A Tarifa Zero, a Modicidade Tarifária e o Subsídio Direto: Requisitos à Luz do Marco Legal da Mobilidade e da Nova Lei de Licitações
Luiz Carlos Nacif Lagrotta, Procurador-Geral do Município de Taboão da Serra, Professor Universitário. Especialista em Direito Empresarial (Mackenzie) e em Compliance (FGV-SP)
Maria Catarina Delfino Lagrotta, Bacharelanda do Curso de Direito da PUC-SP
Resumo
Este artigo examina, sob a perspectiva jurídico-administrativa, a possibilidade de implementação de subsídio tarifário direto no serviço público de transporte coletivo urbano, à luz da Lei nº 12.587/2012 (Política Nacional de Mobilidade Urbana), da Lei nº 8.987/1995 (Lei Geral de Concessões) e da nova Lei de Licitações (Lei nº 14.133/2021). Com substrato em parecer técnico elaborado para caso concreto, mas sem detalhar a localidade, apresenta-se análise de precedentes doutrinários, fundamentos constitucionais e aspectos práticos da recomposição do equilíbrio econômico-financeiro, incluindo a tarifa zero como tendência de política pública.
Palavras-chave: transporte coletivo urbano; subsídio tarifário; modicidade; equilíbrio econômico-financeiro; tarifa zero.
Abstract
This article examines the legal foundations for the use of direct fare subsidies and zero-fare policies in the provision of urban public transport services, in light of the Federal Constitution, the Urban Mobility Legal Framework (Law No. 12,587/2012), the General Concessions Law (Law No. 8,987/1995), and the New Bidding Law (Law No. 14,133/2021). It argues that such mechanisms are compatible with the principles of affordable tariffs, economic-financial balance of contracts, cost-effectiveness, and service universality, with no quantitative limitation preventing contractual rebalancing through term extension or direct subsidy, provided that budgetary order and transparent justification are respected.
Keywords: Public transportation. Fare subsidy. Zero fare. Economic-financial balance. New Bidding Law.
Sumário: 1. Introdução. 2. Princípios Constitucionais: Modicidade e Equilíbrio Econômico-Financeiro. 3. O Subsídio Direto como Instrumento de Política Tarifária e a Experiência Contemporânea da Tarifa Zero. 4. Limites à Alteração Contratual: A (In)existência de Trava Percentual. 5. Considerações Finais. 6. Referências
1. Introdução
A prestação do serviço público de transporte coletivo urbano encontra-se no centro do debate sobre o direito à mobilidade, a modicidade tarifária e a universalidade de acesso. Em meio a crises de financiamento, a utilização do subsídio tarifário direto revela-se instrumento legítimo para assegurar a fruição desse direito fundamental, resguardando-se, em contrapartida, o equilíbrio econômico-financeiro dos contratos de concessão.
A recente expansão de experiências de tarifa zero, noticiada em veículos como a Revista Piauí (“Como avança a tarifa zero no transporte”), reflete o amadurecimento de políticas públicas voltadas à inclusão social e ao fomento da mobilidade sustentável. Este trabalho propõe-se a examinar a juridicidade dessa prática, cotejando doutrina, jurisprudência e o novo regime normativo de licitações e concessões.
A Lei nº 12.587/2012 consolidou, em âmbito federal, diretrizes para a mobilidade urbana sustentável. O art. 9º, §1º, distingue com precisão a tarifa pública, paga diretamente pelo usuário, da tarifa de remuneração, que compreende o valor pago pelo usuário somado às demais fontes de custeio, inclusive subsídios. Assim, estabelece-se uma estrutura que garante a cobertura dos custos do serviço e a justa remuneração do concessionário:
“§ 1º A tarifa de remuneração compreende a soma da tarifa pública paga pelo usuário e de outras fontes de custeio, inclusive subsídios.” (Lei nº 12.587/2012)
Essa distinção, ainda que não sempre percebida pelo leigo, é central para viabilizar políticas de gratuidade ou redução tarifária sem comprometer a continuidade e a qualidade do serviço público.
2. Princípios Constitucionais: Modicidade e Equilíbrio Econômico-Financeiro
O substrato constitucional que autoriza o subsídio tarifário decorre de uma leitura sistemática do art. 6º, que elenca o transporte como direito social, e do art. 175, que impõe ao Estado o dever de garantir a prestação de serviços públicos de forma adequada. Já o art. 37, XXI preconiza que a manutenção do equilíbrio econômico-financeiro é cláusula basilar do regime contratual da Administração Pública.
