Capa da publicação Celular achado em cena de crime: STF valida acesso
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Celular abandonado no local do crime não goza de privacidade.

Acesso policial sem mandado judicial

28/06/2025 às 08:39
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Dados de celular encontrado fortuitamente em cena de crime podem ser acessados sem ordem judicial. Decisão do STF analisa os limites do sigilo e do devido processo penal.

Resumo: O presente artigo analisa o regime probatório no ordenamento jurídico penal brasileiro, com enfoque na distinção entre provas nominadas e inominadas, conforme previsão no Código de Processo Penal e na Lei nº 12.850/2013. A reflexão é expandida para tratar da recente decisão do STF no Recurso Extraordinário com Agravo (ARE 1042075), que reconheceu a validade das provas obtidas em celular encontrado na cena do crime, sem autorização judicial prévia, quando caracterizado o encontro fortuito. A pesquisa busca avaliar os impactos da decisão na proteção dos direitos fundamentais e na eficácia da investigação criminal, oferecendo uma análise crítica à luz do devido processo legal e dos limites constitucionais da atividade investigativa.

Palavras-chave: Provas nominadas; provas inominadas; processo penal; direito constitucional; STF; celular; encontro fortuito; CPP; Lei 12.850/2013.


INTRODUÇÃO

A apuração criminal é uma jornada da verdade dentro das fronteiras do Estado Democrático de Direito. Cometido o delito, inicia-se o imperativo constitucional da persecução penal, conduzido sob o manto do devido processo legal, como preceitua o artigo 5º, inciso LIV, da Constituição Federal. Tal missão cabe à autoridade policial e ao Ministério Público, que, respeitando o contraditório, devem agir com firmeza e legalidade para desvendar a autoria e a materialidade do crime.

Neste cenário, o delegado de polícia é o protagonista da investigação preliminar, exercendo seu mister com base em provas juridicamente válidas e moralmente legítimas. Contudo, a produção da prova não é um território de arbítrio, mas sim de legalidade estrita, limitada por garantias fundamentais, como a inadmissibilidade de provas obtidas por meios ilícitos (art. 5º, LVI, CF), a inviolabilidade da intimidade, da vida privada, das comunicações (art. 5º, X e XII), e a proteção da dignidade humana.

As provas, nesse sentido, representam mais do que instrumentos; são os pilares que sustentam o equilíbrio entre repressão penal e liberdade. Dentre os meios previstos, o sistema processual penal brasileiro distingue provas nominadas — aquelas previstas expressamente em lei — e inominadas — aquelas admitidas por analogia, costume ou inovação jurisprudencial.

Diante desse arcabouço, este artigo abordará os dispositivos legais que regulam a produção probatória (arts. 155 a 250 do CPP), bem como as inovações trazidas pela Lei nº 12.850/2013, em especial no combate ao crime organizado. Ao final, o estudo se debruça sobre a repercussão do julgamento do STF no ARE 1042075, que introduz novos contornos à admissibilidade de provas obtidas em celulares deixados na cena do crime, suscitando debates sobre segurança jurídica, limites éticos e o avanço tecnológico no âmbito penal.


DAS PROVAS NOMINADAS NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO

As provas nominadas são aquelas expressamente previstas na legislação processual penal. O Código de Processo Penal, no Título VII (arts. 155 a 250), delimita os meios lícitos que podem ser utilizados para a apuração dos fatos. Dentre elas destacam-se:

I - Prova testemunhal (arts. 202 a 225);

II - Prova documental (arts. 231 a 238);

III - Interrogatório do acusado (arts. 185 a 196);

IV - Reconhecimento de pessoas e coisas (arts. 226 a 228);

V - Prova pericial (arts. 158 a 184);

VI - Exame de corpo de delito;

VII - Acareação;

VIII - Buscas e apreensões devidamente autorizadas;

IX - Carta precatória;

X - Prova indireta ou circunstancial, desde que não baseada exclusivamente nela.

Além dessas, na fase investigativa, o art. 6º do CPP impõe ao delegado de polícia o dever de agir prontamente para coletar todos os elementos de prova que possam esclarecer o fato e suas circunstâncias. Este artigo estabelece obrigações de natureza pericial, documental, testemunhal e pessoal, conferindo à autoridade policial um papel ativo na consolidação do conjunto probatório inicial.


