Capa da publicação Luta de classes e justiça política no Ceará imperial
Capa: Sora/Canva
Artigo Destaque dos editores

Luta de classes no Cariri oitocentista e a “independência” da magistratura imperial.

O homicídio de um abastado proprietário por seu empregado (Crato, 1857)

Exibindo página 1 de 2

Resumo:

RESUMO



  • O artigo aborda um crime incomum no Cariri oitocentista: o homicídio de um rico proprietário por um de seus empregados.

  • Analisando o caso sob a ótica do materialismo histórico, destaca-se a influência das lutas de classes e a falta de independência da magistratura imperial no julgamento do crime.

  • Com base em fontes bibliográficas e documentais, são exploradas as hipóteses para o homicídio, a formação social do Cariri e a relação entre o crime e a defesa da honra em um contexto de violência e mandonismo.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

O estudo do assassinato de um patrão por um empregado em 1857 revela as tensões sociais no Cariri cearense. A decisão judicial foi influenciada por disputas políticas e pela estrutura da magistratura imperial.

Resumo: O presente artigo busca elucidar um crime incomum até mesmo para o cenário extremamente violento do Cariri oitocentista (1857): o homicídio de um rico proprietário de terras e de escravizados por um de seus empregados (trabalhador livre). Considerando as duas hipóteses (ou "razões") levantadas à época para esse homicídio, o caso foi analisado sob o prisma metodológico do materialismo histórico (especificamente sob a visão marxista da “história das sociedades” como a “história das lutas de classes”). Ademais, foi feito o escrutínio do julgamento do crime em questão, apontando os limites da “independência” da magistratura imperial. Para a obtenção dessas informações, foram consultadas diversas fontes bibliográficas (livros, teses, artigos, jornais da época) e documentais (assentamentos de batismo, de casamento e de óbitos).

Palavras-chave: Luta de Classes; Magistratura imperial; Cariri Cearense.

Sumário: 1. Introdução. 2. O estigma da violência na formação social do Cariri cearense (séculos XVIII e XIX). 3. Vida e morte de um rico proprietário: o caso de José Duarte Pinheiro e a luta de classes. 4. O julgamento do homicida e a independência da magistratura imperial. Considerações finais.


1. INTRODUÇÃO

Em 17 de março de 1857, a cidade do Crato (Cariri cearense) foi abalada por uma notícia um tanto incomum: o assassinato de um rico proprietário por um de seus empregados. O morto era a pessoa de José Duarte Pinheiro, cidadão bem quisto na cidade. Já o seu algoz era João Dias de Oliveira, morador das terras de José Duarte (O ARARIPE, 1857a, p.2).

O fato em si surpreendia. Afinal, mesmo numa sociedade em que a violência estava enraizada, como era o Cariri do século XIX, os assassínios raramente eram praticados pelas classes mais baixas em detrimento das mais altas. Um homicídio de um proprietário por um não-proprietário ocorria geralmente a mando de outro proprietário, segundo as dinâmicas da capangagem. Eram raros, portanto, que esses assassinatos ocorressem por motivações particulares desses não-proprietários. No caso de José Duarte Pinheiro, a situação foi diversa: todas as duas hipóteses das razões para o homicídio da vítima indicavam uma motivação pessoal de João Dias de Oliveira.

Assim, considerando a frase de Marx e de Engels de que “a história de todas as sociedades até agora tem sido a história da luta de classes” (MARX; ENGELS, 2008, p.10), o presente artigo buscará observar em que medida o enredo desse homicídio se explica por uma dinâmica puramente de conflito entre os diferentes interesses de classe (proprietários e não-proprietários). Posteriormente, após a análise histórica do julgamento e da condenação do homicida (João Dias de Oliveira), será discutida a independência da magistratura imperial, que, no caso em questão, reduziu a pena de João Dias de 20 anos para 12 anos de prisão, supostamente pelo fato da vítima, José Duarte Pinheiro, ser um membro do Partido Liberal (O ARARIPE, 1857b, p. 1).


