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Uma análise do feminicídio no Brasil e sua relação com as estruturas patriarcais

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11/08/2025 às 14:46
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3. VIOLÊNCIA FAMILIAR COMETIDA EM FACE DAS MULHERES

A violência praticada por parceiros é amplamente reconhecida. De acordo com Deeke et al. (2009), por ser a forma mais recorrente de agressão contra mulheres, ela se manifesta diariamente, gerando medo e fazendo com que as vítimas sofram abusos físicos ou sexuais, em geral cometidos por pessoas com as quais mantêm vínculos afetivos próximos.

Kunzler (2015) salienta que a violência doméstica no ambiente familiar tende a apresentar padrões repetitivos, frequentemente ocorrendo por parte de pessoas com vínculo relacional próximo. Essas ações não se limitam apenas à agressão física, mas abrangem também o controle e a submissão, caracterizando-se por atos que incluem espancamentos, queimaduras, estrangulamentos, destruição de objetos, ameaças, perseguições, entre outros. Além disso, muitas vítimas são submetidas a danos emocionais, como humilhações, insultos e isolamento, o que configura diferentes expressões de violência psicológica.

Dentre os principais marcos legais, destaca-se a importância da Lei nº 11.340/2006, que trata da violência doméstica e familiar contra a mulher como qualquer conduta baseada em questões de gênero que resulte em sofrimento físico, emocional, sexual, patrimonial ou moral. A legislação contempla vários tipos de convívio, como o ambiente familiar, relações afetivas, mesmo que sem coabitação, incluindo casais homoafetivos (BRASIL, 2006).

Conforme a norma acima mencionada, é possível reconhecer, conforme aponta Cunha (2018), que a Lei Maria da Penha, ao tratar da violência doméstica, considera a relação entre autor e vítima como critério, podendo ela ser configurada mesmo quando não houver convivência contínua, bastando que haja histórico de vínculo íntimo entre ambos:

A lei é clara ao assegurar a proteção da vítima ainda que não coabite, isto é, viva sob o mesmo teto do seu agressor. Nesse sentido, aliás, o teor da Súmula n.º 600 do Superior Tribunal de Justiça, in verbis: “Para configuração da violência doméstica e familiar prevista no artigo 5º da Lei 11.340/2006, Lei Maria da Penha, não se exige a coabitação entre autor e vítima” (CUNHA, 2018, p. 67).

É relevante ressaltar, segundo Porto (2018), que a caracterização da violência doméstica vai além das estruturas familiares tradicionais, atingindo também uniões estáveis e outros vínculos afetivos. O conceito de família, portanto, não se restringe a casamentos legalmente formalizados, mas abrange relacionamentos contínuos, ainda que não reconhecidos oficialmente.

Importante destacar que a maioria dos casos de violência doméstica não é reportada às autoridades. Segundo Carvalho (2016), muitas mulheres permanecem em silêncio, seja por medo, dependência emocional ou econômica, o que contribui para a perpetuação da violência. Essa condição de vulnerabilidade é agravada pelas marcas deixadas pelas agressões, que afetam diretamente a dignidade e a autoestima da vítima. Ainda conforme Carvalho, a violência contra as mulheres praticada no seio familiar resulta de uma dinâmica de poder marcada pela desigualdade entre os gêneros. A relação entre autor e vítima, nesse contexto, é caracterizada por desequilíbrios estruturais que colocam a mulher em posição de submissão, tornando sua proteção um desafio constante para o Estado e a sociedade (Carvalho, 2016).

No mesmo sentido, Cunha (2018) enfatiza categoricamente que as agressões perpetradas contra mulheres no contexto doméstico são praticadas por pessoas que mantêm algum tipo de relação jurídica de caráter familiar, constituída por meio de matrimônio, laços consanguíneos ou vínculos estabelecidos por livre escolha. Evidencia-se, por conseguinte, que a violência doméstica possui como elemento distintivo a existência de proximidade relacional entre agressor e vítima, configurando um contexto de confiança que é violado através da prática de atos lesivos.

