Capa da publicação Lei Mutualista: há espaço para novas associações?
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Novas associações na vigência da LC 213/2025: possibilidade ou proibição?

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18/07/2025 às 12:50
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5. Tese Não Restritiva: Restrição Apenas Transitória

A interpretação não restritiva do art. 9º da LC nº 213/2025 sustenta que a chamada cláusula de preexistência não cria um regime fechado ou uma reserva de mercado para as associações e cooperativas existentes, mas apenas estabelece um mecanismo de regularização transitória, aplicável exclusivamente àquelas entidades que, até 15 de janeiro de 2025, já exerciam atividades de proteção patrimonial mutualista sem autorização da SUSEP. Assim, sob essa ótica, não há vedação jurídica para o ingresso de novas entidades, desde que estas respeitem o regime legal, se organizem em Grupos Mutualistas e sejam vinculadas a uma Administradora registrada.

Do ponto de vista literal, não se extrai do art. 9º qualquer comando proibitivo expresso. A redação é clara ao tratar somente das “associações e demais entidades que, na data de publicação desta Lei Complementar, estiverem realizando atividades (…)”, mas não dispõe sobre a possibilidade de ingresso de novos CNPJs. Esse silêncio normativo, no Direito Administrativo, não pode ser interpretado como vedação, especialmente quando se trata de limitar o exercício de uma atividade econômica ou associativa lícita — princípio reiteradamente reconhecido em decisões do STF, como no RE 603.624/RS (Tema 339), em que se firmou que restrições regulatórias implícitas, que afetem a liberdade econômica, são inconstitucionais.

A doutrina administrativa brasileira é pacífica ao considerar que “normas restritivas de direitos fundamentais ou de liberdades econômicas devem ter previsão legal expressa e interpretação estrita7. Assim, não há como presumir que o legislador quis vedar a constituição de novas associações mutualistas se não o fez de forma clara e inequívoca.

No campo sistemático, o argumento ganha ainda mais força quando se analisam os arts. 88-D a 88-F da própria LC 213/2025. Esses dispositivos estruturam o Regime Definitivo, criando os Grupos de Proteção Mutualista e as Administradoras, figuras que se tornam o coração operacional do novo modelo. O art. 88-E estabelece que “as associações poderão constituir Grupos de Proteção Mutualista…”, em redação que não limita a temporalidade do verbo, tampouco veda a formação de novos grupos por entidades constituídas posteriormente. Essa ausência de restrição reforça a ideia de que o legislador desenhou um sistema aberto, porém regulado, com forte supervisão da SUSEP.

Nesse sentido, o Código das Associações Mutualistas de Portugal (DL nº 59/2018) serve de referência internacional valiosa. Lá, adotou-se um modelo de transição longa (12 anos) para regularização das mutualistas preexistentes, mas não se impôs vedação para novas mutualistas, desde que atendam a requisitos técnicos e sejam submetidas à supervisão da ASF — Autoridade de Supervisão de Seguros e Fundos de Pensões. Conforme explica Pedro Gonçalves, em Direito do Mutualismo e da Previdência (Coimbra, 2019), o regime lusitano optou por reforçar a disciplina prudencial sem limitar o dinamismo associativo, equilibrando o histórico das entidades tradicionais com a possibilidade de inovação mutualista.

Além disso, o princípio da livre iniciativa (CF, art. 170, caput) e o princípio da livre concorrência (CF, art. 170, IV) são pilares constitucionais da ordem econômica brasileira. Assim, criar um monopólio mutualista indireto, por simples interpretação restritiva, violaria frontalmente esses postulados, conforme destacou o Min. Luís Roberto Barroso:

a atividade empresarial, incluída a associativa com repercussão econômica, só pode ser restringida por lei clara e proporcional, sob pena de afronta à ordem econômica constitucional”. 8

Outro aspecto de destaque é a função social das associações e cooperativas de proteção patrimonial, que se mantêm relevantes em regiões onde o mercado de seguros não alcança adequadamente populações de baixa renda ou localidades afastadas. Restringir a formação de novas entidades poderia significar reduzir o acesso da população à proteção básica contra riscos patrimoniais, indo de encontro ao Princípio da Universalidade de Acesso, implícito na Constituição e reforçado em políticas públicas de inclusão financeira.

