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Comentários ao crime de desobediência do Código Penal brasileiro

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20/07/2025 às 08:41

Resumo:


  • O crime de desobediência está previsto no artigo 330 do Código Penal, sendo caracterizado pelo não cumprimento de uma ordem legal de funcionário público, sujeito a detenção e multa.

  • O bem jurídico tutelado pelo crime de desobediência é a Administração Pública, visando garantir a autoridade das ordens emitidas pelos servidores públicos e zelar pela probidade e respeitabilidade da função pública.

  • O tipo objetivo do crime envolve a desobediência a uma ordem legal emitida por funcionário público, sendo fundamental que a ordem seja clara, legal e devidamente comunicada ao destinatário para configurar o delito.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

6. Aspectos Processuais Penais

Trata-se de crime de ação penal pública incondicionada e passível de aplicação de diversos benefícios despenalizadores (transação penal, suspensão condicional do processo e acordo de não persecução penal).

A competência para processo e julgamento será da Justiça Federal quando a ordem descumprida for emanada de servidor público federal. Nos demais casos será da Justiça Estadual.


7. Princípio da Especialidade

No ordenamento jurídico brasileiro temos diversos crimes similares ao de desobediência previsto no Código Penal, mas que trazem especificidades e assim, com base no princípio da especialidade, afastarão a aplicação do crime comentado. Abaixo seguem algumas dessas situações.

7.1. Desobediência a decisão judicial sobre perda ou suspensão de direito - Art. 359. do Código Penal

O citado artigo tipifica a conduta de quem “Exercer função, atividade, direito, autoridade ou múnus, de que foi suspenso ou privado por decisão judicial” estabelecendo a pena de “detenção, de três meses a dois anos, ou multa”.

Percebe-se que a desobediência aqui é mais específica, trata-se do caso de quem desobedece a uma decisão judicial que proibiu ou suspendeu o exercício de função, atividade, direito, autoridade ou múnus. Não trata de desobedecer à ordem legal, mas sim à decisão judicial, da qual se pressupõe a devida intimação do destinatário. Ademais, o Supremo Tribunal Federal entende que a decisão descumprida dever ter sido proferida na esfera penal:

Crime de desobediência a decisão judicial sobre perda ou suspensão de direito. Atipicidade. Caracterização. Suposta desobediência a decisão de natureza civil. Proibição de atuar em nome de sociedade. Delito preordenado a reprimir efeitos extrapenais. Inteligência do art. 359. do Código Penal. Precedente. O crime definido no art. 359. do Código Penal pressupõe decisão judiciária de natureza penal, e não, civil. 17

Cite-se que Cezar Bitencourt18, na companhia de outros doutrinadores, entende que o crime do artigo 359 perdeu seu objeto material, pois fora concebido para sancionar o descumprimento às penas acessórias previstas na edição do Código Penal, as quais não foram mais previstas na Reforma Penal de 1984. Assim, restaria a possibilidade, ainda assim contestável, de configuração do crime quando do descumprimento dos efeitos extrapenais da sentença penal condenatória, previstos no artigo 92 do CP.

7.2. Ação Civil Pública – Art. 10. da Lei 7.347/1985

O artigo 10 da Lei 7.347/85 estabelece que “Constitui crime, punido com pena de reclusão de 1 (um) a 3 (três) anos, mais multa de 10 (dez) a 1.000 (mil) Obrigações Reajustáveis do Tesouro Nacional – ORTN, a recusa, o retardamento ou a omissão de dados técnicos indispensáveis à propositura da ação civil, quando requisitados pelo Ministério Público.”

Ou seja, pressupõe-se que o Ministério Público necessite de dados técnicos indispensáveis e então os requisite para determinada pessoa ou órgão. Tal requisição costumeiramente ocorrerá via ofício encaminhado, devendo serem adotadas as cautelas citadas no tópico 2.1.1 para que se possa suscitar a prática do crime.

Trata-se de crime doloso, logo deve ser restar demonstrado o intento efetivo em recusar, retardar ou omitir os dados técnicos. Ademais, deverá restar provada a indispensabilidade de tais dados à propositura da futura ação civil pública.

7.3. Desobediência praticada por prefeito - Decreto 201/1967

O artigo 1º, inc. XIV, do Decreto-lei 201/1967 estabelece que “São crimes de responsabilidade dos Prefeitos Municipais, sujeitos ao julgamento do Poder Judiciário, independentemente do pronunciamento da Câmara dos vereadores: (...) XIV – negar execução a lei federal, estadual ou municipal, ou deixar de cumprir ordem judicial, sem dar o motivo da recusa ou da impossibilidade, por escrito, à autoridade competente;”. A pena prevista é de detenção de 3 meses a 3 anos, conforme §1º do mesmo artigo.

Trata-se de crime com sujeito ativo próprio, somente podendo ser praticado por prefeito municipal. Quanto à negativa de execução das leis, há de se ter cautela quando estiver fundada em alegação de inconstitucionalidade, situação na qual podemos estar diante de excludente de ilicitude, quando tal alegação possuir fundamento razoável.

Tem-se a configuração do crime apenas nos casos em que o prefeito simplesmente se recusa a aplicar a legislação citada. Remete-se, no ponto, aos comentários acima sobre a conduta dolosa.

Ademais, é necessário que a ordem judicial decorra de atividade jurisdicional, não de atividade administrativa. Nesse sentido:

(....) CRIME DE DESOBEDIÊNCIA POR DESCUMPRIMENTO DE ORDEM JUDICIAL: NECESSIDADE DE QUE A DETERMINAÇÃO SEJA EMANADA DE AUTORIDADE JUDICIÁRIA NO ÂMBITO DE PROCEDIMENTO REVESTIDO DE NATUREZA JURISDICIONAL. - Não basta, para efeito de caracterização típica do delito definido no inciso XIV do art. 1º do Decreto-lei nº 201/67 - “deixar de cumprir ordem judicial” -, que exista determinação emanada de autoridade judiciária, pois se mostra igualmente necessário que o magistrado tenha proferido decisão em procedimento revestido de natureza jurisdicional, uma vez que a locução constitucional “causa” encerra conteúdo específico e possui sentido conceitual próprio. Precedentes. - A atividade desenvolvida pelo Presidente do Tribunal no processamento dos precatórios decorre do exercício, por ele, de função eminentemente administrativa (RTJ 161/796 - RTJ 173/958-960 - RTJ 181/772), não exercendo, em conseqüência, nesse estrito contexto procedimental, qualquer parcela de poder jurisdicional19.

7.4. Estatuto do Idoso – artigos 100 e 101

No Estatuto do Idoso – Lei 10.741/03 - há dois crimes específicos de desobediência:

Art. 100. Constitui crime punível com reclusão de 6 (seis) meses a 1 (um) ano e multa: (...) IV – deixar de cumprir, retardar ou frustrar, sem justo motivo, a execução de ordem judicial expedida na ação civil a que alude esta Lei.

Art. 101. Deixar de cumprir, retardar ou frustrar, sem justo motivo, a execução de ordem judicial expedida nas ações em que for parte ou interveniente o idoso: Pena – detenção de 6 (seis) meses a 1 (um) ano e multa.

Trata-se de crimes que visam assegurar o cumprimento de ordens judiciais sobre direitos dos idosos. Destaca-se que, além da conduta de deixar de cumprir, estão previstas as condutas de retardar ou frustrar a execução da ordem judicial. Assim, abarcam-se mais claramente as condutas correlatas à desobediência e que demonstram o intento de não acatar a ordem judicial. O retardo ao cumprimento abrange os casos de dilações indevidas no acatamento da ordem. Já a frustração da execução ocorre quando são adotadas outras condutas que impedem a execução, ou seja, o destinatário frustra a execução da ordem mediante realização de outro ato que impossibilita seu cumprimento.

7.5. Desobediência Eleitoral – artigo 347 do CE

O artigo 347 do Código Eleitoral dispõe que: Recusar alguém cumprimento ou obediência a diligências, ordens ou instruções da Justiça Eleitoral ou opor embaraços à sua execução: Pena - detenção de três meses a um ano e pagamento de 10 a 20 dias-multa.

Percebe-se que aqui a diferença principal reside no emissor da ordem, o qual, no caso do Código Eleitoral, deverá ser agente da Justiça Eleitoral, abarcando tanto o Juiz Eleitoral como os servidores de tal ramo da Justiça.

O tipo objetivo ainda prevê a conduta de “embaraçar”, que se trata, ao nosso ver, de uma forma de desobedecer, abarcando as condutas de criar obstáculos ou tenta obstruir as ordens oriundas da Justiça Eleitoral.

7.6. Contravenção Prevista no artigo 68 da LCP

O artigo 68 da LCP estabelece que constitui contravenção penal “recusar à autoridade, quando por esta, justificadamente solicitados ou exigidos, dados ou indicações concernentes à própria identidade, estado, profissão, domicílio e residência”. NUCCI20 refere que a citada contravenção possui aplicação subsidiária em relação ao crime de desobediência, pois este é infração mais grave e abarca a mesma situação.

Por outro lado, em consulta jurisprudencial, verifica-se que tal subsidiariedade não tem sido aplicada, prevalecendo, com base no princípio da especialidade, a aplicação da contravenção21:

(...)

5. A contravenção do art. 68. da LCP tipifica como ilegal a recusa no fornecimento de informações sobre sua qualificação ao policial, quando justificada tal solicitação (Art. 68. Recusar à autoridade, quando por esta, justificadamente solicitados ou exigidos, dados ou indicações concernentes à própria identidade, estado, profissão, domicílio e residência: Pena – multa, de duzentos mil réis a dois contos de réis.) O que se pune é a negativa em se identificar ante o pedido prévio e legítimo da autoridade competente. Ainda segundo a doutrina, despicienda a apresentação documental para a identificação solicitada pela autoridade, porquanto o núcleo do tipo cinge-se à negar à autoridade competente o fornecimento de “dados relativos à própria qualificação (elementos individualizadores, como estado civil, profissão, domicílio etc.) A conduta típica volta-se ao poder estatal de exigir do cidadão identificação, vale dizer, saber de quem se trata, para qualquer finalidade (...).”

6. Lado outro, deixar de portar os documentos não configura qualquer contravenção ou crime, bastando informar os dados solicitados para suprir o dever do cidadão para com a autoridade. (...)22

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Destaca-se que a contravenção não exige o porte de documentos, mas sim que sejam fornecidos os dados que permitam tal identificação. Logo, o simples não portar os documentos não configura a contravenção, conforme parte final do julgado citado.


8. Outros Casos Específicos

8.1. Vítima e Dever de Colaborar

Entende-se que a vítima possui o dever de colaborar com as investigações, devendo participar dos atos aos quais for intimada23 (comparecer no IML para realizar exame de corpo de delito; participar do ato de reconhecimento de pessoas; etc.). Poderá, assim, responder pela prática do crime de desobediência quando se negar a cooperar com as diligências correlatas à persecução penal. Durante a ação penal, caso não compareça na audiência de instrução, não responderá pelo crime de desobediência, pois há sanção específica prevista no CPP: a condução coercitiva.

Nessa linha a lição de Antonio Scarance Fernandes: “Pode a polícia, se a vítima não quiser ser submetida a exame de corpo de delito, instaurar inquérito policial por desobediência à ordem legal e conduzi-la para perícias externas de fácil realização (lesão corporal), não contudo para exame que implique ofensa à sua integridade, à sua intimidade”24. Merece destaque a parte final da citação, pois tal negativa em cooperar pode, conforme seu contexto, estar justificada, nos termos preconizados pela reforma efetuada pela Lei 14.245/21, indicando a necessidade de zelo pela integridade física e psicológica da vítima. Assim, há de se compatibilizar o dever da vítima de cooperação com a persecução penal com o respeito aos seus direitos fundamentais, cabendo a responsabilização pelo crime de desobediência apenas quando a recusa não implicar violação a tais direitos.

8.2. Direito ao Silêncio

O direito ao silêncio, bem como o direito de não se autoacusar, constitui alicerce do nosso sistema processual penal. Dessa forma, qualquer ordem que atinja tais direitos será considerada ilegal e não implicará crime de desobediência. Exemplos: indiciado/réu que não fornece padrão gráfico para comparação25; que não comparece no ato de interrogatório; pessoa que recusa fornecimento de documentos ou silencie em depoimento, sob justificativa que possa se autoacusar com tais atos.

8.3. Recusa à Identificação Criminal

Somente implicará responsabilização pelo crime de desobediência quando a identificação criminal for efetuada dentro das hipóteses legalmente previstas na Lei 12.037/09. Nos demais casos a recusa é lícita, pois a ordem emitida não será legal.

8.4. Recusa ao fornecimento de perfil genético

O artigo 9º-A da Lei 7.210/84 estabelece que “O condenado por crime doloso praticado com violência grave contra a pessoa, bem como por crime contra a vida, contra a liberdade sexual ou por crime sexual contra vulnerável, será submetido, obrigatoriamente, à identificação do perfil genético, mediante extração de DNA (ácido desoxirribonucleico), por técnica adequada e indolor, por ocasião do ingresso no estabelecimento prisional.” O Superior Tribunal de Justiça, ao analisar o dispositivo, concluiu que “O fornecimento de perfil genético, nos termos do art. 9º-A da Lei de Execução Penal, não constitui violação do princípio da vedação à autoincriminação, configurando falta grave a recusa.”26. Dessa forma, havendo a previsão de que a recusa constitui falta grave no âmbito da execução penal, não caberá a responsabilização pelo crime de desobediência.

8.5. Ordem de Parada a Veículo Emitida por Policial no exercício de atividade ostensiva de segurança pública

Configura o crime de desobediência, conforme decidido pelo Superior Tribunal de Justiça: “A desobediência à ordem legal de parada, emanada por agentes públicos em contexto de policiamento ostensivo, para a prevenção e repressão de crimes, constitui conduta penalmente típica, prevista no art. 330. do Código Penal Brasileiro.”27

8.6. Requisição Judicial de Nomeação de Defensor

Conforme precedente do Superior Tribunal de Justiça28: Não configura o crime de desobediência (art. 330. do CP) a conduta de Defensor Público Geral que deixa de atender à requisição judicial de nomeação de defensor público para atuar em determinada ação penal. De fato, a Carta Magna determina que: "Às Defensorias Públicas Estaduais são asseguradas autonomia funcional e administrativa e a iniciativa de sua proposta orçamentária dentro dos limites estabelecidos na lei de diretrizes orçamentárias e subordinação ao disposto no art. 99, § 2º" (art. 134, § 2º). Nesse contexto, a acusação sofrida por Defensor Público Geral, consistente em não designar um defensor para atuar em determinada ação penal, viola a autonomia da instituição. Isso porque, a autonomia administrativa e a independência funcional asseguradas constitucionalmente às defensorias públicas não permitem a ingerência do Poder Judiciário acerca da necessária opção de critérios de atuação por Defensor Público Geral e da independência da atividade da advocacia. Nessa moldura, o ato de não atendimento por parte de Defensor Público Geral de requisição emanada de juiz de direito para destacar um defensor para a ação penal que preside não se confunde com crime de desobediência por falta de cumprimento por autoridade pública de decisão legal ou judicial. Deixamos nossa crítica à conclusão, pois o fato de a Defensoria Pública possuir autonomia e independência funcional não afasta a possibilidade de responsabilização do Defensor Público pela prática do crime mencionado, na linha exposta no tópico 5.

8.7. Descumprimento a obrigações decorrentes de institutos despenalizadores

O descumprimento de obrigações previstas em transação penal, suspensão condicional do processo, acordo de não persecução penal, suspensão condicional da pena, possuem efeitos específicos previstos em cada um dos institutos, geralmente implicando revogação dos benefícios. Não configura, assim, crime de desobediência.

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Sobre o autor
Daniel Reschke

Delegado de Polícia Federal; foi Delegado de Polícia Civil no RS (2010-2014). Pós-graduado em Direito Público; Teoria e Filosofia do Direito; e Processo Penal e Direito Penal.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

RESCHKE, Daniel. Comentários ao crime de desobediência do Código Penal brasileiro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 30, n. 8054, 20 jul. 2025. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/114929. Acesso em: 5 dez. 2025.

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