Bianchini (2018) observa que, para que a Lei Maria da Penha seja aplicada em situações de violência no ambiente doméstico, é fundamental que a mulher esteja inserida no contexto familiar e que exista ou tenha existido uma convivência com o agressor, ainda que não necessariamente na mesma residência, bastando a existência de um vínculo afetivo anterior entre as partes, com indícios de uma intenção relacional.

Continuando a explorar os ensinamentos do autor mencionado acima:

A Lei Maria da Penha exige, portanto, ligação entre a mulher ofendida e o agressor, razão pela qual se a mulher agredida não pertencer à unidade doméstica (p. ex., representante comercial agredida enquanto fornecia um produto à família) não há que se falar em aplicação da Lei Maria da Penha. Da mesma forma, se a esposa ou companheira for agredida na rua ou em um estabelecimento comercial, por exemplo, haverá incidência da Lei Maria da Penha em razão da ligação entre o agressor e a mulher vítima (BIANCHINI, 2018, p. 38).

Mirabete (2019) acrescenta que a Lei nº 11.340/2006 considera como violência doméstica qualquer ação ou omissão que ocorra em âmbito familiar ou íntimo, desde que esteja relacionada a questões de gênero. Isso inclui tanto o ambiente de coabitação quanto situações em que a vítima já tenha mantido laços afetivos com o agressor, abarcando violências física, emocional, sexual, patrimonial ou moral.

Ainda segundo a Lei nº 11.340/2006, conhecida como Lei Maria da Penha, são previstas diversas formas de agressão no contexto familiar, como a violência física, que diz respeito a ações que causem dor ou lesão corporal; a psicológica, caracterizada por atitudes que afetam a estabilidade emocional da vítima; a sexual, que envolve coação ou constrangimento para práticas sem consentimento; a patrimonial, relacionada à subtração ou destruição de bens e recursos; e a moral, que engloba ataques à honra, calúnia ou difamação (BRASIL, 2006).

No que se refere às agressões físicas, Cunha (2018) explica que essas condutas estão previstas no Código Penal, nos artigos 121, §2º, inciso VI, e 129, podendo ser enquadradas como lesão corporal e até feminicídio.

No que tange as de caráter sexual, Dias (2010) relata que:

Felizmente a doutrina penal já evoluiu no que se refere ao tema “debito conjugal”. Houve época, no entanto, em que por decorrência desse dever inerente ao casamento, sequer se reconhecia a prática de estupro do marido com relação à mulher, sob o absurdo argumento de que se tratava de um direito inerente à condição de marido, que o poderia exigir inclusive sob violência (DIAS, 2010, p. 68).

Diante desse cenário, ao analisarmos a questão da violência de gênero, torna-se claro que muitas mulheres ainda vivenciam agressões dentro de seus próprios lares. Embora avanços legislativos tenham sido conquistados, tais como a criação de mecanismos legais de proteção, é necessário que essas medidas sejam devidamente aplicadas para assegurar a integridade e os direitos das vítimas. Políticas públicas mais eficazes e sensíveis à realidade das mulheres devem ser colocadas em prática, com o propósito de promover a segurança e a dignidade de quem sofre tais violações.

3.1. As consequências ocasionadas pela violência familiar dentro dos lares brasileiros

Segundo Oliveira (2005) a família desempenha um papel fundamental na constituição e formação dos princípios morais dos indivíduos. Assim, a desagregação familiar resultante das violências no lar leva os integrantes a desenvolver comportamentos delituosos. Assim, o ambiente familiar revela-se fundamental para o crescimento de crianças e adolescentes, uma vez que as dinâmicas relacionais que ocorrem nesses espaços têm grande relevância na formação de comportamentos pró ou antissociais dessas pessoas.

Para Dias (2010), cada tipo de violência pode provocar um agravamento das consequências, que podem ser físicas, cognitivas ou sociais. Além disso, pode deixar marcas irreversíveis no sistema emocional e afetivo da pessoa afetada.

