Capa da publicação Provedores terão que agir contra crimes graves online
Capa: Sora
Artigo Destaque dos editores

A inconstitucionalidade do art. 19 do Marco Civil da Internet.

Breve análise do julgamento do STF

Exibindo página 2 de 3
07/07/2025 às 08:15

Resumo:


  • O Supremo Tribunal Federal concluiu que o artigo 19 do Marco Civil da Internet é parcialmente inconstitucional, estabelecendo um novo regime de responsabilidades para os provedores de serviços digitais.

  • Foram elaboradas teses com repercussão geral, baseadas na responsabilidade fundada na culpa, sem esquema de imputação de responsabilidade objetiva aos provedores.

  • O STF estabeleceu diferentes esquemas de responsabilização para diferentes tipos de conteúdos, como crimes de injúria, difamação e calúnia, crimes em geral e crimes graves, definindo obrigações adicionais para os controladores de plataformas e prestadores de serviços digitais.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

6. Provedores de serviços de e-mail, mensageria e videoconferência

No enunciado 6 da tese de repercussão geral, o STF resolver atribuir a imunidade prevista no art. 19. do MCI a provedores de serviços e aplicativos específicos: a) de transmissão de arquivos e mensagens ("eletronic mail"); b) aplicativo de mensagens instantâneas (serviços de mensageria); e c) aplicativos que permitem a realização de reuniões fechadas por vídeos ou voz19.

Os aplicativos e serviços de e-mail permitem o envio, recebimento e gerenciamento de mensagens eletrônicas. São ferramentas essenciais para a comunicação, tanto pessoal quanto profissional, oferecendo funcionalidades como organização de mensagens, anexos, listas de contatos e, em alguns casos, calendários e outras ferramentas de colaboração (por exemplo, o Gmail, o Outlook e o Yahoo!). Os sistemas e aplicativos de mensageria atuam como intermediários que facilitam a transferência instantânea de mensagens de texto entre dois ou mais usuários, facilitando comunicação imediata e fluida. Além do envio de texto, muitos sistemas oferecem recursos como compartilhamento de arquivos, chamadas de áudio e vídeo e integração com outras plataformas (por exemplo, o WhatsApp e o Telegram). Serviços e aplicativos para videoconferência são aqueles que permitem a realização de reuniões fechadas por vídeo ou voz. A maioria das ferramentas disponibilizadas no mercado oferece também recursos de gravação e transcrição de reuniões e permitem que os participantes compartilhem suas telas para apresentar documentos, slides ou outras informações (por exemplo, o Zoom, o Google Meet e o Microsoft Teams).

Desde muito, a doutrina e jurisprudência estrangeira já isentavam de responsabilidade os intermediários da comunicação eletrônica que se limitam a prestar serviços de transmissão de mensagens. Reconhece-se que o provedor desses serviços atua como um mero conduto para o tráfego da informação, em situação equivalente à da companhia telefônica. Na transmissão de mensagens eletrônicas o provedor comercial não exercita controle editorial e, portanto, não pode ser responsabilizado como se editor fosse de potenciais mensagens difamatórias ou conteúdos ilícitos. O provedor assume uma posição de passividade nessas situações, não podendo ser compelido a vistoriar o conteúdo de mensagens em cuja transmissão não tem participação nem possibilidade alguma de controle. O sistema eletrônico de comunicação serve apenas de conduto para o transporte da informação de uma caixa postal (eletrônica) para outra, funcionando como mero transportador das informações.

Os transportadores de informações, a exemplo das empresas telefônicas, jamais foram responsabilizados pelo conteúdo proveniente de terceiros que circula em suas linhas. Idealmente falando, é a pessoa do remetente que transmite a mensagem e é ela a responsável pelo conteúdo. As linhas de transmissão da empresa servem apenas de conduto para essa operação. Sem possibilidade de controle do conteúdo das mensagens circulantes em seu sistema, a responsabilidade do provedor somente pode surgir a partir do momento em que tome conhecimento do caráter danoso da informação (se não adota nenhuma iniciativa para fazer cessar a propagação do ilícito).