2. O ESTIGMA DA VIOLÊNCIA NA FORMAÇÃO SOCIAL DO CARIRI CEARENSE (SÉCULOS XVIII E XIX)

Embora não se desconsidere aqui as hipóteses, baseadas na história oral, de que o “descobrimento” do Cariri cearense se deu por um escravizado da Casa da Torre dos d'Ávila ainda no século XVII (BRÍGIDO, 2007, p. 6), o certo é que a ocupação dessa região por brancos se intensifica a partir da primeira metade do século XVIII. Nesse sentido, algumas famílias são marcadamente conhecidas como as primeiras a adquirirem datas de sesmarias na região. Dentre elas estão os Duarte Pinheiro (MOREIRA; DUARTE, 2024, p.19).

Não é por mero acaso, portanto, que o rico cidadão analisado neste estudo, José Duarte Pinheiro, descenda de uma das famílias que primeiro habitou as plagas sul-cearenses e que, desse modo, fazia parte de um seleto grupo de possuidores de terras.

Isso porque, conforme pode ser observado, a posse de grandes propriedades, instaurada segundo a lógica sesmarial, marcava as diferenças de poder entre os indivíduos, já que a terra era o meio essencial da produção. Era a terra, então, a força-motriz da economia caririense, que se baseava, primordialmente, no cultivo da cana-de-açúcar, da mandioca e na criação do gado lanígero e bovino.

Assim, a posse ou não de terras marcava um abismo de poder e de riqueza entre os habitantes do Cariri, o que, por sua vez, favorecia o fenômeno do mandonismo.

Afinal, num país marcado pela escravidão, mesmo aqueles que fossem livres, mas pobres, ficavam subjugados à ideologia do “favor” dos mais abastados, mediador universal entre esses dois grupos (SCHWARZ, 2023, pos. 435). Uma vez contrariados, os ricos barbarizavam os seus inimigos, fossem eles pobres ou ricos.

Dessa forma, o Cariri cearense (séculos XVIII e XIX) era, então, caracteristicamente conhecido como terra de coronéis e de cangaceiros, o que levou ao extremo de uma proposta de criação de uma “Província dos Cariris Novos” no século XIX para pacificar a região (PINHEIRO, 2009, p. 33).

Percebe-se assim que a formação social do Cariri se dá sob o estigma da violência.

A violência em questão assustava de estrangeiros a brasileiros, que de outras regiões, visitavam o sul cearense.

Nesse sentido, o viajante inglês George Gardner descrevia o Crato do início do século XIX como uma terra de “moral baixa” e de gente desordeira (GARDNER, 1942, p. 153):

“A moral dos habitantes de Crato é, em geral, baixa. E o jogo de cartas sua ocupação principal. Durante o dia, quando faz bom tempo, vêem-se grupos de todas as classes, desde os que se chamam gente bôa até os de ínfima condição social, sentados nos passeios à sombra das casas, profundamente absorvidos no jogo. Os mais respeitáveis jogam dolares, os pobres ou jogam moedas de cobre ou usam grãos de feijão como tentos. Levantam-se então frequentes brigas que muitas vezes se resolvem a ponta de faca.”

Até mesmo as manifestações religiosas populares do Cariri eram carregadas de certa violência, como a “auto-flagelação” dos chamados “penitentes”, que horrorizaram o médico carioca Francisco Freire Alemão em 1859 (ALEMÃO, 2011, p. 150).