De acordo com o que foi exposto, as violências perpetradas contra as mulheres no seio familiar podem ter consequências graves, especialmente para os filhos. Neste contexto, Demo (2002) discorre sobre a desestruturação familiar onde ser frequentemente reconhecida como um fator significativo na crescente presença de crianças e adolescentes em situação de rua, destacando-se a marginalização socioeconômica. Esta realidade pode resultar no aumento da gravidez precoce, na atração por contextos perigosos fora do núcleo familiar, na criação de gangues e fenômenos semelhantes, bem como num desempenho escolar insatisfatório e num acentuar do afastamento entre gerações.

Ademais, seguindo os ensinamentos do autor já mencionado, aponta que a família constitui o ambiente social onde o ser humano estabelece as suas primeiras relações e é exposto às suas primeiras normas e limites, desse modo, os conflitos familiares influenciam o comportamento dos seus membros nas interações com outros indivíduos (Demo, 2002).

É importante mencionar que, conforme o artigo 277 da Constituição Federal de 1988, à família compete:

Art. 277. - É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão (BRASIL, 1988).

Deste modo, Siqueira et al (2011) afirma que os primeiros passos para o desenvolvimento social do indivíduo são de responsabilidade da família, que detém também o dever de socializar e proteger os seus membros. Assim, a família assume a responsabilidade pelos ensinamentos transmitidos, estabelecendo limites em relação aos comportamentos dos indivíduos, orientando-os sobre o que é aceitável e o que não deve ser feito, garantindo proteção em situações nas quais não têm capacidade de agir sozinhos. Por outro lado, nos lares onde a violência se manifesta, a realidade é radicalmente distinta, os indivíduos presentes ignoram as normas sociais estabelecidas pela legislação e começam a cometer abusos através de agressões físicas e psicológicas, desestruturando toda a dinâmica familiar.

Em se tratando das mulheres, são diversas as marcas que a violência familiar deixa na sua vida. Costumando desenvolver elevados níveis de irritabilidade, depressão e até tentativas de suicídio. O seu bem-estar emocional é gravemente afetado, com o desânimo e a tristeza a tornarem-se parte integrante da sua existência.

Face a tudo o que foi referido, constata-se que a violência familiar é uma prática absolutamente covarde, visto que acontece no seio do núcleo familiar, onde era suposto haver carinho, amor e atenção, considerando-se, por conseguinte, o refúgio seguro da família. Contudo, lamentavelmente, a violência doméstica está presente na realidade de inúmeras famílias brasileiras, provocando sequelas irreversíveis tanto para as vítimas como para aqueles que assistem a tais atos, resultando assim na desestruturação do ambiente familiar.


4. FEMINICÍCIO: DAS CARACTERÍSTICAS À ÍNTIMA RELAÇÃO COM O PATRIARCADO

O feminicídio pode ser qualificado, de acordo com Ortega (2016), como homicídio doloso realizado em desfavor da mulher, praticado única e exclusivamente, em virtude da vítima ser do sexo feminino. Já Diniz (2016) explana que a expressão feminicídio adveio da palavra “femicide” que tem como significado principal os homicídios praticados contra as mulheres em decorrência de questões relacionadas ao gênero, e que se processa dentro dos ambientes familiares ou em qualquer outro tipo de relação de convívio no meio social.

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De acordo com Montaño (2012), o feminicídio constitui a expressão mais brutal da violência de gênero, refletindo as bases estruturais de um sistema patriarcal historicamente consolidado. Essa lógica social hierarquizada legitima a subordinação das mulheres e naturaliza práticas violentas contra elas. A persistência desses crimes é intensificada pela omissão do Estado, cuja ineficácia em preveni-los e puni-los contribui para a perpetuação de um cenário de impunidade e desproteção. Salienta-se assim que a prática do feminicídio, segundo Lagarde (2006), não consiste tão apenas em uma agressão cometida por homens em desfavor das mulheres, mas sim pela predominância de um sobre o outro, e a persistente desigualdade de gênero que marca as relações sociais.

A predominância acima referida pode ser de cunho social, financeira, sexual, dentre outras, considerando-as submissas a seus desejos, ficando cristalizado que, um dos motivos geradores do grande número de violência contra as mulheres está diretamente ligada ao fato do homem ser “considerado” a espécie dominadora e a mulher a parte dominada, onde as mesmas devem ser subordinadas a seus maridos, parceiros ou companheiros, realizando todos os seus desejos, pois caso contrário sofrerão as consequências (Lagarde, 2006).