DAS PROVAS INOMINADAS NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO

As provas inominadas, por sua vez, são aquelas não previstas diretamente na legislação, mas admitidas desde que não contrariem os princípios constitucionais e os direitos fundamentais. Estas provas têm sido utilizadas especialmente no enfrentamento ao crime organizado e em operações complexas.

A Lei nº 12.850/2013, que trata das organizações criminosas, autorizou o uso de meios de obtenção de prova não previstas no rol do CPP, como:

I - Ação controlada;

II - Infiltração de agentes (inclusive virtuais);

III - Captação ambiental de sinais eletromagnéticos;

IV - Cooperação internacional;

V - Monitoramento eletrônico;

VI - Interceptações de comunicações via autorização judicial, inclusive dados telemáticos;

VII - Colaboração premiada.


PROVAS OBTIDAS NO CELULAR ENCONTRADO NO LOCAL DO CRIME

A decisão proferida pelo STF em 25 de junho de 2025 no ARE 1042075 representou um marco no entendimento sobre o acesso a dados de aparelhos celulares. O tribunal validou o uso de provas obtidas em dispositivo deixado no local do crime, sem autorização judicial, desde que se trate de situação de “encontro fortuito”.

Conforme a tese fixada, em ocorrências fortuitas como o esquecimento do aparelho, a autoridade policial pode acessar os dados estritamente necessários à elucidação da autoria ou da propriedade do bem. Entretanto, este acesso deve ser justificado posteriormente, e o uso das provas deverá observar os princípios constitucionais, em especial os direitos à intimidade e à privacidade.

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A decisão tem repercussão geral (Tema 977), e servirá como paradigma para os tribunais de todo o país. Contudo, suscita uma delicada tensão entre eficiência investigativa e proteção dos direitos individuais. Há receios de que a exceção se torne regra, comprometendo o controle judicial das investigações e incentivando práticas arbitrárias.


ANÁLISE CRÍTICA

A evolução da tecnologia impõe ao Direito Penal novos desafios. O celular, como extensão da intimidade, armazena dados que revelam hábitos, contatos, localização e até sentimentos. O acesso a tais informações deve ser excepcional, proporcional e justificado.

A decisão do STF busca equilibrar a realidade das investigações com a rigidez dos princípios constitucionais. Ainda assim, a margem para abusos é sensível, e a relativização da inviolabilidade pode abrir precedentes perigosos. O art. 5º, XII, da CF é claro ao exigir ordem judicial para a quebra de sigilo de dados, salvo exceções legalmente previstas.

Além disso, o entendimento do Supremo desloca o centro da legalidade para o campo da justificação posterior, o que pode ser incompatível com a estrutura garantista do processo penal acusatório. O ideal seria exigir fundamentação prévia, exceto quando comprovado risco imediato de destruição de provas ou perigo concreto à investigação.

TESE DE JULGAMENTO: ARE 1.042.075 (TEMA 977)

“1. A mera apreensão do aparelho celular, nos termos do art. 6º do CPP ou em flagrante delito, não está sujeita à reserva de jurisdição. Contudo, o acesso aos dados nele contidos deve observar as seguintes condicionantes:

1.1 Nas hipóteses de encontro fortuito de aparelho celular, o acesso aos respectivos dados para o fim exclusivo de esclarecer a autoria do fato supostamente criminoso, ou de quem seja o seu proprietário, não depende de consentimento ou de prévia decisão judicial, desde que justificada posteriormente a adoção da medida.

1.2. Em se tratando de aparelho celular apreendido na forma do art. 6º do CPP ou por ocasião da prisão em flagrante, o acesso aos respectivos dados será condicionado ao consentimento expresso e livre do titular dos dados ou de prévia decisão judicial (cf. art. 7º, inciso III, e art. 10, § 2º, da Lei nº 12.965/2014) que justifique, com base em elementos concretos, a proporcionalidade da medida e delimite sua abrangência à luz de direitos fundamentais à intimidade, à privacidade, à proteção dos dados pessoais e à autodeterminação informacional, inclusive nos meios digitais (art. 5º, X e LXXIX, CRFB/88). Nesses casos, a celeridade se impõe, devendo a Autoridade Policial atuar com a maior rapidez e eficiência possíveis e o Poder Judiciário conferir tramitação e apreciação prioritárias aos pedidos dessa natureza, inclusive em regime de plantão.