De todo modo, as classes subalternas caririenses, historicamente formadas sob esse estigma da violência, estavam condicionadas aos desejos das classes mais abastadas. Como resume Gustavo Barroso, poucas opções eram dadas ao sertanejo pobre dependente dos donos de terras (BARROSO, 2015, p. 193):

“Ao sertanejo pobre abrem-se duas carreiras: ou é vaqueiro de um fazendeiro qualquer ou agregado, isto é, morador nas terras do fazendeiro, trabalhando como jornaleiro seu, podendo ser expulso da noite para o dia. Sendo agregado ou morador, arrastará vida miserável, sem casa, sem terra, sem gado, plantando na terra alheia, sempre dependente. Ao vaqueiro abre-se outra perspectiva. Guardará a fazenda, tirará sortes, poderá fazer um dia sua independência. Além disso, vestirá roupa de couro, correrá nas vaquejadas fazendo proezas, terá nome como pegador de gado, ou como capador de animais, ou ainda como curador de feridas e bicheiras”.

Assim, embora o Cariri do século XIX fosse uma região relativamente “acostumada” com a violência ali reinante, o homicídio de um rico cidadão por seu empregado era um crime que ainda assim chocava a sociedade. Poucos eram os pobres livres que desafiavam a ordem de seus senhores. Nesse sentido, as hipóteses do assassinato de José Duarte e as suas relações com as lutas de classes merecem ser melhor investigadas.


3. VIDA E MORTE DE UM RICO PROPRIETÁRIO: O CASO DE JOSÉ DUARTE PINHEIRO E A LUTA DE CLASSES

Em 1848, os alemães Marx e Engels ao publicarem o “Manifesto do Partido Comunista” resumiram a história das sociedades como “a história da luta de classes” (MARX; ENGELS, 2008, p.10). Em 2023, o filósofo brasileiro Paulo Arantes (2023) repetiu, de certo modo, a máxima marxista ao dizer que o conflito básico brasileiro reside em “proprietários versus não-proprietários”. Ademais, segundo esse mesmo pensador, historicamente, no Brasil, quando os proprietários se sentem ameaçados, eles costumam barbarizar os não-proprietários (ARANTES, 2023).

De fato, essa tem sido a história brasileira desde a colonização: a barbárie contra os despossuídos, que tem suas marcas no massacre de indígenas na Guerra dos Bárbaros na Colônia, passando pela Revolta dos Malês no Império, ao Massacre de Canudos na República.

Assim, a morte de um rico proprietário de terras, como José Duarte Pinheiro, pelo seu empregado faz levantar a suspeita de que esse homicídio tenha alguma relação com o conflito entre as classes de proprietários (José Duarte Pinheiro) e de não-proprietários (João Dias de Oliveira).

Desse modo, retrocedendo a análise da vida de José Duarte Pinheiro podemos calcular que esse nasceu ainda entre os anos de 1807 e 1808 segundo consta em seu assentamento de óbito1. Casou com Maria Isabel Tavares a 13 de novembro de 18442 e era proprietário de ao menos 5 propriedades nos sítios Guaribas, Páscoa e São Gonçalo do Crato no ano de 18573. Além da posse de terras, foi possível localizar também três escravizados que pertenciam a José Duarte Pinheiro, a saber: Luiz, Alexandre e Dionísia4.

Ademais, o mesmo (José Duarte Pinheiro) era abastado o suficiente para ser considerado um eleitor do Império e membro do Partido Liberal segundo o redator do Jornal “O Araripe” em 1856 (O ARARIPE, 1856, p.1).

Nesse sentido, como eleitor, José Duarte participou ativamente da eleição de 1856 no Crato, que, considerada fraudulenta, resultou na morte de outro liberal, José Gonçalves Landim, pelas forças policiais (PINHEIRO, 2010, p. 152). Era, nesse sentido, um cidadão bem quisto socialmente, pois, segundo consta no Jornal O Araripe, a sua palavra valia mais do que toda a Mesa Eleitoral do pleito em questão (O ARARIPE, 1856, p.2):

“Quando recusava os votantes legitimos, não reformava nunca a sua dicisão, por mais valiosos que fossem os testimunhos, invocados. Em summa para dar uma idea da immoralidade com que esses homens procediam, basta lembrar, que cidadãos respeitaveis como o Coronel Bezerra, Tenente Coronel Antonio Luis, José Duartes Pinheiro, cuja palavra vale mais do que a toda a de Mesa, não eram acreditados diante d'ella, ao passo que o mais miseravel franca tripa ou bigorrilha de seu seio era tido como um Epaminondas”.

De todo o modo, este cidadão, bem reconhecido socialmente e acima qualificado, recebe, em 17 de março de 1857, um tiro de bacamarte no peito direito disparado por um de seus empregados (João Dias de Oliveira, mais conhecido por “João Bico”) e morre pouco tempo depois. O crime em questão estarrece a cidade do Crato, segundo constam nos jornais da época. O crime parece tão incomum que vira notícia até mesmo na Capital do Império (Rio de Janeiro) (JORNAL DO COMÉRCIO, 1857, p.1).

As hipóteses da motivação para o homicídio foram diversas. Segundo constam nas notícias da época, havia, ao menos, duas hipóteses para o crime: a primeira era de que a questão residia numa vingança de João Dias de Oliveira, em razão de uma reprimenda feita por José Duarte Pinheiro a ele (João Dias), ou seja, uma questão de “honra familiar” (JORNAL DO COMÉRCIO, 1857, p.1) (O ARARIPE, 1857a, p.2); enquanto que a segunda, por sua vez, era de que o crime fora perpetrado em razão de diferenças políticas entre ambos (JORNAL DO COMÉRCIO, 1857, p.1).

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos

Das duas hipóteses para o assassinato, a segunda (diferenças políticas entre a vítima e o algoz) parece ser a mais infundada. Não bastando ser essa a versão das “Folhas Liberais” (afinal, José Duarte Pinheiro era um liberal) (JORNAL DO COMÉRCIO, 1857, p.1), ela entra em contradição com o fato da diferença latente de posição social entre os dois indivíduos: dificilmente o homicida (João Dias de Oliveira) seria um eleitor (já que o voto no Império era censitário5). Ademais, ele era dependente de José Duarte Pinheiro, pois morava numa de suas propriedades.

A outra hipótese parece mais crível, já que outro jornal, O Jornal do Comércio do Rio de Janeiro (JORNAL DO COMÉRCIO, 1857, p.1), corrobora a hipótese do Araripe de que a questão se originou num fator de honra familiar (a vítima repreendeu o réu que, por sua vez, ficou insatisfeito). Além disso, segundo consta no jornal “O Araripe”, durante o julgamento do réu (João Dias de Oliveira) foi levantada uma suposta falta (erro) cometida pela vítima, José Duarte, durante sua vida, o que faz supor que o assassinato realmente tenha envolvido questões de honra familiar (O ARARIPE, 1857b, p. 1).

De todo o modo, à luz do fenômeno sociológico da luta de classes, esse crime parece ser relevante para o estudo dessa dinâmica no sertão cearense. Tendo em vista o que foi retratado na seção anterior, o Cariri se formou socialmente sob o estigma da violência. Numa região em que os meios de produção (a terra, os instrumentos de trabalho) eram monopolizados por poucos, aos despossuídos (pobres livres) só restava uma coisa: a honra.

A psicologia social do povo sertanejo prezava, portanto, pelo respeito à honra e muitos crimes, nesse sentido, eram cometidos em sua “defesa” (BARROSO, 2015). Assim, a luta de classes, enquanto entendida por uma disputa de grupos movidos por interesses antagônicos, deve levar em conta que esses interesses antagônicos nem sempre são de natureza material (econômica), mas também de natureza espiritual (psicológica).

Nesse sentido, o assassinato de José Duarte Pinheiro por João Dias de Oliveira se inseria no contexto da defesa da honra (interesse de classe subalterna). Mesmo sendo mais pobre, o algoz de José Duarte, desafiou a ordem vigente em defesa de seus interesses de classe (preservação da honra) criando uma situação de violência raríssima para uma terra já encharcada de muito sangue.