Assim sendo, Belloque (2015) relata que:

A violência contra a mulher no âmbito doméstico e familiar (aquela que ocorre de forma reiterada e multifacetada, verdadeira violência estrutural) é um fenômeno social de horror, de dominação e que cala as mulheres. Sendo inegável que ainda convivemos com essa realidade social – não só no Brasil, como em todas as partes do globo, fruto de séculos de uma cultura patriarcal que passou a ser compreendida e enfrentada há poucas décadas (BELLOQUE, 2015, p. 03).

Desta forma, Chakian (2017) explana que o feminicídio poderá vir a se dar tanto pelo seu companheiro como também seus ex-companheiro, membros familiares, colegas de profissão, pessoas pelas quais a vítima não conhece, de forma individual com coletiva. A tipificação do feminicídio no ordenamento jurídico brasileiro representa não apenas um avanço legislativo, mas também o reconhecimento institucional de que o assassinato de mulheres está enraizado em relações desiguais de poder, sustentadas historicamente por uma cultura patriarcal que normalizou a violência de gênero (BERTOLIN; ANGOTTI; VIEIRA, 2020).

Diante de todo o exposto, nota-se que há um consenso entre os autores acerca do crime de feminicídio, onde todos deixam claro se tratar de um ato praticado em desfavor da mulher, exercido principalmente por seus companheiros e por entes familiares, em decorrência das discriminações que os mesmos possuem em face ao sexo feminino.

4.1. Lei n.º 13.104/2015

Assegurar os princípios fundamentais pelos quais proporcionam uma proteção para as mulheres, consiste em uma atividade árdua e trabalhosa. Pois, o que antes estava limitado a agressões físicas, verbais e psicológicas, voltou-se para a prática de homicídios em desfavor das mulheres, sendo, na maioria das vezes, praticados pelos seus companheiros, sejam eles maridos, entes familiares, namorados, dentre outros, ocorrendo, principalmente, no interior dos seus lares e na presença de seus filhos.

Dessa forma, tornou-se de suma importância a instituição de um meio normativo que viesse com o intuito de coibir tais atos e, principalmente, punir aqueles que, porventura venha a pratica-los. Assim, no ano de 2015 foi instituída e promulgada a Lei de número 13.104/2015 que tipifica o feminicídio como um ato de caráter criminoso, tendo como finalidade central combater a discriminação existente no que tange a identidade de gênero, punindo com aplicação de sanções aos transgressores que insistem por tais práticas.

Nesse sentido, Filho (2017) vem a explana que:

A lei 13.104/2015 que acrescentou ao Código Penal mais uma forma de homicídio qualificado e também hediondo, com penas que variam de 12 a 30 anos de reclusão, é oriunda da CPI Mista da Violência contra a Mulher que ressaltou, ao justificar a proposta, o assassinato de 43,7 mil mulheres no País entre 2000 e 2010, sendo 41% delas mortas em suas próprias casas por companheiros ou ex-companheiros. O aumento de 2,3 para 4,6 assassinatos por 100 mil mulheres entre 1980 e 2010 colocou o Brasil na sétima posição mundial de assassinatos de mulheres. O marido, parceiro, companheiro ou namorado é o responsável por mais de 80% dos casos reportados (FILHO, 2017, p. 283).

Conforme Greco (2015) enfatiza, a incorporação do feminicídio como uma categoria específica de homicídio no Código Penal foi um passo significativo na luta contra a violência de gênero. A alteração do artigo 121 passou a caracterizar o feminicídio como o assassinato de uma mulher em função de sua condição feminina, especialmente em situações relacionadas à violência doméstica e familiar ou motivadas por desprezo ou discriminação pela condição feminina. As sanções para esse tipo penal são mais rigorosas e podem ser aumentadas sob certas circunstâncias, como quando o crime ocorre durante a gestação ou nos meses após o parto (BRASIL, 1940).