No plano infraconstitucional, a Lei nº 8.987/1995, que disciplina o regime das concessões, em seu art. 6º, estatui que o serviço público adequado deve observar, entre outros requisitos, a modicidade tarifária. Nas palavras do legislador:
“Art. 6º. Toda concessão ou permissão pressupõe a prestação de serviço adequado ao pleno atendimento dos usuários, conforme estabelecido nesta Lei, nas normas pertinentes e no respectivo contrato.”
“§ 1º. Serviço adequado é o que satisfaz as condições de regularidade, continuidade, eficiência, segurança, atualidade, generalidade, cortesia na sua prestação e modicidade das tarifas.”
Cumpre ressaltar que a Lei nº 12.587/2012, marco legal da mobilidade urbana, consolidou o entendimento de que a tarifa pública — aquela desembolsada diretamente pelo usuário — não se confunde com a tarifa de remuneração do serviço, a qual pode englobar receitas alternativas, subsídios orçamentários diretos, compensações financeiras e receitas extratarifárias. O art. 9º, em sua literalidade, não deixa dúvidas:
“§ 1º Para fins desta Lei, tarifa de remuneração é o valor que visa cobrir os custos de operação do serviço de transporte coletivo e a justa remuneração do prestador, sendo composta pela tarifa pública paga pelo usuário somada a outras fontes de custeio.”
Assim, a distinção encontra respaldo expresso na legislação federal, refletindo a diretriz de política pública segundo a qual a solidariedade social justifica a repartição do ônus do transporte entre o usuário direto e a coletividade, notadamente para garantir a universalidade do acesso — ubi societas, ibi jus.
3. O Subsídio Direto como Instrumento de Política Tarifária e a Experiência Contemporânea da Tarifa Zero
A doutrina majoritária é pacífica quanto à licitude do subsídio direto. Veja-se, por oportuno, a lição abalizada de Justen Filho (2003, p. 409), que bem assinala:
“O benefício tarifário pode caracterizar-se como uma redução do valor nominal da tarifa. Mas também se pode cogitar da ausência de reajuste compatível com a elevação dos custos ocorrida em certo período de tempo. Em tais hipóteses, deverá ser promovida a alteração das condições da concessão, para recompor a equação econômico-financeira original.”
Também o conspícuo mestre Bandeira de Mello (RBINF, ano 3, n. 6, p. 200), por sua vez, afasta qualquer ilegalidade no uso superveniente do subsídio tarifário:
“Não haveria cogitar de violência ao princípio da licitação, porque, como é óbvio, outorga de subsídio, suscitada para mantença do equilíbrio econômico-financeiro, é circunstância que jamais poderia significar estímulo para que acedessem ao certame eventuais licitantes que a ele não acudiram, assim como em nada poderia interferir com as propostas efetuadas pelos que o disputaram.”
De outra banda, é bem de ver que, tal como relatado na Revista Piauí (2024), mais de 100 cidades brasileiras avançaram em experimentos de gratuidade plena no transporte coletivo urbano, seja aos domingos, seja de forma integral. O subsídio é justificado como investimento em mobilidade, redução de externalidades ambientais e incentivo ao comércio local.
O substrato jurídico que legitima tais políticas repousa, em essência, na mesma arquitetura: a distinção entre tarifa pública e tarifa de remuneração e a assunção de custo pela coletividade, por meio de subsídio orçamentário regularmente instituído em lei orçamentária e fundo próprio.
4. Limites à Alteração Contratual: A (In)existência de Trava Percentual
A discussão sobre limites quantitativos encontra eco no novo regime licitatório, eis que a Lei nº 14.133/2021, em seu art. 125, não fixa “numerus clausus” para acréscimos ou supressões em contratos de concessão, reafirmando a supremacia do interesse público e a necessidade de vantajosidade.
A Nova Lei de Licitações (Lei 14.133/2021) não reproduziu expressamente o teto percentual rígido de 25%. O novo art. 125 dispõe apenas que as alterações quantitativas devem estar fundamentadas na demonstração de sua necessidade e vantajosidade, guardando coerência com a finalidade do contrato.
Para contratos ordinários de obras, serviços e compras não vinculados a regimes especiais (como concessões), o limite quantitativo ainda é aplicado como parâmetro de proporcionalidade, mas não se estende automaticamente aos contratos regidos por leis especiais, como a Lei nº 8.987/95 (Concessões) ou Lei nº 11.079/04 (PPP).