4. O JULGAMENTO DO HOMICIDA E A INDEPENDÊNCIA DA MAGISTRATURA IMPERIAL

Após a perpetração do crime, o assassino, João Dias de Oliveira, foi capturado pelas forças policiais e julgado pelo Tribunal do Júri do Crato (O ARARIPE, 1857b, p.1).

O réu foi inicialmente condenado a 20 anos de prisão, mas o juiz reformou a sentença para 12 anos de prisão. A família do morto, insatisfeita, recorreu da decisão, não sendo dados, posteriormente, maiores detalhes do desenrolar desse novo julgamento pelo Jornal “O Araripe” (O ARARIPE, 1857b, p. 1).

Quanto ao primeiro julgamento, um detalhe relevante, e que é mote de análise desta seção, é levantado pelo redator do Jornal O Araripe: o Juiz da questão teria reformado a sentença por ter sido José Duarte Pinheiro um membro do Partido Liberal (partido de oposição no Crato) (O ARARIPE, 1857b, p. 1).

Juridicamente a questão é relevante para se observar os mecanismos de manipulação do poder judiciário imperial pelas forças políticas locais. Afinal, como descrito anteriormente, as eleições do ano anterior ao do assassinato (eleições de 1856) tinham sido turbulentas (“mortos” e não-eleitores “votando”, intimidação policial de opositores) (O ARARIPE, 1856, p.2). Os Conservadores haviam, portanto, saído vitoriosos, mesmo sendo alegadas todas essas fraudes por parte dos opositores (os liberais).

Assim, conforme será visto, é possível justificar esta alegação do jornal “O Araripe” para a parcialidade do julgamento de João Dias de Oliveira a partir da organização judiciária do Império, em especial da magistratura.

Como não havia concurso público àquele tempo, segundo o Código Criminal de 1832, os Juízes de Direito eram nomeados pelo Imperador (BRASIL, 1832):

“Art. 44. Os Juizes de Direito serão nomeados pelo Imperador d'entre os Bachareis formados em Direito, maiores de vinte e dous annos, bem conceituados, e que tenham, pelo menos, um anno de pratica no fôro, podendo ser provada por certidão dos Presidentes das Relações, ou Juizes de Direito, perante quem tenham servido; tendo preferencia os que tiverem servido de Juizes Municipaes, e Promotores”.

Essas nomeações ocorriam em conchavo com os grupos dominantes, o que facilitava a ingerência dos grupos políticos nos julgamentos em questão. Conforme ressalta Leal (2012, p. 158) era, em geral, corrupta a máquina do judiciário no Império:

“Verifica-se deste breve resumo que a organização policial, no Império, foi deplorável e esteve sempre dominada pelo espírito partidário. A organização judiciária, por outro lado, conquanto assinalasse sensível progresso em relação à situação anterior, deixava muito a desejar: a corrupção da magistratura, por suas vinculações políticas, era fato notório, acremente condenado por muitos contemporâneos. Como o problema não é de ordem puramente legal, ainda hoje é encontradiça a figura do juiz politiqueiro, solícito com o poder, ambicioso de honrarias ou vantagens, embora muito mais extensas as garantias que desfruta. E é justamente no interior que mais se fazem sentir os efeitos da polícia e da justiça partidárias”.

No caso do assassinato de José Duarte Pinheiro, a influência do partidarismo se agravava em razão de o Juiz do crime, o Juiz Conceição Cunha, ser um Juiz Interino (O ARARIPE, 1857b, p. 1). Isso porque, segundo preconizava a Constituição do Império de 1824, apenas os Juízes de Direito possuíam garantias constitucionais como a inamovibilidade e vitaliciedade (BRASIL, 1824): “art. 153. Os Juizes de Direito serão perpetuos, o que todavia se não entende, que não possam ser mudados de uns para outros Logares pelo tempo, e maneira, que a Lei determinar”.