O STF entendeu de consagrar esse tipo de concepção jurídica no enunciado 6 da tese de repercussão geral, não só para os provedores de serviços de e-mail, mas também para os serviços e aplicativos de mensageria e videoconferência. É razoável estender o mesmo tratamento dado aos provedores de serviços de gerenciamento de e-mails aos prestadores de serviços de mensageria e videoconferência, por se encontrarem estes em posição análoga àqueles primeiros. Os provedores de serviços de mensageria e videoconferência, a exemplo do serviço de gerenciamento de e-mails, podem ser entendidos como meros transportadores da informação, sendo seus sistemas utilizados como simples conduto para a comunicação eletrônica entre os usuários. Não têm, em princípio, controle efetivo sobre o conteúdo das mensagens, vídeos e imagens que circulam em seus sistemas.

A única falha na tese jurídica erigida pelo STF, nesse ponto, foi conferir aos provedores desses serviços uma imunização completa, ao estabelecer para eles o regime do ainda sobrevivente art. 19. do MCI. Embora se conceba que os provedores desses serviços de comunicação eletrônica (serviços de e-mail, mensageria e videoconferência) não têm, em princípio, controle da informação que os usuários transmitem em seus sistemas, a responsabilidade dessa categoria de prestadores de serviços digitais pode surgir a partir do momento em que, alertados pelo interessado, tomam conhecimento do caráter danoso de uma tal informação e não adotam nenhuma iniciativa para fazer cessar a propagação do ilícito.


7. Marketplaces

Marketplace é uma plataforma on-line que reúne diversos vendedores (lojas ou indivíduos) em um único local, permitindo que os compradores encontrem e comparem produtos de diferentes fornecedores. É como um shopping center virtual, onde cada loja é um vendedor diferente. Não atuam na transmissão, arquivamento ou hospedagem da informação (conteúdos), mas como locais ou subespaços on-line para o comércio eletrônico de produtos (em sua maioria físicos).

Por isso, o STF estabeleceu um regime jurídico diferenciado para essa categoria de prestadores de serviços on-line. Como participam da cadeia de fornecimento de produtos, para eles ficou estabelecido que se submetem às normas do CDC20. Em regra, marketplaces não atuam como transportadores ou hospedeiros da informação, não são desenhados precipuamente para servir como ferramenta para envio de mensagens ou publicação de comentários pelos usuários. Mas fica a ressalva de que, se o controlador de marketplace fornece, em algum subespaço da plataforma, serviço para publicação de conteúdo informacional diretamente pelos usuários, aí nessa situação o esquema jurídico de responsabilidade civil aplicável será um daqueles outros que foram elaborados na tese de repercussão geral, a depender do conteúdo publicado.


8. Obrigações adicionais

Nos enunciados 8 a 11 são criadas obrigações adicionais para os controladores de plataformas e prestadores de serviços digitais. O STF traçou um conjunto de “obrigações gerais” que se aplicam a todo prestador de serviço na internet, notadamente no que se refere a deveres de “transparência” e mecanismos de “supervisão” da atividade dos provedores de serviços on-line. As obrigações não foram repartidas entre os diversos prestadores de serviços on-line, mas estabelecidas como obrigações gerais para qualquer provedor, independentemente do tamanho e da natureza dos serviços que preste. Como a complexidade da arquitetura da rede mundial de comunicação hoje permite o aparecimento de serviços digitais variados, seria de esperar que o STF estabelecesse obrigações específicas para certos conjuntos de prestadores de serviços on-line, mas, da leitura dos enunciados, fica claro não haver distinção em relação a qualquer espécie de provedor ou controlador de sistema informatizado (plataforma); as obrigações adicionais se aplicam a todos, indistintamente.

O sistema de “responsabilidade limitada” dos provedores de serviços on-line foi complementado com obrigações relacionadas essencialmente à atividade de moderação de conteúdo e funcionamento dos algoritmos de direcionamento da informação e publicidade. Como obrigações gerais adicionais, estão previstas para todos os prestadores de serviços digitais:

  • a) o dever de editarem normas de auto-regulação que disciplinem sistemas de notificações, devido processo e obrigação de apresentar relatórios de transparência relativos a notificações extrajudiciais, anúncios e impulsionamentos21;

  • b) a obrigação de disponibilizar a usuários e a não usuários canais específicos de atendimento, preferencialmente eletrônicos, acessíveis e amplamente divulgados nas plataformas de maneira permanente22;

  • c) a obrigação de constituir e manter sede e representante no país, cuja identificação e informações para contato deverão ser disponibilizadas e estar facilmente acessíveis nos respectivos sítios. O representante do provedor que atue no Brasil deve ser necessariamente pessoa jurídica, com poderes para:

    • (i) responder perante as esferas administrativa e judicial;

    • (ii) prestar às autoridades competentes informações relativas ao funcionamento do provedor, às regras e aos procedimentos utilizados para moderação de conteúdo e para gestão das reclamações pelos sistemas internos; aos relatórios de transparência, monitoramento e gestão dos riscos sistêmicos; às regras para o perfilamento de usuários (quando for o caso), à veiculação de publicidade e ao impulsionamento remunerado de conteúdos;

    • (iii) cumprir as determinações judiciais;

    • (iv) responder e cumprir sanções, multas e afetações financeiras em que o representado incorrer, especialmente por descumprimento de obrigações legais e judiciais23.


10. Conclusão

Para os prestadores de serviços na internet, por serem intermediários da comunicação eletrônica, se convencionou estabelecer um sistema de “responsabilidade limitada” em razão da concepção de que o provedor não tem "obrigação geral de vigilância" sobre as informações que os usuários do sistema transmitem ou armazenam, nem uma "obrigação geral de procurar ativamente fatos ou circunstâncias que indiquem ilicitudes". Simplesmente atua provendo a infra-estrutura técnica para transmissão ou hospedagem da informação, atividade que não acarreta uma coobrigação de controle de conteúdo, de zoneamento visando à exclusão de informação ou material ilícito. Prevaleceu um princípio geral de irresponsabilidade do provedor por material ilícito, depositado pelos usuários ou que de qualquer forma transita em seu sistema informático.

Essa concepção se formou e se consolidou há quase três décadas, quando a internet tinha arquitetura completamente diferente. Naquela época (na primeira metade dos anos 1990), quando o canal gráfico da internet (a web) começou a se popularizar e começaram a aparecer os serviços (aplicações) que permitiam a transmissão de mensagens e postagens pelos próprios usuários, havia uma preocupação de não sobrecarregar os provedores de serviços no nascente “cyberspace”. Apregoava-se que uma responsabilização mais pesada poderia causar um “chilling effect” nas embrionárias tecnologias da informação, em prejuízo da inovação. As empresas que iniciavam seus negócios por meios eletrônicos eram ainda poucas e pequenas. O ciberespaço era um ambiente para amadores, onde os sites mais visitados eram gerenciados por adolescentes. Havia ainda um forte discurso libertário, defendendo o “ciberespaço” como um mundo paralelo, onde os estados-nação não teriam como impor suas leis, que deveria ser um ambiente completamente livre da “tirania dos governos”.

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos

Com o crescimento do “comércio eletrônico”, essa realidade mudou completamente. O capitalismo floresceu nesses novos espaços, com as corporações empresariais se estabelecendo e impondo seus interesses. Mas o crescimento se deu de forma assimétrica, surgindo as grandes empresas de tecnologia, que dominam vastos nacos do ciberespaço e do comércio eletrônico. O discurso dos libertários e crentes em um mundo sem regras, sem as “amarras do poder estatal”, onde as pessoas poderiam desfrutar de um ambiente de completa liberdade, para se expressarem da maneira que quisessem, terminou favorecendo o surgimento dos monopólios digitais. Esse ambiente sem regras mais rígidas (para a responsabilização dos provedores) e o discurso libertário também contribuiu para o aumento da criminalidade na rede mundial de comunicação. Essa também foi a causa do surgimento do problema da desinformação (fake news), a disseminação de conteúdos e informações falsas em plataformas e aplicações na internet, ameaçando a regularidade de eleições e o próprio regime democrático.

Com essa nova configuração da rede e o domínio da economia digital por poucas e grandes corporações (as chamadas Big Techs), nos últimos anos se intensificou a discussão sobre a necessidade de impor maiores obrigações para os provedores de aplicações na internet, com a revisão e atualização do quadro regulatório. A maioria dos países havia adotado o “knowledge regime”, que estabelece a responsabilização do provedor apenas quando tenha conhecimento do conteúdo prejudicial ou ilícito e não tome providências. Aos poucos se formou um entendimento pela necessidade de adotar obrigações adicionais, imputando dever de vigilância quando se tratar de conteúdos visivelmente ilícitos e altamente nocivos para os direitos fundamentais das pessoas e para os valores e princípios democráticos. Nos EUA, acendeu-se o debate sobre a necessidade de flexibilizar a imunidade conferida aos provedores pela Section 230 da Lei de Decência nas Comunicações (Communications Decency Act)24. Na União Europeia se iniciaram as discussões para a reforma da Diretiva sobre comércio eletrônico (Diretiva 31/2000/CE)25, que terminou sendo substituída pelo DSA (Digital Services Act).