Essa noção já vinha sendo preconizada anteriormente pela doutrina administrativista, eis que sobreveio a noção da especialidade do regime de concessões e permissões, pelo que não há sentido em aplicar limites rígidos de 25% a contratos de concessão, pois estes não são contratos de objeto fechado — são contratos de execução continuada, vinculados a demandas variáveis, metas de desempenho e mutações do interesse público.
O preclaro Guimarães (2014, p. 298) é categórico ao explicar a diferença entre os contratos administrativos ordinários e as concessões de longo prazo:
“Seria excessivo e artificial pretender emprestar aos contratos concessionários os limites rígidos e matemáticos concebidos para reger a contratação ordinária.”
Do mesmo modo o judicioso Moreira (2010, p. 379) aduz:
“Nas concessões, a competência para alterações vai muito além da Lei 8.666/93. As normas da Lei de Licitações que circunscrevem as alterações não se aplicam ao regime concessionário.”
Desta sorte, revela-se evidente que o regime de concessões se rege por premissas próprias, notadamente:
O princípio do equilíbrio econômico-financeiro, consagrado no art. 37, XXI, da Constituição;
O princípio da continuidade e da adequação do serviço, nos termos do art. 6º da Lei nº 8.987/95;
E o princípio da modicidade tarifária, hoje densificado pela Política Nacional de Mobilidade Urbana (Lei nº 12.587/2012), a qual distingue, de forma inequívoca, tarifa pública (paga pelo usuário) e tarifa de remuneração (cobertura plena dos custos do serviço e justa remuneração do concessionário).
Assim, qualquer alteração contratual — inclusive superveniente implementação de subsídio tarifário ou ampliação de gratuidades — deve ter como finalidade maior a manutenção da viabilidade econômica da concessão, sendo juridicamente legítimo, quando necessário, instituir fontes extratarifárias ou estender o prazo de vigência do ajuste como forma de recompor a equação originária.
Em síntese, não subsiste, na Nova Lei de Licitações, restrição quantitativa automática aplicável às concessões de serviço público. Ao contrário, o equilíbrio econômico-financeiro, a supremacia do interesse público e a continuidade do serviço adequado demandam interpretação flexível, em consonância com o ordenamento constitucional e a doutrina majoritária.
Não obstante a legitimidade do subsídio, sua implementação exige estrita observância da legalidade orçamentária, da transparência fiscal (art. 48 da LRF) e da compatibilidade com as diretrizes orçamentárias (PPA, LDO, LOA), de modo a garantir previsibilidade e responsabilidade na gestão das contas públicas. Exige-se, ainda, instrução probatória robusta — mediante estudos técnicos que demonstrem a vantajosidade da medida, respaldados em metodologias reconhecidas, como o modelo GEIPOT.
6. Considerações Finais
Diante do exposto, evidencia-se que o subsídio tarifário, a política de tarifa zero e o reequilíbrio econômico-financeiro não colidem com a Constituição, tampouco com a nova Lei de Licitações.
São instrumentos legítimos para garantir a modicidade tarifária, a universalidade do serviço e a eficiência do gasto público, na exata medida em que viabilizam o transporte coletivo como serviço essencial à dignidade humana.
A configuração contemporânea do transporte coletivo urbano, sujeito a tensões econômicas e demandas sociais crescentes, impõe ao Poder Concedente o dever de adotar instrumentos que assegurem o equilíbrio entre universalidade, modicidade tarifária e justa remuneração do concessionário.
O subsídio tarifário direto se apresenta como mecanismo idôneo, previsto em lei e legitimado pela doutrina, para garantir a continuidade do serviço público essencial, sem onerar desproporcionalmente os usuários mais vulneráveis.
Por derradeiro, reafirma-se que a distinção entre tarifa pública e tarifa de remuneração, insculpida no marco legal da mobilidade urbana, legitima a repartição do ônus econômico entre sociedade e Estado — in claris cessat interpretatio.
Referências
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.
BRASIL. Lei nº 8.987/1995.
BRASIL. Lei nº 12.587/2012.
BRASIL. Lei nº 14.133/2021.
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Revista Brasileira de Infraestrutura – RBINF, Belo Horizonte.
GUIMARÃES, Fernando Vernalha. Concessão de Serviço Público. São Paulo: Saraiva, 2014.
JUSTEN FILHO, Marçal. Teoria Geral das Concessões de Serviços Públicos. São Paulo: Dialética, 2003.
MOREIRA, Egon Bockmann. Direito das Concessões de Serviço Público. São Paulo: Malheiros, 2010.
Revista Piauí. “Como avança a tarifa zero no transporte”. 2024.