Não possuindo essas garantias, os juízes interinos, em prol de se manterem nas comarcas, ficavam à mercê dos mandões do lugar, tendo pouca independência.

Desse modo, explica-se, plausivelmente, com base no partidarismo da época e no mandonismo vigente nos sertões, que o juiz do crime em questão tenha reduzido a pena do então réu João Dias de Oliveira de 20 anos para 12 anos de prisão. De fato, os Juízes do Império possuíam a prerrogativa de reformar a sentença quando não se “conformassem” com a pena aplicada pelo Júri (BRASIL, 1832):

“Art. 301. Das sentenças proferidas pelo Jury não haverá outro recurso senão o de appellação, para a Relação do Districto, quando não tiverem sido guardadas as formulas substanciaes do processo, ou quando o Juiz de Direito se não conformar com a decisão dos Juizes de Facto, ou não impuzer a pena declarada na Lei”.

No caso em questão, o Juiz Conceição Cunha não se conformou com a pena comutada pelo Júri do mínimo do art. 192. (homicídio com agravantes) do Código Criminal do Império de 1830 (20 anos de prisão), comutando a pena para o médio (12 anos de prisão) do art. 193. (homicídio sem agravantes), quando não há circunstâncias agravantes para o homicídio (BRASIL, 1830):

“Art. 192. Matar alguém com qualquer das circumstancias aggravantes mencionadas no artigo dezaseis, numeros dous, sete, dez, onze, doze, treze, quatorze, e dezasete. Penas - de morte no gráo maximo; galés perpetuas no médio; e de prisão com trabalho por vinte annos no minimo.

Art. 193. Se o homicidio não tiver sido revestido das referidas circumstancias aggravantes. Penas - de galés perpetuas no grão maximo; de prisão com trabalho por doze annos no médio; e por seis no minimo.”

Tal decisão do Juiz parece controversa, tendo em vista o que veicularam os jornais da época: José Duarte Pinheiro fora vítima de um tiro de emboscada6 (circunstância essa agravante segundo o art. 16. número 12 do Código Criminal de 1830) (BRASIL, 1830):

“Art. 16. São circumstancias agravantes: ´

[...]

12. Ter precedido ao crime a emboscada, por ter o delinquente esperado o offendido em um, ou diversos lugares”.

Assim, não surpreende a plausibilidade da hipótese levantada pelo Jornal “O Araripe” acerca da parcialidade do julgamento do crime praticado contra José Duarte Pinheiro. Por ser a vítima um liberal, as forças conservadoras possivelmente favoreceram a diminuição da pena do homicida (João Dias de Oliveira), mesmo ela afrontando diretamente a legalidade da época (arts. 16. e 192 do Código Criminal de 1830).

Assuntos relacionados
Sobre o autor
Guilherme Magalhães Siqueira Menezes

Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Ceará

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MENEZES, Guilherme Magalhães Siqueira. Luta de classes no Cariri oitocentista e a “independência” da magistratura imperial.: O homicídio de um abastado proprietário por seu empregado (Crato, 1857). Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 30, n. 8031, 27 jun. 2025. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/114632. Acesso em: 9 jul. 2025.

Leia seus artigos favoritos sem distrações, em qualquer lugar e como quiser

Assine o JusPlus e tenha recursos exclusivos

  • Baixe arquivos PDF: imprima ou leia depois
  • Navegue sem anúncios: concentre-se mais
  • Esteja na frente: descubra novas ferramentas
Economize 17%
Logo JusPlus
JusPlus
de R$
29,50
por

R$ 2,95

No primeiro mês

Cobrança mensal, cancele quando quiser
Assinar
Já é assinante? Faça login
Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Colabore
Publique seus artigos
Fique sempre informado! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos