Capa da publicação Lei Mutualista: há espaço para novas associações?
Capa: Sora

Novas associações na vigência da LC 213/2025: possibilidade ou proibição?

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18/07/2025 às 12:50
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8. Síntese Comparativa

A análise minuciosa de toda a Lei Complementar nº 213/2025, somada aos precedentes regulatórios nacionais e ao exemplo internacional de Portugal, permite traçar uma síntese comparativa sólida, útil tanto para operadores do Direito quanto para gestores de entidades que já atuam ou pretendem ingressar no Regime da Proteção Patrimonial Mutualista.

Primeiramente, é preciso reconhecer que o art. 9º, isoladamente, pode conduzir a interpretações divergentes — e isso é o centro de todo o embate. Por um lado, sua literalidade estabelece um marco temporal objetivo: apenas as associações e cooperativas “que, na data de publicação desta Lei Complementar, estiverem realizando atividades direcionadas à proteção contra riscos patrimoniais (...)” poderão se regularizar mediante adequação estatutária e cadastramento junto à SUSEP no prazo de 180 dias. Esse modelo de saneamento regulatório é comum em processos de regularização de mercados informais, sendo defendido por doutrinadores como Diogo de Figueiredo Moreira Neto, para quem:

“o regime de transição é técnica de racionalização da passagem de um regime de fato para um regime de Direito.” 15

Contudo, a interpretação restritiva — que vê nesse dispositivo uma barreira definitiva à entrada de novas entidades — se enfraquece quando confrontada com o restante do texto legal. Dispositivos como os arts. 88-D a 88-F estruturam o Regime de Funcionamento com regras detalhadas para a criação de Grupos de Proteção Mutualista e a atuação de Administradoras, sem qualquer cláusula de limitação temporal ou quantitativa. O art. 88-E, ao afirmar que “as associações poderão constituir Grupos de Proteção Mutualista”, emprega forma verbal que, na hermenêutica jurídica, denota possibilidade jurídica continuada, e não fechada no tempo.

O Princípio da Interpretação Sistemática, defendido por Celso Antônio Bandeira de Mello, ensina que se deve evitar isolar dispositivos que componham regimes complexos, sob pena de gerar distorções. Assim, considerar apenas o art. 9º, descolado dos demais, ignora que o legislador complementar criou um regime definitivo, baseado em fiscalização, capital mínimo, provisões técnicas, compliance robusto e transparência, aplicável a todos os players — preexistentes ou novos.

Comparando com modelos internacionais, Portugal se destaca como paradigma. Lá, o Código das Associações Mutualistas (Decreto-Lei nº 59/2018) introduziu um regime de adaptação extenso, com 12 anos para ajuste das mutualistas históricas, mas não vedou a constituição de novas mutualistas. A supervisão da ASF — Autoridade de Supervisão de Seguros e Fundos de Pensões garante que todas, antigas e novas, sigam as mesmas regras de solvência e governança. Como destaca Pedro Gonçalves:

“o mutualismo é movimento vivo: congelá-lo por vedação legal seria matar sua função social de complementaridade onde o seguro não alcança.” 16

Além disso, os precedentes brasileiros, como o Sandbox da SUSEP e a regulamentação de ativos virtuais pelo BCB, mostram que a prática do “transição + regime aberto” é dominante: regulariza-se o passivo histórico e se estrutura uma porta de entrada para novos players, desde que sob normas prudenciais, evitando monopólios artificiais. O STF, no Tema 339 da Repercussão Geral (RE 603.624/RS), também já assentou que o Princípio da Livre Iniciativa (CF, art. 170) impede restrições implícitas, devendo qualquer vedação ao exercício de atividade econômica ou associativa constar de forma expressa, clara e proporcional.

Um ponto igualmente relevante é a Função Social do Regime Mutualista. Vedar a constituição de novas entidades — sem amparo claro — acabaria limitando o acesso de comunidades desassistidas, sobretudo no interior e em regiões sem cobertura robusta de seguradoras. Isso contraria o Princípio da Universalidade de Acesso, implícito na ordem econômica (CF, art. 170) e reforçado pela doutrina do Professor Eros Roberto Grau, para quem:

“O Estado deve reprimir monopólios artificiais que não guardem relação com interesse público legítimo” 17

Para facilitar o entendimento prático, segue a tabela-síntese comparativa:

Critério

Brasil – LC 213/2025

Portugal – Código das Associações Mutualistas (DL 59/2018)

Cláusula de transição

[180] dias para regularizar preexistentes

[12] anos para adaptação das mutualistas históricas

Possibilidade de novas entidades

Silêncio → tese restritiva vs. não restritiva

Claramente permitidas, sob supervisão da ASF

Supervisão e governança

SUSEP com Regime de Funcionamento (arts. 88-D a 88-F)

ASF com normas de solvência, reservas e auditoria

Livre iniciativa e concorrência

CF, art. 170, IV; RE 603.624/RS reforça proteção

Idem, em consonância com a Diretiva Europeia Solvência II

Função social

Proteção complementar onde o seguro tradicional não chega

Mutualismo como complemento do seguro tradicional

Assim, a síntese evidencia que o modelo brasileiro, quando interpretado sistematicamente e de forma constitucionalmente orientada, aproxima-se mais da tese não restritiva, que reconhece o art. 9º como um marco de saneamento, mas não como cláusula de exclusão definitiva. O Regime de Funcionamento foi concebido para dar segurança a todos os grupos, inclusive aqueles que poderão surgir no futuro, desde que atuem sob a guarda de uma Administradora registrada e atendam rigorosamente às exigências da SUSEP.

Portanto, a análise comparativa confirma: vedar novas formações por interpretação extensiva distorce o equilíbrio normativo, gera concentração artificial e afronta a ordem econômica constitucional. O caminho mais adequado — jurídica e economicamente — é o do regime aberto, regulado e supervisionado, exatamente como já ocorre nos sistemas mais avançados.


9. Conclusão

A análise detida da Lei Complementar nº 213/2025, em especial do art. 9º, evidencia que a chamada cláusula de preexistência deve ser interpretada como um mecanismo de transição regulatória, típico de regimes de saneamento jurídico de setores historicamente informais, mas não como um instrumento de vedação definitiva à entrada de novos atores no Regime da Proteção Patrimonial Mutualista.

Sob o prisma literal, o dispositivo trata exclusivamente das entidades que já realizavam atividades mutualistas na data de publicação da lei, disciplinando sua regularização em até 180 dias. Contudo, o texto não contém cláusula expressa de proibição para a constituição de novas entidades — fato que, conforme leciona Celso Antônio Bandeira de Mello, impede que a Administração ou o intérprete criem restrições não escritas, sob pena de violação do princípio da legalidade estrita (Curso de Direito Administrativo, Malheiros, 38ª ed., 2021).

Do ponto de vista sistemático, os arts. 88-D, 88-E e 88-F confirmam a estrutura de um regime permanente, organizado em torno dos Grupos de Proteção Mutualista geridos por Administradoras registradas. A forma verbal “poderão constituir” (art. 88-E) reforça que o legislador concebeu um modelo aberto, porém sujeito a requisitos rigorosos de solvência, compliance e supervisão prudencial pela SUSEP — exatamente como ocorre em setores regulados como o mercado segurador tradicional e as cooperativas de crédito.

A leitura comparativa com a experiência de Portugal, regida pelo Código das Associações Mutualistas (Decreto-Lei nº 59/2018), amplia a compreensão do tema: lá, o regime de transição protegeu mutualistas históricas com prazo generoso de adaptação, mas não bloqueou o surgimento de novas mutualistas, desde que sob supervisão da ASF. Essa prática preserva o valor histórico das entidades existentes, sem criar monopólios artificiais, garantindo pluralidade, concorrência e opções ao consumidor.

No campo constitucional, a Livre Iniciativa e a Livre Concorrência (CF, art. 170, IV) permanecem cláusulas basilares da ordem econômica. O STF, ao julgar o Tema 339 da Repercussão Geral (RE 603.624/RS), reafirmou que restrições ao exercício de atividade econômica devem ser expressas, claras e proporcionais, não podendo decorrer de presunção ou lacuna interpretativa.

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A manutenção de uma leitura restritiva, por outro lado, geraria um cenário de concentração de mercado, incompatível com a função social do mutualismo, cuja razão de existir é justamente ampliar o acesso à proteção patrimonial em comunidades de baixa penetração do seguro tradicional. Tal restrição poderia ainda motivar disputas judiciais em larga escala, com Mandados de Segurança e Ações Diretas de Inconstitucionalidade questionando a compatibilidade de uma reserva de mercado implícita com os fundamentos da economia nacional.

Portanto, respeitados os parâmetros doutrinários, normativos e jurisprudenciais analisados, a interpretação mais coerente com a Constituição, a ordem econômica e a função social do regime mutualista é aquela que reconhece o art. 9º como regra de transição, sem vedar a possibilidade de constituição de novas entidades, desde que estas se organizem conforme o modelo legal, integrando-se a Grupos de Proteção Mutualista geridos por Administradoras registradas na SUSEP.


10. Recomendações

Considerando toda a análise apresentada neste artigo, é incontestável que não há fundamento jurídico sólido para sustentar uma reserva de mercado em favor exclusivo das entidades preexistentes. A literalidade restrita do art. 9º, confrontada com a leitura sistemática dos arts. 88-D a 88-F, o histórico comparado de regimes similares — como o Código das Associações Mutualistas de Portugal — e os precedentes brasileiros em setores regulados convergem para uma conclusão inequívoca: o Regime da Proteção Patrimonial Mutualista permanece aberto, desde que respeitados todos os requisitos legais, a supervisão da SUSEP e os princípios constitucionais da livre iniciativa, livre concorrência e função social do mutualismo.

Nesse cenário, novas entidades podem e devem ingressar no regime, organizando-se sob a forma de associações, constituindo os Grupos de Proteção Mutualista e operando necessariamente por meio de Administradoras registradas, observando padrões rigorosos de governança, solvência e compliance.

Mais do que isso, cabe ao setor — associações, administradoras, federações, entidades representativas — atuar de forma proativa, exigindo da SUSEP normativos complementares claros, que afastem interpretações restritivas infundadas, garantam segurança jurídica aos novos projetos e coíbam tentativas de cristalização de monopólios artificiais ou zonas de incerteza regulatória que possam comprometer o equilíbrio econômico, a confiança dos consumidores e a livre circulação de novas ideias dentro do regime mutualista.

Em última análise, fortalecer o mutualismo não é fechar portas: é qualificar as regras de entrada, elevar o padrão de supervisão e ampliar o acesso da população a soluções de proteção patrimonial seguras, sustentáveis e socialmente legítimas.

A regulação não deve engessar a essência solidária do mutualismo — mas, sim, garantir que ele continue vivo, plural e alinhado aos princípios que fundamentam nossa ordem econômica constitucional.

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Sobre o autor
Renato Assis

Advogado inscrito na OAB dos estados de BA, ES, MG, PR, SP e RJ; Professor de Direito e empresário; Graduado em Direito pela Universidade FUMEC-MG; Especialista em Direito Processual pela PUC-MG; Especialista em Direito Médico pela Universidade de Araraquara/SP; MBA em Gestão Empresarial pela Fundação Getúlio Vargas/RJ; Especialista em Direito Ambiental e Minerário pela PUC/MG; Professor do curso de Direito Médico e Odontológico da UCA (Universidade Corporativa da ANADEM); Autor do livro “Direito Processual e o Constitucionalismo Democrático Brasileiro” – 2009; Autor do livro “Socorro Mútuo: Como a Proteção Veicular revolucionou o mercado de Proteção Patrimonial e de Seguros do Brasil” – 2019; Conselheiro Jurídico e Científico da ANADEM – Sociedade Brasileira de Direito Médico e Bioética; Acadêmico Efetivo e Vitalício na área de Ciências Jurídicas da ALACH – Academia Latino-Americana de Ciências Humanas; Membro da AIDA – Associação Internacional de Direito do Seguro; Membro da WAML – World Association for Medical Law; Presidente da Unidade Brasil da ASOLADEME – Associación Latinoamericana de Derecho Médico.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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