1. Contextualização
A publicação da Lei Complementar nº 213/2015 representou um dos mais relevantes avanços normativos recentes no campo da Proteção Patrimonial Mutualista no Brasil. O texto normativo consolidou um setor que, historicamente, operava à margem de uma supervisão estatal efetiva, reunindo associações, cooperativas e entidades afins que, embora cumprissem importante função social — especialmente atendendo a públicos desassistidos por seguradoras empresariais —, permaneciam fora do alcance direto da Superintendência de Seguros Privados (SUSEP).
O ponto de partida para essa mudança regulatória foi justamente o reconhecimento da relevância socioeconômica destas entidades, que atuam mediante princípios mutualistas — como o rateio proporcional de despesas, a solidariedade interna e a ausência de lucro como fim último —, mas que, por outro lado, vinham sendo objeto de investigações, ações judiciais e controvérsias administrativas, principalmente no que se refere à chamada concorrência desleal com o setor segurador tradicional. Doutrinadores como Sérgio Cavalieri Filho lembram que a proteção mutualista, na sua essência, não se confunde com contrato de seguro, pois:
“não envolve atividade empresarial lucrativa, mas sim um vínculo associativo com repartição de riscos entre os próprios membros”1
O legislador complementar, atento a essa realidade, procurou equilibrar o associativismo — protegido pela Constituição no art. 5º, XVII a XXI — e o princípio da livre iniciativa (CF, art. 170), com a necessidade de garantir transparência, estabilidade financeira e proteção do consumidor. Por isso, o art. 9º da nova lei introduziu uma regra de transição, a chamada “cláusula de preexistência”, estabelecendo que somente as entidades “que, na data de publicação desta Lei Complementar, estiverem realizando atividades direcionadas à proteção contra riscos patrimoniais” poderão se regularizar junto à SUSEP, no prazo de 180 dias, mediante adequação de estatutos e cadastramento. Trata-se de mecanismo típico de regimes de transição normativa, inspirado em soluções semelhantes já aplicadas em setores como planos de saúde de autogestão e cooperativas de crédito, em que a legitimidade para continuar a operar é condicionada à comprovação de atividade preexistente (cf. STJ, AgInt no AREsp 1429237/PR).
No entanto, surge aqui uma das maiores polêmicas interpretativas da LC 213/2025: a redação do art. 9º não trata expressamente da possibilidade de surgimento de novas associações ou cooperativas de proteção patrimonial após a sua publicação. Essa lacuna tem sido alvo de debates técnicos no setor, pois permite duas teses opostas:
Uma linha sustenta que o silêncio normativo revela a intenção do legislador de criar uma reserva de mercado, permitindo apenas a regularização de quem já atuava e fechando o regime para novos entrantes — o que poderia configurar uma forma indireta de monopólio econômico, ainda que em regime mutualista.
Outra corrente entende que o art. 9º tem caráter exclusivamente transitório, aplicando-se apenas às entidades que precisavam se adequar, mas sem impedir que novos grupos sejam constituídos no futuro, desde que observem os princípios do regime mutualista, a vinculação obrigatória a Administradoras registradas (art. 88-D e seguintes) e os requisitos de supervisão estabelecidos pela SUSEP.
Diante dessa tensão interpretativa, o presente artigo se propõe a examinar o tema de forma abrangente e fundamentada, apresentando as duas teses de forma crítica e equilibrada, sem negligenciar a relevância da Constituição Federal, que assegura a livre concorrência e a livre iniciativa (CF, art. 170, IV), mas também garante o poder regulatório do Estado para proteger consumidores e o mercado.
Para reforçar a análise, este estudo ainda traça um paralelo com o regime jurídico português, especialmente o Código das Associações Mutualistas (Decreto-Lei nº 59/2018), reconhecido como modelo de boa prática internacional no âmbito do mutualismo, e examina precedentes nacionais e internacionais, em setores como sandbox regulatórios e regimes de transição, que ilustram caminhos possíveis de interpretação para o mercado brasileiro.
Portanto, mais do que discutir a literalidade do art. 9º, pretende-se oferecer ao leitor uma visão densa, técnica e comparativa, para contribuir com o debate regulatório, empresarial e judicial que certamente emergirá sobre a possibilidade de novas operações mutualistas sob a LC 213/2025.