Vale ressaltar que a Lei do feminicídio não vem a dispor de um tipo penal em particular, mas sim introduzir mais um procedimento de homicídio qualificado. Em se tratando do sujeito ativo acerca do cometimento do crime de feminicídio Greco (2015) vem a relatar que este poderá ser realizado por qualquer indivíduo, tanto do sexo masculino como do feminino. Desta forma, o autor supracitado, acima vem a afirmar que:

[...] no crime de feminicídio, pode ser praticado por homem ou uma mulher, e não existe óbice à aplicação da qualificadora se, em uma relação homoafetiva feminina, umas das parceiras, vivendo em um contexto de unidade doméstica, vier a causar a morte de sua companheira (GRECO, 2015, p. 59).

Já no que tange ao agente passivo do crime de feminicídio, a Lei de número 13.104/2015 dispõe, expressamente, que a mulher será, única e exclusivamente, a vítima neste ato, contanto que, este crime seja acometido em virtude do estipulado pelo parágrafo 2º-A do artigo 121 do CP.

Art. 121. [...]

§ 2º -A- Considera-se que há razões de condição de sexo feminino quando o crime envolve:

I – violência doméstica e familiar;

II – menosprezo ou discriminação à condição de mulher.

[...] (BRASIL, 1940).

Desta forma Cunha (2016, p. 79) explana que “a incidência da nova figura criminosa reclama situação de violência praticada contra a mulher, em contexto caracterizado por relação de poder e submissão, praticada por homem ou mulher em situação de vulnerabilidade.”

4.2. Das medidas protetivas de urgência

As medidas protetivas de urgência são reconhecidas como instrumentos relevantes no enfrentamento à violência contra as mulheres, especialmente em casos que possam evoluir para situações mais graves, como o feminicídio. Segundo Costa (2020), elas devem ser aplicadas de forma imediata e com sensibilidade por parte das autoridades competentes. O pedido pode ser feito diretamente pela vítima ou por meio de representante legal, Ministério Público ou autoridade policial. Uma vez requisitadas, essas medidas devem ser apreciadas pelo juiz em até 48 horas, o que reforça tanto a urgência da situação quanto a importância de uma atuação judicial célere para preservar a integridade da vítima.

Salienta-se com isso que a Lei nº 11.340/2006 conhecida popularmente como Lei Maria da Penha por meio dos seus artigos 23 e 24, com o intuito de proteger a integridade física, psicológica, moral, sexual e patrimonial das mulheres de maneira a garantir a sua segurança, resguardando seus direitos fundamentais, passaram a estabelecer medidas protetivas de urgência, estabelecendo que:

Art. 23. – Poderá o juiz, quando necessário, sem prejuízo de outras medidas:

I – encaminhar a ofendida e seus dependentes a programa oficial ou comunitário de proteção ou de atendimento;

II – determinar a recondução da ofendida e a de seus dependentes ao respectivo domicílio, após afastamento do agressor;

III – determinar o afastamento da ofendida do lar, sem prejuízo dos direitos relativos a bens, guarda dos filhos e alimentos;

IV – determinar a separação de corpos;

V – determinar a matrícula dos dependentes da ofendida em instituição de educação básica mais próxima do seu domicílio, ou a transferência deles para para essa instituição, independentemente da existência de vaga.

Art. 24. – Para a proteção patrimonial dos bens da sociedade conjugal ou daqueles de propriedade particular da mulher, o juiz poderá determinar, liminarmente, as seguintes medidas, entre outras:

I – restituição de bens indevidamente subtraídos pelo agressor à ofendida;

II – proibição temporária para a celebração de atos e contratos de compra, venda e locação de propriedade em comum, salvo expressa autorização judicial;

III – suspensão das procurações conferidas pela ofendida ao agressor;

IV – prestação de caução provisória, mediante depósito judicial, por perdas e danos materiais decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a ofendida. (BRASIL, 2006).

No que se refere às medidas protetivas de urgência dirigidas ao agressor, a Lei 11.340/2006, por meio do seu artigo 22 e dos seus incisos e parágrafos subsequentes, estabelece que:

Art. 22. – Constatada a prática de violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos deste Lei, o juiz poderá aplicar, de imediato, ao agressor, em conjunto ou separadamente, as seguintes medidas protetivas de urgência, entre outras:

I - suspensão da posse ou restrição do porte de armas, com comunicação ao órgão competente, nos termos da Lei n.º 10.826, de 22 de dezembro de 2003;

II - afastamento do lar, domicílio ou local de convivência com a ofendida;

III - proibição de determinadas condutas, entre as quais:

a) aproximação da ofendida, de seus familiares e das testemunhas, fixando o limite mínimo de distância entre estes e o agressor;

b) contato com a ofendida, seus familiares e testemunhas por qualquer meio de comunicação;

c) frequentação de determinados lugares a fim de preservar a integridade física e psicológica da ofendida;

IV - restrição ou suspensão de visitas aos dependentes menores, ouvida a equipe de atendimento multidisciplinar ou serviço similar;

V - prestação de alimentos provisionais ou provisórios.

VI – comparecimento do agressor a programas de recuperação e reeducação; e

VII – acompanhamento psicossocial do agressor, por meio de atendimento individual e/ou em grupo de apoio.

§ 1º As medidas referidas neste artigo não impedem a aplicação de outras previstas na legislação em vigor, sempre que a segurança da ofendida ou as circunstâncias o exigirem, devendo a providência ser comunicada ao Ministério Público.

§ 2º Na hipótese de aplicação do inciso I, encontrando-se o agressor nas condições mencionadas no caput e incisos do art. 6º da Lei nº 10.826, de 22 de dezembro de 2003, o juiz comunicará ao respectivo órgão, corporação ou instituição as medidas protetivas de urgência concedidas e determinará a restrição do porte de armas, ficando o superior imediato do agressor responsável pelo cumprimento da determinação judicial, sob pena de incorrer nos crimes de prevaricação ou de desobediência, conforme o caso.

§ 3º Para garantir a efetividade das medidas protetivas de urgência, poderá o juiz requisitar, a qualquer momento, auxílio da força policial.

§ 4º Aplica-se às hipóteses previstas neste artigo, no que couber, o disposto no caput e nos §§ 5º e 6º do art. 461. da Lei nº 5.869, de 11 de janeiro de 1973 (Código de Processo Civil). (BRASIL, 2006).

Percebe-se, diante deste contexto, que entre as principais medidas protetivas a serem aplicadas destaca-se, de acordo com Oliveira (2021) e como bem transcrito pelos preceitos normativos, o afastamento do agressor do lar ou local de convivência com a vítima, visando impedir que ele mantenha qualquer tipo de contato com a mulher, reduzindo as chances de novas agressões. Outras ações envolvem a determinação de uma distância mínima que deve ser mantida entre o agressor e a vítima, seus parentes ou testemunhas, visando prevenir novas situações perigosas. Ademais, é proibido qualquer tipo de comunicação, seja ela presencial, por telefone, digital ou através de intermediários, garantindo assim proteção total à integridade física e mental da mulher em situação de violência.

Também poderá ser determinado o encaminhamento da mulher e de seus dependentes a abrigos ou programas de proteção e assistência, tornando essa medida, segundo Oliveira (2021), uma ação importante, principalmente quando a mulher se encontra em situação de extrema vulnerabilidade e não dispõe de uma rede de apoio que possa garantir sua segurança. Além disso, pode-se garantir à vítima o direito de permanecer no lar, caso isso seja mais seguro, obrigando o agressor a se afastar.

Nos casos mais graves, em que há fortes indícios de que o agressor possa tentar contra a vida da vítima, as medidas protetivas podem ser acompanhadas de ações mais severas, como a prisão preventiva do agressor. O descumprimento das medidas protetivas de urgência é considerado crime, conforme previsto no Código Penal, com pena de reclusão, o que reforça o caráter coercitivo e preventivo dessas medidas.

Nota-se, diante desta contextualização que diversas medidas foram adotadas com o intuito de propiciar uma maior proteção para com as mulheres. Partindo desse princípio, Costa (2016) destaca que a Lei Maria da Penha foi assim intitulada em referência a Maria da Penha Maia Fernandes, vítima de reiteradas agressões por parte de seu companheiro, culminando em uma tentativa de homicídio que lhe causou sequelas permanentes. Sua trajetória passou a representar a luta de inúmeras mulheres em contextos semelhantes. Em razão de sua relevância, a lei foi reconhecida pela Organização das Nações Unidas como uma das mais eficazes normas de combate à violência contra a mulher no cenário internacional. Assim deve ser caracterizada não somente como um preceito normativo destinado a alterar a legislação penal, e sim como um importante instrumento legal de proteção aos direitos humanos das mulheres para uma vida livre de violência.

É importante frisar que a Lei nº 13.641/2018 tipificou como crime a violação de medida protetiva, fortalecendo a efetividade dessas ações de proteção. Essa legislação tem como finalidade responsabilizar e punir os agressores que desrespeitam a determinação judicial, funcionando como importante mecanismo de combate à violência doméstica e de promoção da segurança das mulheres.

4.3. A (in) eficácia das medidas protetivas de urgência

As medidas protetivas, nos casos de feminicídio, não são apenas uma resposta legal, mas um instrumento de justiça social que busca interromper o ciclo de violência de forma a prevenir a sua escalada para um desfecho fatal. Contudo, apesar da existência desses mecanismos legais, a agressão contra mulheres continua aumentando no país. Segundo informações do Anuário Brasileiro de Segurança Pública (2024), todas as modalidades de violência baseada em gênero registraram crescimento, levantando dúvidas sobre a eficácia das medidas protetivas e das políticas públicas destinadas ao enfrentamento dessa questão (BRASIL, 2024).

Nessa senda, Costa (2020) destaca que em muitos casos, as medidas protetivas não conseguem garantir a real segurança da vítima. Isso ocorre porque, embora a lei determine que o agressor necessite ser afastado da vítima, ficando proibido de manter contato, não há uma fiscalização para garantir o cumprimento dessas ordens. Fazendo com que em diversas situações, as mulheres continuem sendo ameaçadas, perseguidas e até mesmo assassinadas, mesmo estando sob a proteção legal, evidenciando a prática do feminicídio, mesmo em contextos onde medidas protetivas já haviam sido concedidas.

Outro problema importante e bem destacado pelo autor supracitado acima, é a morosidade na concessão e execução dessas medidas. Apesar da determinação legal de que o juiz deve decidir sobre o pedido em até 48 horas, a sobrecarga do sistema judiciário e a escassez de juizados especializados fazem com que esse prazo muitas vezes não seja respeitado. Em cidades do interior ou em regiões mais carentes, a dificuldade de acesso à justiça torna-se um obstáculo quase intransponível para as mulheres que necessitam de proteção urgente (Costa, 2020).

Além disso, muitas vítimas desconhecem seus direitos ou sentem medo e desconfiança de procurar ajuda, por não acreditarem que o sistema seja capaz de protegê-las efetivamente. A ausência de apoio psicológico, orientação jurídica e rede de acolhimento também contribui para que as medidas protetivas, por si só, não sejam suficientes para romper com o ciclo de violência.

Apesar desses desafios, Oliveira (2021) destaca que as medidas protetivas continuam sendo uma ferramenta essencial. No entanto, para que sua eficácia seja plena, torna-se necessário um esforço conjunto entre Estado e sociedade. Incluindo, nesta ocasião, o fortalecimento das delegacias da mulher, a ampliação de casas de abrigo, a capacitação dos profissionais da rede de atendimento e a criação de mecanismos de monitoramento, como o uso de tornozeleiras eletrônicas em agressores reincidentes.

Assim, fica evidente, portanto, que a eficácia das medidas protetivas de urgência depende não apenas de sua previsão legal, mas da sua efetiva implementação, fiscalização e do compromisso institucional com a proteção das mulheres. Enquanto esses elementos não forem garantidos, sua eficácia continuará sendo parcial e, em muitos casos, apenas simbólica.

4.4. Patriarcado e feminicídio: questões estruturais

Inicialmente, mencione-se que a configuração social hierárquica baseada na supremacia masculina encontra-se historicamente vinculada ao processo de consolidação da propriedade privada e à emergência dos sistemas econômicos capitalistas. A perpetuação de estruturas dominantes reflete-se na organização laboral contemporânea, onde são reproduzidas divisões funcionais que confinam o elemento feminino ao exercício de atividades domésticas não remuneradas. Paralelamente, consolida-se a atribuição ao elemento masculino da responsabilidade econômica externa, configurando uma dicotomia que reproduz padrões ancestrais de subordinação e controle social estruturado (Viana; Costa, 2024, p. 2833).

As manifestações discriminatórias fundamentadas na negação da equiparação de direitos entre gêneros, por sua vez, constituem fenômeno social complexo que favorece sistematicamente o segmento masculino da população. É o que afirmam Viana e Costa (2024, p. 2833), para quem a consolidação histórica de concepções centradas na concentração unilateral de poder resulta na formação de estruturas culturais que desconsideram sistematicamente a autonomia e os direitos fundamentais do segmento feminino.

Nesse contexto, o feminicídio se caracteriza como crime de ódio motivado pela violação de normas patriarcais, especialmente a recusa feminina em submeter-se ao controle masculino sobre sua autonomia e decisões. A estrutura social tradicional atribui ao homem a autoridade moral e doméstica, legitimando o poder sobre a mulher, inclusive em relação ao seu corpo e funções reprodutivas. Com o casamento, historicamente, transferia-se ao marido o domínio sobre o útero feminino, negando à mulher o direito à autodeterminação. A resistência a essa ordem hierárquica, ainda que implique riscos, reforça o reconhecimento progressivo de que o corpo feminino é inviolável e não sujeito a posse (Bizan, 2022, p. 29-34).

Nas palavras de Donadel e Wittckind (2023, p. 316):

Para que o ato de matar uma mulher seja considerado feminicídio é preciso que tenha decorrido de ódio a ela, pelo fato de ser mulher. Odiar mulheres é um requisito de manutenção do patriarcado, marcado por perseguições, proibições, desigualdades e assassinatos decorrentes de imposição de padrões sociais e familiares que as mulheres, até hoje, não conseguem cumprir.

Conforme sinalizado por Viana e Costa (2024, p. 2834), a sociedade patriarcal consolida estereótipos que associam homens a domínio e mulheres a subordinação, naturalizando hierarquias de gênero através de construções históricas e culturais. Essa dinâmica legitima desigualdades estruturais, dificultando a ruptura de ciclos de violência, uma vez que as vítimas enfrentam pressões para preservar a harmonia familiar, mesmo sob coerção física ou psicológica. A ausência de redes de apoio eficazes, somada à tolerância social, perpetua a vulnerabilidade feminina em relações abusivas.

Importa mencionar, ainda, que um dos reflexos do patriarcado é a culpabilização da própria vítima, fenômeno que se manifesta de forma recorrente na cobertura midiática de casos de feminicídio. Estudos têm confirmado esse padrão ao revelar que, em casos submetidos ao escrutínio da mídia, a responsabilidade pelo crime é atribuída, direta ou indiretamente, à mulher assassinada. Tal prática reforça argumentos da teoria feminista, segundo os quais a culpabilização midiática das vítimas representa um entrave à conscientização social e à superação das estruturas que sustentam a violência de gênero (Taylor, 2019, p. 23).

Diante desse panorama, parece evidente que o feminicídio não decorre de atos isolados ou desvios individuais, mas se insere em um sistema social que reproduz desigualdades de gênero profundamente enraizadas. A permanência de estruturas patriarcais, que legitimam o controle sobre o corpo e as escolhas femininas, contribui diretamente para a naturalização da violência. Assim, a compreensão do feminicídio requer a análise crítica das dinâmicas de poder que sustentam essas práticas, sendo indispensável o enfrentamento das bases culturais, simbólicas e institucionais que perpetuam a dominação masculina e a subalternização das mulheres.

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Sobre a autora
Suziane Mesquita da Silva

Graduanda do curso de Direito do Centro Universitário Luterano de Manaus, CEULM/ULBRA/Manaus, AM.

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Orientador: Caupolican Padilha Junior, Professor, Mestre em Direito Público pela UFSC, orientador do Trabalho de Conclusão de Curso do Curso de Direito do Centro Universitário Luterano de Manaus – CEULM/ULBRA/Manaus, AM.

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