É deveras corriqueiro que licitantes se valham de mandados de segurança para questionarem toda a sorte de atos por eles apontados como coatores no âmbito das licitações (e mesmo contratações diretas) promovidas pelos órgãos e entidades da Administração Pública Federal, Estadual e Municipal.
Diante de tal constatação, sempre é útil analisar questões específicas que vêm sendo decididas pelos nossos Tribunais neste tipo de emprego específico do mandado de segurança.
É isso que nos propomos brevemente a fazer trazendo quatro pequenos estudos de casos práticos nas linhas que se seguem.
1. Um juiz pode revogar liminar anteriorente concedida sem promover a prévia oitiva do impetrante?
Imagine o seguinte cenário: a autoridade coatora, a pessoa jurídica interessada ou o litisconsorte passivo necessário trazem um fato novo no bojo do mandamus. Em tal hipótese, o juiz pode, sem violar o princípio da não surpresa, revogar liminar concedida em prol do impetrante sem ouvi-lo acerca dos elementos trazidos pela autoridade coatora, pela pessoa jurídica interessada ou pelo litisconsorte passivo?
A resposta é afirmativa. Como bem se sabe, o mandado de segurança é regido por legislação específica, a saber, a Lei nº 12.016/2009, que, por seu turno, não estabelece explicitamente um procedimento obrigatório para a oitiva do impetrante antes da revogação da liminar.
Assim, no âmbito desse regime jurídico específico tutelado pela Lei nº 12.016/2009, é lícito defender que as liminares têm caráter precário, sendo concedidas sob risco e responsabilidade do impetrante. Isso implica que sua revogação pode ser uma medida que decorra da ocorrência de fatos supervenientes, sem necessidade de audiência prévia, desde que fundamentada.
Mas, mesmo que ignoradas as especificidades próprias da Lei nº 12.016/2009, as regras contidas no Código de Processo Civil não obrigam que a revogação de uma tutela provisória seja necessariamente precedida de oitiva as partes. Neste sentido, vide os arts. 9º, par. único, I, 296 e 493 do CPC/2015 e a interpretação que lhes é conferida pela jurisprudência1 2.
2. Independentemente de sua colocação no certame, todo impetrante possui interesse de agir?
A Súmula 101 do STF é muito clara ao afirmar que “o mandado de segurança não substitui a ação popular.”
Neste particular, um licitante que não está bem colocado numa licitação e questiona um ato que, a rigor, não lhe trará proveito, qual seja, o de lhe permitir ficar em condições de adjudicar o objeto do certame, convolou indevidamente seu writ numa ação popular, razão pela qual não possui interesse de agir:
"A licitante classificada em quinto lugar não tem interesse processual para impugnar o ato que declarou vencedor a primeira classificada, porquanto eventual concessão não a favorece. O mandado de segurança individual não é substituto de ação popular nem de ação civil pública. Não se constitui em instrumento objetivo de controle da legalidade de atos e contratos administrativos, mas destina-se à defesa de direito ameaçado ou violado por ato de autoridade"
(TJ-RS - AC: 70043612910 RS, Relator.: Maria Isabel de Azevedo Souza, Data de Julgamento: 04/07/2011, Vigésima Segunda Câmara Cível, Data de Publicação: 07/07/2011)3
3. Um impetrante pode abrir mão de interpor o devido recurso administrativo e ingressar de pronto com um mandado de segurança?
Na forma do art. 5º, I, da Lei 12.016/2009, é inadmissível o mandado de segurança em face de ato do qual caiba recurso administrativo com efeito suspensivo, independentemente de caução.
Assim, se um impetrante não interpuser o devido recurso administrativo, ele não pode utilizar o mandamus como sucedâneo recursal:
“A Lei não contém palavras inúteis daí porque deve-se atentar para o dispositivo art. 5o, I, da Lei nº 12 .016/09, ao estabelecer que não caberá mandado de segurança quando se trata de ato do qual caiba recurso administrativo com efeito suspensivo, independentemente de caução. No caso concreto, deveria a impetrante utilizar-se da via administrativa para reclamar o seu alegado direito em relação aos tributos referidos, antes de recorrer ao Poder Judiciário”
(TJ-BA - APL: 05062375320158050001, Relator.: OSVALDO DE ALMEIDA BOMFIM, QUARTA CAMARA CÍVEL, Data de Publicação: 17/12/2019)4
4. Mandados de segurança podem ser impetrados após a homologação e adjudicação do objeto da licitação?
Imagine a seguinte situação: após celebrado o contrato administrativo e por vezes até já emitida a ordem de serviço e iniciada a execução contratual, um impetrante questiona a licitação.
Indaga-se: em uma situação como essa, o impetrante possui interesse de agir.
A resposta, conforme se vê abaixo, é negativa:
“É de ser extinto o mandado de segurança impetrado após a adjudicação e a homologação da licitação por ausência de interesse processual”
(TJ-RS - Agravo de Instrumento: 52183323320238217000 OUTRA, Relator: Maria Isabel de Azevedo Souza, Data de Julgamento: 07/12/2023, Vigésima Segunda Câmara Cível, Data de Publicação: 15/12/2023)
“(...) o Mandado de Segurança constitui via estreita para a defesa de direito líquido e certo do Impetrante, de forma que, não sendo possível o atingimento do resultado pretendido, não haverá utilidade na demanda. c) No caso, a Impetrante alega vícios no Procedimento Licitatório que violaram seu direito líquido e certo de ser declarada vencedora do Certame e efetivamente contratar com o Poder Público. d) Deduzida a pretensão tão somente após homologação, adjudicação e assinatura do Contrato, é nítido que o resultado pretendido não poderá ser atingido, e, pois, não há utilidade na análise da segurança. 2) APELO A QUE SE NEGA PROVIMENTO”
(TJPR - 5ª Câmara Cível - 0000161-40.2024.8.16.0004 - Curitiba - Rel.: DESEMBARGADOR LEONEL CUNHA - J. 01.10.2024)5 6
Notas
1 “1. A tutela provisória pode ser revogada ou modificada a qualquer tempo, por decisão motivada do juiz, desde que haja superveniente alteração do contexto fático-probatório, nos termos do art. 296, caput, do CPC. 2. Não há violação ao contraditório decorrente da ausência de oitiva da parte contrária anteriormente à revogação ou modificação da tutela provisória, tendo em vista a precariedade e provisoriedade que regem tal instituto, conforme preceitua o art. 9º, I, do CPC” (TJ-PR 00382695320248160000 Curitiba, Relator.: Fabio Marcondes Leite, Data de Julgamento: 13/09/2024, 20ª Câmara Cível, Data de Publicação: 16/09/2024)
2 “1. A revogação da tutela antecipada poderá ocorrer sem a prévia oitiva da parte contrária, admitindo-se o diferimento do contraditório do mesmo modo quando é concedida inaudita altera pars, o que se justifica em face da provisoriedade e urgência da decisão atacada. Aliás, inaplicável à situação o parágrafo único do art. 493. do CPC, postulado de que o art. 9º, parágrafo único, do CPC o exclui da sua incidência. 2. O princípio implícito da não surpresa não se aplica às tutelas provisórias de urgência (art . 9º, parágrafo único, inciso I, do CPC). No caso, a tutela antecipada foi revogada em face da ausência dos requisitos autorizadores da liminar de reintegração de posse, tendo em vista que a empresa agravada vem ocupando o imóvel há vários anos de modo que a convicção inicialmente utilizada para o deferimento da medida liminar não mais se sustentou. 3. A ausência de prévia intimação do autor/agravante antes da revogação da liminar outrora deferida em seu favor, por si só, não tem o condão de tornar a respectiva decisão nula de pleno direito. AGRAVO DE INSTRUMENTO CONHECIDO E DESPROVIDO” (TJ-GO - AI: 55582595320228090160 GOIÂNIA, Relator.: Des(a). RODRIGO DE SILVEIRA, 2ª Câmara Cível, Data de Publicação: (S/R) DJ)
3 No mesmo sentido: "Inabilitada a impetrante no procedimento licitatório, carece de interesse processual quanto à pretensão de ver reconhecida a ilegalidade do ato de adjudicação do objeto à vencedora, uma vez que nenhum proveito jurídico teria com a tutela buscada. Mandado de segurança que não pode ser utilizado como substitutivo de ação popular (Súmula nº 101 do STF)" (TJ-RS - AC: 70085307486 RS, Relator.: Marcelo Bandeira Pereira, Data de Julgamento: 14/09/2021, Vigésima Primeira Câmara Cível, Data de Publicação: 17/09/2021)
4 No mesmo sentido: "Não se concederá mandado de segurança quando se tratar: I - de ato do qual caiba recurso administrativo com efeito suspensivo, independentemente de caução. Tendo o impetrante se valido do mandado de segurança como sucedâneo recursal, deve ser indeferida a petição inicial do 'mandamus'.” (TJ-MG - MS: 10000220481907000 MG, Relator.: Valdez Leite Machado, Data de Julgamento: 25/08/2022, Órgão Especial / ÓRGÃO ESPECIAL, Data de Publicação: 01/09/2022)
5 No mesmo sentido: “O deferimento de liminar em mandado de segurança impetrado com intuito de suspender procedimento licitatório cujo objeto restou devidamente adjudicado e homologado antes mesmo da impetração, sendo certo, ainda, que o contrato resultante já se encontra em execução, revela nítida ausência de interesse de agir, pressuposto processual sine qua non de procedibilidade, conforme disciplina do art. 17. do Código de Processo Civil” (TJ-AM - Agravo de Instrumento: 4000152-89.2023.8.04 .0000 Tabatinga, Relator.: Abraham Peixoto Campos Filho, Data de Julgamento: 15/03/2024, Câmaras Reunidas, Data de Publicação: 15/03/2024)
6 No mesmo sentido: “Mandado de segurança – Pedido de nulidade de ato administrativo que inabilitou a impetrante em procedimento licitatório – Sentença que extinguiu o feito sem resolução de mérito – Irresignação da parte autora – Mandado de segurança impetrado após a homologação e adjudicação do objeto da licitação – Inexistência de interesse processual desde o início da demanda – Situação que não se confunde com a superveniente homologação/adjudicação do certame, em que persiste o interesse processual (art. 49, § 2º, Lei nº 8.666/93)– Precedentes desta Corte de Justiça e do STJ – Manutenção da sentença de extinção do processo sem resolução de mérito – Não provimento do recurso interposto” (TJ-SP - AC: 10257586820238260224 Guarulhos, Relator.: Marcos Pimentel Tamassia, Data de Julgamento: 03/10/2023, 1ª Câmara de Direito Público, Data de Publicação: 03/10/2023)