2. A autoridade policial poderá adotar as providências necessárias para a preservação dos dados e metadados contidos no aparelho celular apreendido, antes da autorização judicial, justificando, posteriormente, as razões de referido acesso.

3. As teses acima enunciadas só produzirão efeitos prospectivos, ressalvados os pedidos eventualmente formulados por defesas até a data do encerramento do presente julgamento".

CONCLUSÃO: Por unanimidade, o Plenário do STF considerou válida a prova que embasou a condenação do recorrido, reafirmando o entendimento de que a polícia pode, independentemente de autorização judicial, examinar os registros das últimas chamadas e a agenda de contatos telefônicos contidos em aparelho celular abandonado no local do crime. Os dados obtidos nessas circunstâncias só podem ser utilizados na apuração do crime ao qual a perda do celular está vinculada. A polícia, no entanto, pode preservar o conteúdo integral do aparelho, mas deve apresentar à Justiça argumentos que justifiquem seu acesso. Já quando o celular é apreendido com o suspeito presente — como em prisões em flagrante —, os dados só podem ser acessados com consentimento expresso do dono ou com autorização judicial.

(ARE 1.042.075 (Tema 977)

O processo penal moderno não pode abdicar da verdade, mas tampouco pode sacrificar a liberdade. A prova é a ponte entre o fato e a responsabilidade, e, por isso, sua obtenção deve ser rigorosamente controlada.

A decisão do STF no ARE 1042075 inaugura uma era de flexibilização pragmática, onde a efetividade da investigação ganha relevo, mas deve ser vigiada com rigor técnico e jurídico. O Estado de Direito não pode aceitar atalhos; a persecução penal não pode se converter em licença para o arbítrio.

As provas nominadas e inominadas têm sua razão de existir, mas todas devem respeitar o fio de ouro da Constituição: a dignidade da pessoa humana. O celular é uma realidade da alma da vida moderna. Abrir esse casulo de dados privados, sem autorização judicial, é tocar na essência do indivíduo. O combate ao crime exige força, mas essa força só será legítima se estiver algemada à legalidade.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.

BRASIL. Código de Processo Penal. Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941.

BRASIL. Lei nº 12.850, de 2 de agosto de 2013. Define organização criminosa e dispõe sobre a investigação criminal.

CNN Brasil. STF valida uso de provas obtidas em celular deixado em cena de crime. 25/06/2025.

GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal. 24ª ed. Niterói: Impetus, 2024.

MORAIS, Alexandre de. Direito Constitucional. 36ª ed. São Paulo: Atlas, 2023.

NUCCI, Guilherme de Souza. Código de Processo Penal Comentado. 20ª ed. Rio de SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Recurso Extraordinário com Agravo (ARE) 1042075. Tema 977 da Repercussão Geral.


Texto ajustado com apoio técnico da IA ChatGPT. Acesso em 27 de junho de 2025.

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Sobre o autor
Jeferson Botelho Pereira

Jeferson Botelho Pereira. Ex-Secretário Adjunto de Justiça e Segurança Pública de MG, de 03/02/2021 a 23/11/2022. É Delegado Geral de Polícia Civil em Minas Gerais, aposentado. Ex-Superintendente de Investigações e Polícia Judiciária de Minas Gerais, no período de 19 de setembro de 2011 a 10 de fevereiro de 2015. Ex-Chefe do 2º Departamento de Polícia Civil de Minas Gerais, Ex-Delegado Regional de Governador Valadares, Ex-Delegado da Divisão de Tóxicos e Entorpecentes e Repressão a Homicídios em Teófilo Otoni/MG, Graduado em Direito pela Fundação Educacional Nordeste Mineiro - FENORD - Teófilo Otoni/MG, em 1991995. Professor de Direito Penal, Processo Penal, Teoria Geral do Processo, Instituições de Direito Público e Privado, Legislação Especial, Direito Penal Avançado, Professor da Academia de Polícia Civil de Minas Gerais, Professor do Curso de Pós-Graduação de Direito Penal e Processo Penal da Faculdade Estácio de Sá, Pós-Graduado em Direito Penal e Processo Penal pela FADIVALE em Governador Valadares/MG, Prof. do Curso de Pós-Graduação em Ciências Criminais e Segurança Pública, Faculdades Unificadas Doctum, Campus Teófilo Otoni, Professor do curso de Pós-Graduação da FADIVALE/MG, Professor da Universidade Presidente Antônio Carlos - UNIPAC-Teófilo Otoni. Especialização em Combate à corrupção, crime organizado e Antiterrorismo pela Vniversidad DSalamanca, Espanha, 40ª curso de Especialização em Direito. Mestrando em Ciências das Religiões pela Faculdade Unida de Vitória/ES. Participação no 1º Estado Social, neoliberalismo e desenvolvimento social e econômico, Vniversidad DSalamanca, 19/01/2017, Espanha, 2017. Participação no 2º Taller Desenvolvimento social numa sociedade de Risco e as novas Ameaças aos Direitos Fundamentais, 24/01/2017, Vniversidad DSalamanca, Espanha, 2017. Participação no 3º Taller A solução de conflitos no âmbito do Direito Privado, 26/01/2017, Vniversidad DSalamanca, Espanha, 2017. Jornada Internacional Comjib-VSAL EL espaço jurídico ibero-americano: Oportunidades e Desafios Compartidos. Participação no Seminário A relação entre União Europeia e América Latina, em 23 de janeiro de 2017. Apresentação em Taller Avanco Social numa Sociedade de Risco e a proteção dos direitos fundamentais, celebrado em 24 de janeiro de 2017. Doutorando em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidad Del Museo Social Argentino, Buenos Aires – Argentina, autor do Livro Tráfico e Uso Ilícitos de Drogas: Atividade sindical complexa e ameaça transnacional, Editora JHMIZUNO, Participação no Livro: Lei nº 12.403/2011 na Prática - Alterações da Novel legislação e os Delegados de Polícia, Participação no Livro Comentários ao Projeto do Novo Código Penal PLS nº 236/2012, Editora Impetus, Participação no Livro Atividade Policial, 6ª Edição, Autor Rogério Greco, Coautor do Livro Manual de Processo Penal, 2015, 1ª Edição Editora D´Plácido, Autor do Livro Elementos do Direito Penal, 1ª edição, Editora D´Plácido, Belo Horizonte, 2016. Coautor do Livro RELEITURA DE CASOS CÉLEBRES. Julgamento complexo no Brasil. Editora Conhecimento - Belo Horizonte. Ano 2020. Autor do Livro VIOLÊNCIA DOMÉSTICA. 2022. Editora Mizuno, São Paulo. articulista em Revistas Jurídicas, Professor em Cursos preparatórios para Concurso Público, palestrante em Seminários e Congressos. É advogado criminalista em Minas Gerais. OAB/MG. Condecorações: Medalha da Inconfidência Mineira em Ouro Preto em 2013, Conferida pelo Governo do Estado, Medalha de Mérito Legislativo da Assembléia Legislativa de Minas Gerais, 2013, Medalha Santos Drumont, Conferida pelo Governo do Estado de Minas Gerais, em 2013, Medalha Circuito das Águas, em 2014, Conferida Conselho da Medalha de São Lourenço/MG. Medalha Garimpeiro do ano de 2013, em Teófilo Otoni, Medalha Sesquicentenária em Teófilo Otoni. Medalha Imperador Dom Pedro II, do Corpo de Bombeiros, 29/08/2014, Medalha Gilberto Porto, Grau Ouro, pela Academia de Polícia Civil em Belo Horizonte - 2015, Medalha do Mérito Estudantil da UETO - União Estudantil de Teófilo Otoni, junho/2016, Título de Cidadão Honorário de Governador Valadares/MG, em 2012, Contagem/MG em 2013 e Belo Horizonte/MG, em 2013.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PEREIRA, Jeferson Botelho. Celular abandonado no local do crime não goza de privacidade.: Acesso policial sem mandado judicial. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 30, n. 8032, 28 jun. 2025. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/114661. Acesso em: 9 jul. 2025.

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