Na dimensão pragmática, permitir novas entidades — desde que sujeitas a todas as obrigações de governança, compliance e supervisão pela SUSEP — reforça o objetivo do legislador de combater a informalidade, oferecendo um ambiente mais seguro para os consumidores. Em regimes de sandbox regulatório, como o da SUSEP (Resolução CNSP nº 381/2020), já se consagrou a prática de abrir rodadas sucessivas de adesão, com fases de teste que não bloqueiam permanentemente a entrada de novas insurtechs, justamente para evitar reservas de mercado.

Assim, a tese não restritiva concilia:

  • A literalidade do art. 9º, que não proíbe novas formações;

  • A interpretação sistemática dos arts. 88-D a 88-F;

  • O princípio constitucional da livre iniciativa e da livre concorrência;

  • E o modelo internacional de Portugal, que serve como referência para regimes mutualistas abertos, mas altamente supervisionados.

Como destaca Marçal Justen Filho:

“em matérias regulatórias, a ausência de vedação expressa, combinada com a existência de regras claras de habilitação e controle, conduz à solução pela permissão do exercício de atividade, sob pena de inversão do sentido da legalidade administrativa” 9

Portanto, a leitura mais equilibrada e constitucionalmente harmônica é aquela que reconhece o art. 9º como norma de transição, jamais como cláusula de exclusão definitiva, preservando o dinamismo do regime mutualista e evitando a formação de monopólios disfarçados.


6. Outros Dispositivos que Influenciam o Debate

Para compreender o verdadeiro alcance da cláusula de preexistência estabelecida pelo art. 9º da LC nº 213/2025, é indispensável ir além da análise isolada desse dispositivo. É necessário, conforme orienta Maria Sylvia Zanella Di Pietro:

“interpretar o ato normativo à luz de todo o sistema jurídico em que se insere, sem jamais ignorar o princípio da unidade da Constituição” 10

Sob essa perspectiva, a própria Lei Complementar nº 213/2025 apresenta outros artigos que exercem influência direta sobre a controvérsia, funcionando como antídotos à tese restritiva. Destacam-se, nesse sentido, os arts. 88-D, 88-E e 88-F, inseridos no capítulo que trata do Regime de Funcionamento, delineando o modelo definitivo para a atividade mutualista sob fiscalização da SUSEP.

O art. 88-D, por exemplo, dispõe sobre a Administração da Proteção Patrimonial Mutualista, prevendo a obrigatoriedade de que os Grupos de Proteção sejam geridos por Administradoras registradas, submetidas a padrões de compliance, auditoria e governança. Essa estrutura demonstra que o foco regulatório é justamente garantir segurança jurídica e estabilidade financeira, independentemente de quando o grupo mutualista tenha sido constituído. Ou seja, não há qualquer limitação temporal ou vedação à formação de novas Administrações ou grupos, desde que respeitados os requisitos legais. Por que haveria, então, de novas associações?

Já o art. 88-E prevê textualmente que “as associações poderão constituir Grupos de Proteção Mutualista”, sem restringir tal faculdade apenas às que já existiam na data da publicação da lei. A redação está no presente do indicativo — “poderão constituir” — forma verbal que, em hermenêutica jurídica, sugere um direito contínuo, apto a ser exercido também por novas associações ou cooperativas que atendam aos requisitos. O STF, no RE 603.624/RS, reforçou que a interpretação restritiva de direitos deve sempre dar preferência a uma leitura que preserve a eficácia plena de normas constitucionais e infraconstitucionais.

A leitura sistemática é ainda mais relevante quando se observa o art. 88-F, que trata das obrigações e responsabilidades das Administradoras, as quais devem manter escrituração contábil separada, reservas técnicas adequadas e mecanismos de supervisão interna. Novamente, não há qualquer distinção entre grupos formados por entidades preexistentes e grupos criados por novas entidades. A ausência dessa diferenciação reforça o argumento de que o legislador não desejou bloquear o ingresso de novos players, mas sim criar uma moldura normativa única, capaz de disciplinar todos os atores sob o mesmo regime de compliance e supervisão prudencial.

Outro ponto relevante é a Resolução SUSEP nº 49/2025, mencionada em consultas técnicas do setor, que operacionaliza as diretrizes do art. 9º mas não inova no aspecto restritivo. Trata-se de ato infralegal com natureza meramente procedimental, que, conforme o Princípio da Hierarquia Normativa (art. 59. da CF), não pode ampliar ou restringir direitos garantidos em lei complementar. A doutrina de Celso Antônio Bandeira de Mello é clara:

“Nenhum ato normativo inferior pode conter regra que contrarie ou restrinja direitos conferidos por lei em sentido formal11

Além disso, a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB), no art. 24, reforça que decisões normativas ou administrativas devem sempre considerar as consequências práticas e os impactos regulatórios. Eventuais entendimentos que impeçam novas formações mutualistas, sem base expressa na lei, podem resultar em efetiva reserva de mercado, criando concentração artificial em contrariedade à livre concorrência (CF, art. 170, IV).

Outro dispositivo de influência indireta é o Código Civil (arts. 44, I e 53), que reconhece a autonomia das associações para definir livremente seus fins lícitos, vedando restrições arbitrárias à constituição de novas associações, desde que não contrariem lei expressa. Assim, enquanto a LC nº 213/2025 não trouxer vedação taxativa, a regra geral de liberdade associativa deve prevalecer.

No plano comparado, o Código das Associações Mutualistas de Portugal (DL nº 59/2018) também revela a importância de não fixar barreiras artificiais. Lá, a legislação conferiu um longo prazo de transição (12 anos) para adequação das mutualistas históricas, mas não impôs qualquer restrição à constituição de novas. Pelo contrário, a ASF (Autoridade de Supervisão de Seguros e Fundos de Pensões) orienta, em seus relatórios anuais, que novas mutualistas são bem-vindas, desde que observem rigorosos padrões técnicos, fortalecendo o sistema mutualista sem criar concentração anticompetitiva.

Em síntese, uma leitura sistêmica, finalística e constitucionalmente orientada mostra que os dispositivos complementares da LC 213/2025 não apenas não vedam o ingresso de novas entidades, mas, ao contrário, estruturam o regime para acomodar expansão organizada, supervisionada e transparente.


7. Precedentes Regulatórios e Direito Comparado

Um ponto de destaque para sustentar a tese da não restrição definitiva do regime mutualista é o exame de precedentes regulatórios nacionais e de experiências internacionais, que demonstram como modelos semelhantes já enfrentaram dilemas regulatórios correlatos e como o legislador e as agências resolveram o conflito entre segurança jurídica, livre iniciativa e proteção do consumidor.

7.1. Precedentes no Brasil

No cenário brasileiro, é possível identificar múltiplos paralelos em que o ordenamento jurídico optou por regimes de regularização transitória, mas sem criar barreiras permanentes para novos entrantes. Um exemplo pedagógico é o sandbox regulatório lançado pela SUSEP em 2020 (Resolução CNSP nº 381/2020). Ali, criou-se uma janela de adesão restrita para insurtechs testarem novos modelos de negócio no mercado de seguros, por tempo determinado, mas com previsão expressa de novas rodadas, justamente para evitar que a fase experimental se transformasse em reserva de mercado para os primeiros admitidos.

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Do mesmo modo, a CVM, ao regulamentar os Fundos de Investimento em Participações (FIPs), também adota o modelo de prazo de adaptação para fundos preexistentes, sem proibir a constituição de novos. O STJ, em decisões como o REsp 1.559.790/PR, firmou que restrições de entrada só são legítimas quando previstas em lei clara e proporcionais ao risco sistêmico que se deseja evitar. Assim, precedentes indicam que o simples silêncio legal não basta para criar uma proibição irreversível ao ingresso de novos players.

Outro caso interessante é o da regulamentação dos provedores de ativos virtuais, cuja Lei nº 14.478/2022 impôs cadastro obrigatório junto ao Banco Central. O dispositivo de transição previu a regularização dos prestadores existentes, mas deixou expresso que novos agentes poderiam requerer autorização a qualquer tempo, desde que observadas as normas prudenciais. Essa prática reafirma o padrão regulatório “transição + regime permanente aberto”, amplamente aceito em setores regulados.

Esses exemplos reforçam o entendimento de que a cláusula de preexistência do art. 9º da LC 213/2025, por si só, não cria monopólio. Ao contrário, sua natureza é claramente de sanear um passivo regulatório, como destacou Diogo de Figueiredo Moreira Neto:

“O regime de transição é mecanismo para mitigar efeitos de mudança de paradigma jurídico, mas não substitui o regime definitivo que se pretende estruturar sob bases concorrenciais.” 12

7.2. Comparação com Portugal: o Código das Associações Mutualistas

No âmbito internacional, o caso português é uma das experiências mais instrutivas. O Código das Associações Mutualistas (Decreto-Lei nº 59/2018) modernizou o mutualismo lusitano, impondo às associações históricas um prazo generoso de transição (12 anos) para adequar estatutos, estruturas de governança e reservas técnicas. Entretanto, em momento algum o diploma legal restringiu a constituição de novas mutualistas, desde que estas se submetam às exigências de capital mínimo, auditoria externa e supervisão pela ASF — Autoridade de Supervisão de Seguros e Fundos de Pensões.

A Diretiva Europeia Solvência II (2009/138/CE) também influenciou o regime português ao exigir que sociedades mutualistas sigam normas de solvência e prudência semelhantes às seguradoras tradicionais, mas sem vedar a inovação mutualista. Como destaca Pedro Gonçalves:

“o mutualismo, por essência, não deve ser congelado no tempo, mas crescer sob controles rígidos que reforcem a confiança coletiva no regime.” 13

Relatórios anuais da ASF corroboram essa abordagem. Por exemplo, o Relatório de Supervisão de 2022 reconheceu que o número de novas mutualistas é modesto, mas reafirmou a possibilidade de entrada de novos players sob supervisão. Essa política evita concentração de mercado, inibe a formação de monopólios de fato e amplia a oferta de proteção em zonas pouco servidas pelo seguro tradicional.

7.3. Paralelos em Outros Regimes: Bancos Cooperativos e Autogestão em Saúde

No Brasil, o Sistema de Cooperativas de Crédito (LC nº 130/2009) é um caso análogo. Quando regulamentado, a lei preservou a continuidade das cooperativas históricas, mas em nenhum momento proibiu a fundação de novas cooperativas. A lógica é a mesma: criar regras prudenciais rígidas, fiscalizar a solvência, mas manter pluralidade de atores, em consonância com a livre associação (CF, art. 5º, XVII) e a economia solidária.

De forma semelhante, a Lei nº 9.656/1998, ao disciplinar os Planos de Saúde Autogestionários, não vedou a criação de novas autogestões. Ao contrário, exigiu que todas, antigas ou novas, cumprissem critérios de reservas técnicas e auditoria externa. O STJ, no REsp 1.559.790/PR, interpretou esse regime como não excludente, destacando que restrições à formação de novas entidades violariam o princípio da livre iniciativa.

7.4. Síntese: Lições dos Precedentes

A análise comparativa demonstra que, em setores sensíveis, o ordenamento costuma:

  • Criar cláusulas de transição para regularizar passivos históricos;

  • Prever regime definitivo aberto, mas altamente regulado, com filtros de compliance e supervisão;

  • Rejeitar restrições implícitas que gerem reserva de mercado velada, por ofensa à livre concorrência.

Como ensina Marçal Justen Filho:

“o poder regulatório não pode erigir barreiras invisíveis que favoreçam poucos e prejudiquem a coletividade.” 14

Portanto, os precedentes nacionais e internacionais fortalecem o argumento de que o art. 9º da LC 213/2025 deve ser lido como instrumento de transição, não como cláusula de exclusão definitiva de novas entidades, reafirmando a coerência com o princípio da livre iniciativa (CF, art. 170) e com o interesse público de oferecer opções seguras, diversificadas e fiscalizadas ao consumidor.

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Sobre o autor
Renato Assis

Advogado inscrito na OAB dos estados de BA, ES, MG, PR, SP e RJ; Professor de Direito e empresário; Graduado em Direito pela Universidade FUMEC-MG; Especialista em Direito Processual pela PUC-MG; Especialista em Direito Médico pela Universidade de Araraquara/SP; MBA em Gestão Empresarial pela Fundação Getúlio Vargas/RJ; Especialista em Direito Ambiental e Minerário pela PUC/MG; Professor do curso de Direito Médico e Odontológico da UCA (Universidade Corporativa da ANADEM); Autor do livro “Direito Processual e o Constitucionalismo Democrático Brasileiro” – 2009; Autor do livro “Socorro Mútuo: Como a Proteção Veicular revolucionou o mercado de Proteção Patrimonial e de Seguros do Brasil” – 2019; Conselheiro Jurídico e Científico da ANADEM – Sociedade Brasileira de Direito Médico e Bioética; Acadêmico Efetivo e Vitalício na área de Ciências Jurídicas da ALACH – Academia Latino-Americana de Ciências Humanas; Membro da AIDA – Associação Internacional de Direito do Seguro; Membro da WAML – World Association for Medical Law; Presidente da Unidade Brasil da ASOLADEME – Associación Latinoamericana de Derecho Médico.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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