2. Texto Legal e Dispositivo Central
O cerne da discussão jurídica reside na leitura atenta do artigo 9º da Lei Complementar nº 213/2025, que trouxe, de forma clara, um regime de transição para as entidades de proteção patrimonial mutualista que já atuavam no país sem autorização da SUSEP até a data da publicação da lei. A literalidade do dispositivo é reveladora:
“Art. 9º. As associações e as demais entidades que, na data de publicação desta Lei Complementar, estiverem realizando atividades direcionadas à proteção contra riscos patrimoniais, pessoais ou de qualquer outra natureza, sem a devida autorização da SUSEP, deverão, no prazo de 180 (cento e oitenta) dias:
I — adequar seus estatutos ou contratos sociais, observadas as disposições legais;
II — efetuar cadastramento específico perante a SUSEP.”
A análise preliminar da redação permite perceber que o legislador adotou uma técnica de norma de eficácia contida, pois, embora garanta às entidades preexistentes um direito subjetivo de regularização, condiciona-o ao cumprimento de requisitos objetivos dentro de um prazo fatal. Essa sistemática é típica do Direito Administrativo Regulatório, especialmente em setores que emergem de um estado de informalidade parcial para um ambiente de fiscalização formal, como já ocorreu com Planos de Saúde Autogestionários (Lei nº 9.656/1998) e Cooperativas de Crédito (Lei Complementar nº 130/2009).
Além do art. 9º, destaca-se que a LC 213/2025 estruturou o Regime de Funcionamento no Título IV, em especial com os artigos 88-D a 88-F, que versam sobre a criação obrigatória de Grupos de Proteção Mutualista, a função da Administradora e as diretrizes de governança. O art. 88-D, por exemplo, atribui à Administradora a responsabilidade de gerir os recursos financeiros, supervisionar as obrigações e interagir com a SUSEP, impondo a estas entidades o dever de cumprir normas de compliance, contabilidade segregada e prestação de contas periódica. Essa arquitetura normativa reforça que, no regime definitivo, a SUSEP atuará como autoridade de supervisão prudencial, alinhada ao modelo de supervisão por regras e princípios (rules & principles based regulation).
O art. 88-E, por sua vez, menciona expressamente que “as associações poderão constituir Grupos de Proteção Mutualista”, sem restringir o verbo ao tempo passado, o que corrobora a tese de que o regime é passível de expansão, desde que observados os contornos da nova regulamentação. Aqui, a interpretação sistemática ganha força: segundo Maria Sylvia Zanella Di Pietro:
“a interpretação de normas administrativas deve sempre buscar harmonizar princípios constitucionais, evitando restrições de direitos sem base clara na lei” 2
Por outro lado, defensores da leitura restritiva sustentam que o legislador, ao não prever dispositivo expresso autorizando a entrada de novas entidades, teria optado por “congelar” o mercado, criando uma barreira de entrada indireta para proteger o equilíbrio atuarial. Essa interpretação, contudo, é tensionada pelo Princípio da Livre Iniciativa (CF, art. 170, caput) e pela Livre Concorrência (CF, art. 170, IV), que exigem base legal robusta para qualquer restrição de natureza econômica — e, neste ponto, o STF tem precedentes firmes, como o RE 603.624/RS, Tema 339 de repercussão geral, em que se declarou inconstitucional toda restrição regulatória que, sem justificativa razoável, configure reserva de mercado incompatível com o interesse público.
A Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB), em seu art. 24, impõe à Administração Pública o dever de motivar, de forma técnica, suas decisões regulatórias, considerando “consequências práticas da decisão”. Assim, caso a SUSEP venha a adotar postura restritiva sem fundamentação robusta, essa restrição poderá ser contestada administrativa ou judicialmente, sob o argumento de ausência de Análise de Impacto Regulatório (AIR), instrumento cada vez mais exigido em processos normativos de órgãos como a CVM e o BCB.
Portanto, a análise do texto legal, longe de se resumir ao art. 9º isoladamente, exige leitura sistemática com os demais dispositivos da LC 213/2025, com os princípios constitucionais da ordem econômica e com os precedentes do STF e do STJ que reiteram a proibição de restrições regulatórias desproporcionais ou que atentem contra a isonomia competitiva.
Conforme ensina Celso Antônio Bandeira de Mello:
“a interpretação das normas de Direito Público não pode dar ensejo à criação de privilégios ou restrições sem fundamento explícito, sob pena de violação do princípio da legalidade e da supremacia do interesse público.”3
3. Ponto Polêmico: O Alcance da “Cláusula de Preexistência”
O debate em torno “cláusula de preexistência”, introduzida pelo art. 9º da Lei Complementar nº 213/2025, representa, sem dúvida, uma das principais tensões interpretativas do novo regime da Proteção Patrimonial Mutualista. A redação do dispositivo, ao estabelecer que “as associações e as demais entidades que, na data de publicação desta Lei Complementar, estiverem realizando atividades direcionadas à proteção (...) deverão” realizar ajustes e cadastramento, fixou de forma inequívoca um marco temporal que diferencia o passado do futuro do setor.
De um lado, essa cláusula pode ser compreendida como um mecanismo de regularização transitória, em consonância com o princípio da segurança jurídica (LINDB, art. 23), pois evita o colapso imediato de entidades preexistentes, muitas das quais desempenham papel social relevante, sobretudo em regiões de baixa penetração do mercado segurador tradicional. De outro, a ausência de dispositivo específico autorizando o ingresso de novas associações ou cooperativas no mercado mutualista, após a vigência da lei, abre espaço para teses restritivas que sustentam a existência de uma barreira de entrada indireta — um verdadeiro “fechamento de mercado”, gerando risco de reserva de mercado velada.
Essa dualidade interpretativa não é nova no Direito Regulatório brasileiro. Um exemplo paradigmático pode ser visto no regime de planos de saúde autogestionários, regulamentados pela Lei nº 9.656/1998, que prevê regras rígidas de funcionamento para operadoras já existentes, mas permite a constituição de novas desde que cumpram requisitos específicos de liquidez, auditoria e governança — ou seja, não criou monopólio de fato para as preexistentes. Na jurisprudência, o Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do REsp 1.559.790/PR, destacou que restrições de acesso ao mercado de saúde suplementar, quando previstas, devem ser interpretadas de forma estrita, “sob pena de se promover a exclusão arbitrária de novos agentes econômicos e comprometer a livre concorrência.”
No campo doutrinário, Diogo de Figueiredo Moreira Neto, ensina que cláusulas de transição em normas regulatórias não podem ser confundidas com restrições definitivas ao ingresso de novos operadores. Segundo o autor:
“o dispositivo de transição é típico de regimes de saneamento normativo, não servindo como autorização tácita para criação de monopólios de fato.” 4
Além disso, a própria Constituição Federal, em seu art. 170, estabelece a livre iniciativa e a livre concorrência como fundamentos da ordem econômica. O STF, em casos como o RE 603.624/RS, assentou que eventuais restrições normativas à concorrência ou à liberdade de empreender exigem previsão legal expressa e fundamentação adequada, sob pena de nulidade. Nesse sentido, interpretar o art. 9º como restrição irreversível à formação de novas entidades mutualistas esbarra diretamente no Princípio da Proporcionalidade, pois a restrição mais grave — o veto ao exercício de atividade econômica lícita — deve ser a última ratio, jamais presumida.
Outro ponto de tensão diz respeito ao modelo de funcionamento do regime mutualista, redesenhado pela LC 213/2025. Se de um lado o art. 9º disciplina as preexistentes, de outro, os arts. 88-D a 88-F consolidam o Regime Definitivo, criando figuras como o Grupo de Proteção Mutualista e a Administradora, que passa a deter papel essencial de gestão, fiscalização e relacionamento com a SUSEP. Essa estrutura sugere que o legislador vislumbrou um sistema vivo, apto a se expandir mediante a constituição de novos grupos, inclusive formados por novos CNPJs, desde que vinculados a uma Administradora registrada e supervisionada.
A título de reforço, na experiência internacional, a regulamentação do mutualismo em Portugal — por meio do Código das Associações Mutualistas (Decreto-Lei nº 59/2018) — enfrentou problema semelhante. Lá, optou-se por um regime que reconhece as mutualistas preexistentes, mas não bloqueia o surgimento de novas entidades, desde que sujeitas à supervisão da Autoridade de Supervisão de Seguros e Fundos de Pensões (ASF), conforme relatado no Relatório Anual da ASF - 2022. Essa solução buscou equilibrar o valor histórico das entidades já atuantes e a necessidade de manter a concorrência aberta e saudável.
Cabe ressaltar que, para setores organizados sob lógica de livre adesão e autonomia associativa, vedar a constituição de novas entidades sem fundamento jurídico expresso seria, além de questionável do ponto de vista constitucional, um retrocesso associativo. A doutrina do professor Celso Antônio Bandeira de Mello lembra que:
“a interpretação de normas restritivas de direitos deve ser estrita, pois o Estado, enquanto regulador, não pode suprimir direitos sem base legal explícita” 5
Portanto, o ponto polêmico em debate pode ser sintetizado como uma escolha interpretativa que terá reflexos imediatos:
Se prevalecer a tese restritiva, haverá forte concentração de mercado entre as entidades hoje existentes, criando uma vantagem competitiva artificial e limitando a entrada de novos players, o que poderá gerar judicialização, ações de inconstitucionalidade e Mandados de Segurança preventivos ou repressivos;
Se prevalecer a leitura sistemática, que considera o art. 9º uma cláusula puramente transitória, o setor poderá absorver novos grupos mutualistas organizados por novas associações ligadas às Administradoras, alinhando-se à tendência internacional e reforçando a confiança de consumidores na regularidade da proteção prestada.
4. Tese restritiva: Reserva de Mercado para Preexistentes
A defesa da interpretação restritiva do art. 9º da LC nº 213/2025 parte da premissa de que o legislador, ao criar a cláusula de preexistência, escolheu conscientemente restringir o direito subjetivo de regularização apenas àquelas entidades que já estavam em atividade na data da publicação da lei. Para essa corrente, a lei não se limitou a criar uma regra de transição, mas estabeleceu um filtro normativo que, na prática, funciona como barreira de entrada para novos players , consolidando um regime fechado.
Essa leitura encontra eco em modelos regulatórios históricos, nos quais a lei restringiu a operação de certos mercados a um rol de atores preexistentes, seja para preservar a estabilidade econômica, seja para evitar o uso indevido do regime excepcional. Um exemplo clássico é o regime de concessões de rádio e TV, em que a outorga de novas concessões é limitada por critérios técnicos e por atos discricionários do Poder Executivo (CF, art. 223). Outro paralelo próximo pode ser traçado com os sindicatos de base única, cujo regime de unicidade sindical (CF, art. 8º, II) proíbe a criação de mais de uma entidade sindical representativa da mesma categoria na mesma base territorial, criando uma reserva de representatividade para os já existentes.
Segundo essa linha, o silêncio normativo do art. 9º quanto ao cadastramento de novas entidades não seria omissão involuntária, mas uma decisão política do legislador complementar, que vislumbrou a necessidade de “limitar o mercado” para evitar a expansão indiscriminada de associações de fachada, muitas vezes acusadas de atuarem como seguradoras disfarçadas. Essa tese é reforçada por trechos das justificativas do projeto de lei, que destacaram a intenção de disciplinar “apenas quem já estivesse em operação, afastando aventureiros que buscam burlar a regulação do mercado segurador”.
Do ponto de vista da hermenêutica, os defensores da tese restritiva evocam o Princípio da Especialidade, pelo qual normas especiais prevalecem sobre normas gerais (cf. STJ, AgRg no AREsp 236.131/CE). Assim, ainda que a Constituição assegure a livre iniciativa (CF, art. 170), tal garantia não afastaria a possibilidade de restrição em setores regulados, desde que amparada em lei complementar, que tem status hierárquico reforçado no ordenamento jurídico (CF, art. 59, II).
Sob o prisma da regulação econômica, doutrinadores como Eros Roberto Grau reconhecem que há setores onde o regime jurídico admite “mercado fechado ou contingenciado”, justificando restrições ao ingresso de novos agentes. Em sua obra, Grau pontua que:
“o Estado pode limitar o número de participantes em determinados setores estratégicos, sempre que demonstrar a existência de interesse público relevante, como a proteção do equilíbrio econômico ou social”.6
Na mesma linha, a SUSEP poderia, em tese, sustentar que a limitação serve para proteger o Princípio da Mutualidade Real, evitando a proliferação de grupos pequenos ou frágeis financeiramente, o que poderia expor os aderentes a riscos de colapso atuarial. Essa preocupação não é infundada: há precedentes em que o STJ reconheceu a legitimidade de restrições para evitar fraudes ou manipulações associativas (STJ, REsp 1.136.480/SP).
Ademais, no campo internacional, há experiências pontuais que flertam com regimes de entrada restrita. Por exemplo, na Espanha, cooperativas de crédito regionais enfrentaram limitações para expansão após a crise financeira de 2008, visando preservar a solidez das cooperativas de base territorial já consolidadas.
Outro argumento invocado por quem sustenta a restrição é a manutenção do equilíbrio atuarial: permitir o ingresso de novas entidades, em tese, poderia diluir a base de membros das já cadastradas, prejudicando a capacidade de rateio de custos e aumentando o risco de sinistralidade desequilibrada.
Do ponto de vista prático, essa tese adverte que o regime de exceção criado pela LC 213/2025 não deve se tornar uma “porta aberta” para novos entrantes que, sob o manto do mutualismo, busquem concorrer diretamente com seguradoras devidamente autorizadas, sem se submeterem ao mesmo grau de exigências de capital mínimo, provisões técnicas e garantias, previstos na Lei nº 4.594/1964 e no Decreto-Lei nº 73/1966.
Sob essa perspectiva, a cláusula de preexistência seria, portanto, um instrumento de proteção do interesse público, mesmo que crie uma vantagem competitiva em favor das entidades já instaladas. A justificativa, ainda que controversa, encontra respaldo no Princípio da Razoabilidade Regulatória, pois o excesso de fragmentação do setor poderia gerar riscos sistêmicos para os consumidores.