2024).
A revisão sistemática reforça o padrão: meninas apresentam vulnerabilidade pronunciada à violência sexual, ao passo que meninos sofrem mais agressões físicas, e em ambos os sexos o lar permanece o principal locus da vitimização (Wanzinack; MÉLO, 2025) . As mesmas revisões evidenciam o recorte racial: crianças negras são mais suscetíveis a todas as formas de violência, sobretudo nas regiões Norte e Nordeste, onde carências estruturais se combinam a legado escravocrata e atuação estatal precária.
Fatores estruturais complexos potencializam esses riscos. A leitura dos dados indica que pobreza persistente, ausência de políticas de cuidado parental, circulação massiva de armas leves e masculinidades violentas erigidas em sociabilidades locais convergem para índices dramáticos (Campinho; Ferraz, 2024). Estudos regionais mostram, ainda, a correlação entre consumo de álcool pelos agressores – presente em até 35 % dos casos em Porto Alegre – e recorrência das agressões (Wanzinack; Mélo, 2025). No plano macro, a retração de investimentos sociais após 2016 e a morosidade na implementação do Plano Decenal de Direitos da Criança e do Adolescente limitam a capacidade preventiva do Estado (Miranda; Carvalho, 2023).
A pandemia de COVID-19 funcionou como acelerador de vulnerabilidades. Em 2020 o total de atendimentos de violência caiu 20,6 % em relação a 2019, refletindo barreiras de acesso a escolas e serviços de saúde – principais canais de denúncia –, mas não redução real dos agravos (Cerqueira; Bueno, 2025). O estudo de Oliveira et al. detectou crescimento relativo da violência sexual domiciliar exatamente nos anos de maior restrição sanitária, sinalizando um “efeito gaiola” em que o confinamento ampliou a exposição de vítimas a agressores conviventes (Oliveira et al., 2024). Na retomada de atividades presenciais, as notificações explodiram, sugerindo represamento de demandas e insuficiência de mecanismos de busca ativa.
Sob a ótica da cidadania democrática, tais evidências impõem um duplo imperativo. No plano imediato, é necessário integrar bases de dados – SINAN, SIM, PeNSE, Disque-100 – com protocolos de triagem ativa na atenção básica, articulando conselhos tutelares, sistema de justiça e políticas educacionais. No horizonte estrutural, exige-se enfrentar determinantes como racismo institucional, desigualdade territorial e circulação de armas. A Lei Henry Borel avança ao tipificar qualificadoras penais, mas, se não for acompanhada de políticas redistributivas e de cuidado comunitário, corre o risco de se tornar símbolo punitivo sem eficácia social – crítica já sinalizada pela doutrina penal (Campinho; Ferraz, 2024).
Em síntese, o panorama empírico demonstra que a violência contra crianças e adolescentes no Brasil é simultaneamente letal e difusa, atravessa gênero, raça e classe, e se realimenta de condições estruturais que desafiam o pacto democrático. Reconhecer essa complexidade não é negar avanços, mas recusar leituras simplificadoras e reafirmar a centralidade dos direitos humanos como bússola de qualquer intervenção. Estudos futuros precisam combinar análise quantitativa fina com etnografias territoriais, a fim de iluminar trajetórias de vitimização invisibilizadas e subsidiar políticas de cuidado capazes de romper o ciclo intergeracional da violência.
2. Efetividade normativa e políticas públicas integradas: desafios de implementação
A efetividade normativa da Lei 14 344/2022—batizada de Lei Henry Borel—não pode ser aferida fora do sistema de garantias inaugurado pela Constituição de 1988 (art. 227) e densificado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente-ECA (Lei 8 069/1990). Ambos consagram a doutrina da proteção integral e a prioridade absoluta da infância, impondo ao Estado, à família e à sociedade obrigações positivas de cuidado. A nova lei, editada sob forte clamor público após o homicídio do menino Henry, pretendeu reforçar essa malha protetiva, mas o fez sobretudo pela via penal, reabrindo, assim, o debate clássico entre expansão punitiva e políticas públicas de prevenção.
Do ponto de vista exegético, a Lei Henry Borel introduz três grupos de inovações. O primeiro é de natureza penal-material: a inclusão, no art. 121 do Código Penal, do § 2º-B, que qualifica o homicídio de pessoa menor de 14 anos e cria causas de aumento ligadas à relação de autoridade ou ao estado de vulnerabilidade da vítima, além de tornar esse delito hediondo (alteração do art. 1º da Lei 8 072/1990) . O segundo grupo refere-se à proteção cautelar: a lei replica o modelo das medidas protetivas da Lei Maria da Penha, determinando afastamento compulsório do agressor, suspensão do poder familiar e inclusão da família em programas de acompanhamento psicossocial, com prazo de 24 horas para apreciação judicial. O terceiro eixo é administrativo-sancionatório: tipifica o descumprimento de medidas e o silêncio do agente público que deixa de notificar a violência. Esses dispositivos dialogam com o dever de prioridade previsto no ECA (arts. 4.º-6.º), convertendo-o em comandos operacionais dirigidos a saúde, assistência social e segurança pública.
Embora tais avanços revelem uma sintonia formal com a Constituição e com o ECA, parte da doutrina enxerga neles um exemplo eloquente de direito penal simbólico. Campinho e Ferraz argumentam que o legislador, movido por comoção midiática, produziu uma norma ad hoc, desconsiderando a lógica de ultima Ratio, duplicando qualificadoras já existentes e incorrendo em bis in idem. Para esses autores, o resultado prático é a inflação de tipos penais e o reforço de um populismo punitivo que abastece expectativas sociais de vingança sem atacar as causas estruturais da violência infantil. A crítica ganha densidade quando se coteja o novo § 2º-B com o § 4.º do próprio art. 121, que já previa agravantes pelo motivo torpe, e com o art. 92 do Código Penal, que autoriza a perda do poder familiar após condenação por crime doloso contra descendente . A sobreposição de dispositivos indica não apenas redundância normativa, mas também risco de inconstitucionalidade por violação à proporcionalidade.
O debate torna-se mais complexo quando se considera a concorrência normativa entre o ECA e outras leis protetivas. Em 2023, o Superior Tribunal de Justiça, ao afetar o Tema Repetitivo 1186, decidiu que, em casos de violência doméstica contra vítimas femininas, aplica-se preferencialmente a Lei Maria da Penha, ainda que a vítima seja menor de idade. Rocha e Ikeda observam que essa opção, ao afastar o ECA, ignora a vulnerabilidade interseccional de meninas e cria antinomia aparente que só pode ser resolvida mediante diálogo de fontes e leitura integrativa das convenções internacionais (Belém do Pará; Convenção sobre os Direitos da Criança). A posição do STJ evidencia uma lacuna processual da Lei Henry Borel: a ausência de regra expressa de competência que previna conflitos entre varas de violência doméstica e juizados da infância. Sem essa definição, processos podem ficar paralisados, fragilizando a pronta proteção da vítima—o que contraria o princípio da prioridade absoluta.
Sob a ótica das políticas públicas, a literatura empírica identifica convergências e fissuras. Lang e Ningeliski destacam que a lei fortalece a rede ao impor comunicação compulsória dos casos e ao criminalizar a omissão do agente público, criando incentivos para a notificação precoce. Todavia, estudos de Oliveira, Seabra e Leal revelam que a efetividade dessas providências depende da capacidade dos entes subnacionais de manter equipes multiprofissionais, hoje insuficientes em regiões de baixa renda; faltam psicólogos, assistentes sociais e delegacias especializadas, sobretudo no Norte e interior do Nordeste. A desarticulação entre justiça, conselhos tutelares e serviços de saúde faz com que medidas protetivas expedidas em 24 horas levem semanas para serem executadas, esvaziando a força simbólica da lei.
O caráter federativo do SUS e do SUAS aprofunda o problema: estados e municípios controlam os equipamentos de atendimento, mas recebem repasses federais incertos. Santos et al. mostram que, apesar de a Lei Henry Borel ter aumentado a consciência social sobre violência infantil, ela não veio acompanhada de um fundo específico nem de critérios de rateio vinculantes, obrigando conselhos de direitos a disputar recursos em orçamentos já comprimidos. Essa lacuna orçamentária obstaculiza a instalação de centros de acolhimento e a capacitação continuada dos agentes públicos.
Outra debilidade está no desenho restaurativo previsto pelo art. 19 da lei, que remete a programas de justiça restaurativa “quando cabíveis”. A fórmula genérica impede a interiorização de práticas dialógicas que poderiam romper ciclos de violência e aliviar a sobrecarga do sistema penal. Miranda e Lôbo de Carvalho apontam que, sem protocolos pedagógicos claros e indicadores de resultado, tais programas permanecem letra morta, perpetuando o descompasso entre teoria e prática (Miranda; Carvalho, 2023).
Apesar dessas insuficiências, seria reducionista rotular toda a Lei Henry Borel como meramente simbólica. A criação de deveres operacionais de proteção—ex.: afastamento imediato do agressor e prioridade de tramitação—preenche lacunas históricas identificadas pelo ECA, cujo art. 130 exige que a autoridade judiciária determine ações de proteção sem especificar prazos. Ao positivá-los, a Lei reforça a exigibilidade judicial de políticas sociais, fornecendo base para ações civis públicas contra estados que não garantam estruturas adequadas. Ademais, a inclusão do homicídio infantil no rol de crimes hediondos, embora criticável sob a ótica da racionalidade penal, produz efeitos relevantes na execução, como vedação de indulto, aumentando o custo de desistência para potenciais agressores.
A tensão, portanto, desloca-se do plano estritamente dogmático para o campo da implementação. A efetividade da lei depende de três condições: i) integração de dados entre Disque-100, SINAN e sistemas de justiça; ii) financiamento estável para equipes especializadas; iii) formação continuada que incorpore perspectiva de gênero, raça e interseccionalidade. Sem esses requisitos, a norma corre o risco de servir apenas como instrumento de reafirmação simbólica de compromissos constitucionais já assumidos em 1988.
Assim, podemos afirmar com segurança que a Lei 14 344/2022 constitui passo relevante na densificação do princípio da proteção integral, mas carrega vícios de redação e escolhas punitivas que desafiam a proporcionalidade constitucional. Seu potencial emancipatório reside menos no agravamento de penas e mais na possibilidade de articular políticas públicas integradas que façam convergir ECA, SUS, SUAS e sistemas de educação. Para tanto, impõe-se superar a lógica do populismo punitivo apontada pela doutrina e instituir mecanismos de governança intersetorial, com metas mensuráveis e financiamento vinculante. Uma abordagem comprometida com a cidadania democrática exige que a indignação social se converta em investimentos concretos de cuidado, e não apenas em novas capitulações penais.
3. A Lei Henry Borel no sistema de proteção: avanços normativos e tensões
A Lei 14.344/2022 projeta-se como o elo mais recente do microssistema protetivo inaugurado pela Constituição de 1988 e densificado pelo ECA, mas sua operacionalização revela fraturas que desafiam a promessa de proteção integral. A primeira delas é a crônica invisibilidade estatística: embora os arts. 4.º e 5.º determinem a padronização e o compartilhamento intersetorial de registros, estudos apontam que a subnotificação permanece obstáculo central, em razão tanto da ausência de um protocolo unificado quanto da discrepância das bases estaduais (Lang; Ningeliski, 2024).
A exigência de relatórios integrados representa avanço normativo, mas depende de investimentos em interoperabilidade e de capacitação das equipes para que os dados se convertam em inteligência prospectiva, condição indispensável para a alocação de recursos por critérios epidemiológicos (Cruz, 2022).
O segundo gargalo encontra-se na rede de proteção. A Lei atribuiu ao Conselho Tutelar oito novas competências—entre elas a legitimidade para requerer medidas protetivas diretamente ao Judiciário—, encurtando a distância entre a denúncia e a concessão da proteção (Oliveira; Saraiva, 2024). Todavia, a expansão de atribuições não foi acompanhada do fortalecimento estrutural dos Conselhos, que continuam a operar com quadro reduzido, rotatividade alta e incerteza orçamentária, sobretudo em municípios de pequeno porte (Fernandes, 2024). O resultado é uma sobrecarga que compromete a celeridade prevista no art. 15, minando o potencial transformador da lei.
No plano jurisdicional, a hermenêutica do “tempo da vítima” trazida por Moreira de Oliveira e Dias problematiza o vazio legislativo quanto à duração das medidas protetivas: ausente parâmetro expresso, magistrados oscilam entre prazos exíguos, que recolocam crianças em risco, e decisões indeterminadas, suscetíveis a questionamentos de proporcionalidade (Oliveira; Dias, 2024). Essa lacuna jurisprudencial escancara a necessidade de diretrizes nacionais editadas pelo CNJ e de protocolos terapêuticos articulados entre Sistema de Justiça, SUS e SUAS, de modo a alinhar a vigência da medida às etapas de superação do trauma.
A vertente penal da Lei Henry Borel, por sua vez, reativa a controvérsia sobre direito penal simbólico. Campinho e Ferraz demonstram que a qualificação do homicídio de menores como crime hediondo incrementa a pena sem agregar tutela inédita, reproduzindo lógica de populismo punitivo que prioriza resposta emotiva em detrimento de políticas preventivas (Campinho; Ferraz, 2023).
A aposta em agravar sanções contrasta com evidências que relacionam a redução da violência infantil mais à eficácia das redes de cuidado do que ao recrudescimento punitivo. Essa dissonância hermenêutica alimenta decisões divergentes sobre a compatibilidade das novas qualificadoras com o princípio da proporcionalidade e expõe o paradoxo de um modelo que clama por prioridade absoluta, mas persiste em lógicas de última ratio mal calibradas.
Também há tensões interpretativas na articulação entre a Lei 14.344, a Lei Maria da Penha e o ECA. A abertura para que Conselhos Tutelares promovam medidas protetivas de urgência (art. 20) exige diálogo de competências para evitar sobreposições com varas especializadas em violência doméstica; sem um fluxo definido, casos podem ficar à deriva entre esferas cível, criminal e socioassistencial.
A literatura indica que a falta de coordenação provoca reiteradas falhas de acompanhamento, com reincidência de agressões mesmo após deferidas as cautelares (Moraes, 2022). Sob ótica sistêmica, a lei avançou ao instituir deveres operacionais claros, mas carece de instrumentos de governança capazes de sincronizar atores federativos, evitando a fragmentação de respostas.
Para que a Lei Henry Borel transcenda o simbolismo e se consolide como ferramenta efetiva de cidadania, quatro eixos de articulação intersetorial mostram-se estratégicos. O primeiro é a criação, no âmbito do SINAN, de um módulo exclusivo para violência infanto-juvenil, integrando registros do Disque 100, dos Conselhos Tutelares e dos tribunais, conforme já sinalizado pelo art. 4.º (Cruz, 2022). O segundo envolve pactuar, na CIT e na CIB, metas de cobertura mínima para equipes multiprofissionais, financiadas por fundo vinculado e com distribuição equitativa conforme indicadores de risco elaborados pelo Atlas da Violência (Cerqueira; Bueno, 2025). Terceiro, urge institucionalizar planos municipais de resposta rápida, nos moldes dos protocolos de saúde mental pós-desastre, garantindo que a vítima receba em até 72 horas atendimento médico-psicológico, inclusão escolar protegida e acompanhamento social. Por fim, programas de parentalidade positiva, previstos no art. 23 como estágio restaurativo, devem ser implementados de forma obrigatória para agressores, com avaliação de impacto independente, pois evidências apontam redução significativa de reincidência quando o agressor passa por reeducação (Macedo; Gomes, 2024).
Esses caminhos dialogam com a perspectiva crítica que recusa visões meramente punitivas e assume a violência infantil como fenômeno estrutural ligado a desigualdades de gênero, raça e classe. Ao converter a indignação social em políticas redistributivas, transparência de dados e fortalecimento comunitário, o Estado reafirma sua vocação democrática e desloca o eixo da proteção da retórica para a práxis.
A Lei Henry Borel representa avanço normativo inegável, mas sua efetividade repousa na capacidade de que seus dispositivos se enraízem em uma rede intersetorial robusta, orientada por evidências e sustentada por financiamento contínuo. Sem essa infraestrutura, persistiremos na armadilha do direito penal simbólico, que promete segurança enquanto mantém crianças e adolescentes à mercê da subnotificação e da omissão institucional.