No Brasil, trilhamos caminho inverso. A jurisprudência do STJ já tinha assentado a obrigação do provedor de, uma vez notificado, realizar a remoção do conteúdo prejudicial ou ilícito em 24 horas, sob pena de responsabilização solidária com o responsável pela publicação. Já tínhamos construído, pela via jurisprudencial, um modelo do “regime do conhecimento” (knowledge regime) para responsabilizar os provedores de aplicações na Internet. Mas em abril de 2014 foi aprovada a Lei 12.965, que ficou conhecida como o “Marco Civil da Internet”.

Embora o Marco Civil da Internet (MCI) tenha trazido alguns avanços, criando regras para proteção de dados pessoais e erigindo princípios em defesa da privacidade, o seu art. 19. conferiu uma completa imunização aos provedores, isentando-os de qualquer responsabilidade por conteúdos danosos e ilícitos que transitam em seus sistemas. Livrou os prestadores de serviços na internet de qualquer obrigação de moderação de conteúdos e definiu que ficavam só obrigados a cumprir ordem judicial. Eliminou qualquer dever de moderação para os provedores, pois cumprir ordem judicial já é obrigação de qualquer pessoa, física ou jurídica. Com isso, se criou uma imunização completa para os provedores, que ficaram sem responsabilidade editorial (ainda que postergada) e desobrigados de adotar qualquer iniciativa de combate a conteúdos ilícitos.

O STF perdeu a oportunidade de aniquilar o art. 19 do MCI, que continua a ser adotado para certas situações. Foi louvável o esforço e dedicação dos ministros, conduzidos pelo Presidente da Corte, na tentativa de fornecer, por via da tese de repercussão geral, um quadro regulatório provisório, enquanto o Congresso Nacional não elabora leis mais abrangentes sobre o assunto. Mas deixar sobreviver, ainda que parcialmente, o dispositivo questionado não atende às necessidades dos tempos atuais. O STF deveria pelo menos ter estabelecido como pedra de toque fundamental, para o balizamento de responsabilidades dos provedores, o regime do conhecimento (knowledge regime) para todas as hipóteses de difusão de conteúdos danosos, com o acréscimo de obrigações de vigilância para conteúdos visivelmente ilícitos (crimes graves). Isso pelo menos colocaria o regime jurídico brasileiro em pé de igualdade com o DSA europeu. As grandes empresas de tecnologia já utilizam ferramentas de inteligência artificial para análise de conteúdos e não seria irrazoável atribuir-lhes um dever de vigilância mais rígido.

A Corte Suprema também poderia ter depurado as obrigações conforme o tamanho e natureza do provedor, impondo mais rigor nos deveres das grandes plataformas digitais, em reconhecimento à assimetria do poder das grandes corporações em relação às pequenas e médias empresas que prestam serviços na internet. O STF terminou conferindo a mesma carga de obrigações às grandes empresas de tecnologia e aos pequenos provedores. Esse ponto poderá ser aperfeiçoado na futura legislação que vier a tratar do tema.

Assuntos relacionados
Sobre o autor
Demócrito Reinaldo Filho

Juiz de Direito. Doutor em Direito. Ex-Presidente do IBDI - Instituto Brasileiro de Direito da Informática.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

REINALDO FILHO, Demócrito. A inconstitucionalidade do art. 19 do Marco Civil da Internet.: Breve análise do julgamento do STF. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 30, n. 8041, 7 jul. 2025. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/114752. Acesso em: 6 dez. 2025.

Leia seus artigos favoritos sem distrações, em qualquer lugar e como quiser

Assine o JusPlus e tenha recursos exclusivos

  • Baixe arquivos PDF: imprima ou leia depois
  • Navegue sem anúncios: concentre-se mais
  • Esteja na frente: descubra novas ferramentas
Economize 17%
Logo JusPlus
JusPlus
de R$
29,50
por

R$ 2,95

No primeiro mês

Cobrança mensal, cancele quando quiser
Assinar
Já é assinante? Faça login
Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Colabore
Publique seus artigos
Fique sempre informado! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos