Capa da publicação Fato ou boato? O papel legítimo da Justiça Eleitoral
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Fato ou boato: a legitimidade da Justiça Eleitoral no enfrentamento da desinformação

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Como o Judiciário pode reagir à desinformação política sem comprometer a democracia? O artigo analisa teorias da verdade e afirma a legitimidade judicial contra boatos eleitorais.

Resumo: O presente artigo pretende examinar a atual questão da desinformação política e o risco à democracia intrínsecos na expressão Fato ou Boato extraída de uma atividade institucional do Tribunal Superior Eleitoral. O TSE objetiva enfrentar as consequências negativas provocadas pela desinformação política à democracia. Neste sentido, serão examinados os conceitos de Fato, Ficção, Inverdade, Teoria e de Verdade e, em atenção à epistemologia, serão apresentadas três Teorias da Verdade remetendo-se à Teoria Pragmatista como aquela utilizada pelos regimes autoritários ao visarem, em última instância, a produção da verdade, segundo critério de utilidade e poder, em detrimento da realidade fática e normativa. Por fim, será afirmada a legitimidade do Poder Judiciário para, dentro do escopo pragmático e democrático, enfrentar o próprio pragmatismo-desinformativo e, desta feita, fazer prevalecer judicialmente o Fato sobre o Boato, bem como a Democracia sobre o autoritarismo.

Palavras-chave: Fato ou Boato; Teorias da Verdade; Democracia; Pragmatismo; Reação Judicial.

Sumário: 1. Introdução. 2. A questão fática. 3. Teorias da verdade e seu diálogo com a política. 3.1. A teoria da correspondência. 3.2. Teoria da coerência. 3.3. Teoria pragmatista. 4. Considerações finais.


1. INTRODUÇÃO

Vivemos um tempo de grande insensibilidade, mesmo por parte de alguns políticos e até atores jurídicos. Assim também o adulto comum cada vez mais tem dificuldade em separar a realidade da ficção, distinguir as possibilidades do real e promessas da ilusão ficcional. A internet e, nela, as redes sociais, também alteraram e continuam a alterar as possibilidades do real (há mais mundos) e a interação com os outros. Como sempre com a tecnologia, para o bem e para o mal, e exigindo novas reflexões éticas...

(Paulo Ferreira Cunha)

Atualmente, as pessoas responsáveis para com o regime democrático atentam para a questão política da prevalência dos Fatos sobre os Boatos 2 , pois estes últimos circulam, intensivamente, na sociedade causando e se correlacionando com a violência, a polarização, com o ataque à democracia e com a produção de crises políticas.

O estudo das condições de possibilidade dos saberes teóricos e práticos se espraiam a partir do pensamento filosófico para recortes de cada ciência e arte. A filosofia ou, etimologicamente, o amor ao conhecimento se debruça sobre o tema da verdade e dos juízos, das ficções e das opiniões, formulando conceitos que oferecem categorias para o conhecimento e para a compreensão, objetos de estudo da epistemologia e da hermenêutica filosófica3, respectivamente.

Diga-se em poucas palavras, a compreensão antecede o conhecimento porque postula uma validação ontológica distinta, como um existencial do ser humano, modo de ser inacessível metodicamente. Enquanto o conhecimento visa o resultado verdadeiro a ser adquirido mediante o percurso de um método confiável que se oponha à crença.

O aceso à verdade se inicia com uma indagação consigo (voz da consciência) ou em diálogo interrelacional (intersubjetivo): qual seria o caminho para se chegar a um determinado lugar ou uma pergunta sobre determinada pessoa ou a formulação de uma dúvida sobre um remédio que reduza a dor, mesmo a indicação de um filme que alguém pretenda assistir, desde que seja preto e branco e não colorido, exemplificadamente. Em todas as perguntas retro formuladas o indagador espera uma resposta ou verdadeira.

Ademais, na pergunta empreendida por cada pessoa já há uma parcela da verdade a ser encontrada na resposta de seu interlocutor, ou melhor, na indagação há o rastro que direciona o acesso à verdade que estará, necessariamente, contida na resposta racional, pois ninguém ao questionar pretende ser desinformado e, ao cabo, ser direcionado pela consciência ou por outra pessoa para um ônibus errado e chegar num lugar qualquer e não no destino pretendido, andar na contramão e sofrer um acidente ou comprar um remédio para o coração que tenha serventia para os ossos.

Deste escorço inicial pode-se concluir: o interesse pela verdade acompanha os seres humanos e isto ocorre desde o momento em que o mundo foi percebido pela filosofia.

Entrementes, a questão não é simples na ordem prática, sendo esta última um campo dentro do qual as ficções4, mitos5 6 e inverdades7 (error communis) se tornam realidade em detrimento do fato8.

Empiricamente se constata que as pessoas se colocam em risco e, mesmo alguns governos degradados arriscam a sociedade ao substituírem teorias científicas por opiniões (doxa). Isso acontece porque no mundo da prática o fenômeno da aceitação desmedida da desinformação aponta para uma questão que envolve a redução da capacidade (racional) de julgar.

Com efeito, constata-se um eclipse individual e coletivo da razão 9, o que se deve à proliferação da desinformação, uma vez que esta, circularmente, atua desvirtuando o pensamento racional num ciclo de rápida autoalimentação onde causas e efeitos se tornam dogmáticos e induzem à produção de polarização cognitiva e compreensiva. A situação de desordem combina com o fechamento dialógico e motiva, tal como em caixas de ressonância, o aumento e a intensidade da desinformação.

Efeito manifesto da desinformação consiste no aparecimento de grupos uniformes que pelo uso de ferramentas tecnológicas tendem a obter pela repetição a vigência da fictio sobre a verdade e do boato sobre o factum.

Assinale-se que a desinformação se torna arché de crises políticas, nascedouro de rupturas do regime democrático. Deve-se registrar que a causação de crise política possui uma aresta vantajosa de oportunidades para seus patrocinadores que surfam no ritmo de seus efeitos, sendo que na atmosfera eleitoral a crise desinformativa converge, ilegitimamente, para a tomada pragmática do poder ou sua manutenção, mesmo mantida a coloração político-democrática.

Não parece haver dúvida, a desinformação alcança amplitude sistêmica, atualmente. Um fenômeno antigo que foi descrito por Platão na Alegoria da Caverna onde prisioneiros, gnosiologicamente incapazes (quanto à capacidade de conhecer), são manipulados, ou seja, impedidos de acesso aos fatos iluminados no mundo externo. Nessa alegoria platônica de muitas e possíveis interpretações o manipulador pode ser identificado com o sofista, pessoa que constrói argumentos sem preocupação com a verdade ou falsidade10.

No tempo atual, durante as crises motivadas pela desinformação, parcela dos cidadãos da pólis não se reconhecem no fundo da caverna mesmo que refutando proposições apodíticas e juízos a priori necessários e universais, sem medo de erro, asseveram contra a ciência em voz alta que a Terra é redondamente plana! E, neste plano onde a Terra não é plana, a desinformação avança lesionando o livre exercício da cidadania e os direitos fundamentais políticos ao impedir o desenvolvimento pelo Estado de uma das mais importantes políticas públicas, consistente na garantia do cidadão ao exercício de seu direito livre de voto, ou seja, falseadores da verdade objetivam praticar, em político abuso compreensivo e epistemológico, o retrocesso da democracia e, tendencialmente, o apogeu do autoritarismo opinativo. Para tal, tem-se o convívio desavergonhado da desinformação política com a via eleitoral democrática11. Em outras palavras, aproveita-se do próprio regime democrático e o direito de livre manifestação, garantido constitucionalmente, para enfraquecer a democracia em proveito de utilidades singularizadas.

Por sua vez, a política e o processo eleitoral no Brasil não convivem com o estado do vale-tudo, nem são disfuncionais, mas se erguem a partir da norma constitucional12 num conjunto de órgãos da Justiça Eleitoral13 e pelo Supremo Tribunal Federal14. Deste modo, há um desenho institucional dotado de competência jurisdicional para o trato de questões fáticas que versam sobre a desinformação, de sorte que as eleições sejam realizadas segundo um devido processo legal eleitoral.


2. A QUESTÃO FÁTICA

Ao se procurar discernir o Fato do Boato há pelo menos uma pergunta aberta: o que é um fato em isto é um fato?. Em resposta deve-se deixar, fenomenicamente, o factum falar e, ao ouvi-lo, será possível constatar que o fato induz uma ideia da inquestionabilidade, ausência de dúvida, um momento de chegada seguro e uma certeza em oposição à ficção, sendo que esta “em geral não passa de um discurso ou um pensamento do faz-de-conta, do como se15.

Portanto, emprega-se, usualmente, a expressão fato numa referência verbal do que é a verdade e não um faz-de-conta. Veja-se abaixo diversos exemplos de uso vernacular de fato:

Fato científico: o que se enuncia em termos científicos em seguida à observação especializada e competente de um mesmo fenômeno. Fato consumado: a) aquele cujo processo já esgotou as diferentes fases de sua verificação, ou que certamente as esgotará em breve, alcançando, desse modo, os resultados pretendidos; (...). Fato jurídico, JUR: acontecimento capaz de criar, transformar, modificar ou extinguir direitos e que pode ser voluntário (o próprio ato jurídico, tido como ato contrário ao direito ou de prática proibida por lei) ou involuntário (que independe da vontade humana, como o nascimento, a morte, a aluvião etc.). Fato linguístico, LING: ato de criação individual em que o pensamento se exterioriza por meio de uma linguagem articulada e organizada.16 (grifo nosso)

Em todos os usos acima, a essência do fato consiste em presunção de intemporalidade e limitação espacial do acontecimento, procura-se cientificidade, imobilidade em ato, tal como se o fato fosse um dado invariável, ou seja, um acontecimento ou um representante mensurável, organizado e objetivamente isento (de subjetividade) de opiniões, sendo passível de registro para ser verificável, repetidamente, por todos aqueles que anseiem sua confirmação futura.

Por outro lado, o simples emprego da palavra fato, inclusive no Direito, não garante sua inquestionabilidade. Mais uma vez com os gregos, a lição o homem é a medida de todas as coisas facilita a aceitação encontrada desde as assembleias que a realidade pode ser compreendida naquilo em que o ser humano erige como mundo para atender seus propósitos. Em palavras fortes, não há, para quem é sujeito-de-medida, interesse na descoberta da verdade fática objetiva.

Desse modo, de bom tom sublinhar que o querer subjetivo é insuficiente para por si só designar um fato, porque o simples dizer isto é um fato encontra legitimidade somente após a realidade pretendida ser colocada à prova em contraditório ou no caso da ciência ser comprovado à exaustão. Logo, há um percurso relacional entre a linguagem que descreve o fato e a verdade fática, ou seja, um caminho até o juízo de fato17 ser considerado verdadeiro.

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O tema é deveras complexo e de interesse dos juristas que encontram o fundamento da verdade na morada da filosofia, particularmente para aqueles que procuram o saber através das nomeadas Teorias da Verdade.

Dito isso, pretende-se apresentar três Teorias18 que irão incutir a dúvida e em seguida abrir a possibilidade de respostas sobre o tema em análise do Fato ou Boato, verdade ou inverdade19. Alerta-se que o percurso é muito longo e não será alcançado dentro do escopo limitado deste artigo, mas será suficiente mostrar que não há uma única teoria sobre a verdade, nem somente três sobre as quais a filosofia se debruça, a verdade não é tema pacificado, sendo a pacificação uma tarefa do direito, da prudência, ou melhor, da jurisprudência.


3. TEORIAS DA VERDADE E SEU DIÁLOGO COM A POLÍTICA

O fato é que não existe uma teoria geral e completa da verdade. Sendo um dos mais controversos conceitos filosóficos, a verdade ora tem sido considerada absoluta, ora relativa, ora apenas um ideal a ser alcançado, ora um conceito simplesmente dispensável – quando não decretada a sua inexistência (“não há verdade”). (grifo nosso)

(Orlando Tambosi)

Optamos iniciar a partir do ser-da-própria-teoria, uma Teoria da Teoria cujas compreensões de falsa e errônea emolduram significados distintos que são importantes até para os unificar, conforme a seguir:

Uma teoria claramente inverídica falsa ou errônea. Falsa, se falsifica, mascara o real: normalmente ideologicamente. Errônea, se comete algum vício lógico, se é contraditória, ou se não tem correspondência evidente com os fenômenos sobre que versa. Grossíssimo modo, o erro está ao nível da mais simples “captação a realidade; a falsidade, no plano da representação, ao nível em que a questão da verdade se coloca.20 (grifo nosso)

O falso e o errado de uma Teoria estão do mesmo lado, oposto à verdade, mas se distinguem no sentido do falso ser um mascaramento do real e concreto e o erro um vício lógico, aparentando se mostrar na linguagem. Apesar da distinção, não trataremos com diferença a falsidade e o erro, haja vista que a desinformação política se utiliza tanto da falsidade, quanto do erro para provocar a turbação no sistema democrático.

Com efeito, a ação de desinformar ocorre mediante a disseminação de posições jurídicas contraditórias, médicas falsas e políticas contorcidas (falsas e erradas) na forma de uma teoria21, porém se resumem apenas a um produto de simples subjetividade opinativa.

Discorrer sobre Teorias da verdade resulta, prima facie, na aceitação de sua existência, não se desenvolveria uma teoria sob hipótese inversa, pois as teorias não apresentariam serventia para aqueles que negassem aquilo que pretendem demonstrar.

As teorias são importantes na oposição à aesthesis 22 e não à práxis, sendo basilar assentar que o conhecimento teórico não descreve uma captação ingênua da realidade como a doxa ou resultado da aesthesis. A teoria se propõe a apresentar uma hipótese plausível e comprovada. Então uma teoria afirmaria a verdade? Não. As teorias consistem numa atitude de criação a partir da compreensão da realidade, não sendo a própria verdade, pois quando se está perante a verdade, desnecessário teorizar porque alcançado o saber, mas sempre se deve recordar a indagação “O que é a verdade?” 23

A resposta não é do simples assim, pois aquilo que é não nos diz como é e vice-versa. Além disso, assertivas do tipo “Não quero que os impostos sirvam para financiar filósofos, sociólogos, antropologia, vai trabalhar e pagar por isso”, e outros juízos listados pelo filósofo brasileiro Marco Casanova24 são posições unilaterais particulares que almejam alimentar teorias bizarras pelos defensores do vai dizer que você não sabia?, por isso estão longe da verdade.

As Teorias da Verdade são empregadas subliminarmente na esfera da prática política. Para melhor compreensão serão apresentadas três teorias tradicionais25 sob o enfoque que visa oferecer fundamentação filosófica à reação judicial para que seja possível o enfrentamento do autoritarismo desinformativo, consubstanciado no emprego corrente de boatos, do negacionismo e de inverdades. É o que a trataremos a seguir para ao final concluirmos que a Teoria Pragmática adere ao autoritarismo desinformativo de natureza política.

Entretanto, antes de seguir, é importante memorizar a notação: X é um juízo ou uma proposição, declaração ou um pensamento e sse (se e somente se).

3.1. A Teoria da Correspondência (ou da adequação e/ou da conformação)

Segundo a Teoria da Correspondência X é verdadeiro sse X corresponde a um fato. A Teoria da Adequação ou da Correspondência se escora nas lições de Aristóteles na obra Metafísica: “dizer do que é que não é, ou do que não é, que é, é falso, enquanto “dizer do é que é, ou do que não é que não é, é verdadeiro”.26

A Teoria da Correspondência para fatos positivos do dizer do é que é, ser verdadeiro não apresenta problemas maiores. A declaração há uma mesa na sala corresponde a um fato de uma mesa na sala.

Diversamente, para um fato de não há uma mesa na sala nem sempre corresponde a um fato sem questionamento. No fato negativo (não há uma mesa na sala) o dito pela linguagem pode ser problematizado, pois onde não há mesa pode-se estar dizendo que há sofá ou bancos e jacaré ou emas.

Assim, aqueles comprometidos com a disseminação de boatos e não de fatos encontram milhares de cavernas onde é possível projetar no fundo de suas paredes incontáveis boatos. Nestes termos, dizer do que não é que não é não pode ser afirmado com igual legitimidade que dizer do é que é.

Portanto, a Teoria da Correspondência desatende plenamente a verdade fática ao abrir um campo de questionamento entre enunciado e o fato. Isto porque esta Teoria trata de coisas heterogêneas estando “de um lado algo que é linguístico – uma expressão, um enunciado, uma frase etc. – e de outro lado algo que não é linguístico – o fato –, estamos comparando coisas heterogêneas.” 27

A falha da heterogeneidade da Teoria Correspondentista entrega a verdade ao excesso de subjetividade28, terreno propício para ser ocupado pelo discurso do boato e negacionista.

3.2. Teoria da Coerência (ou da não contradição)

A Teoria da Coerência pretende solucionar a falha da heterogeneidade acima relatada, para isso sua notação afirma que X é verdadeiro sse X é um membro de um conjunto de crenças coerente internamente 29. A comparação de um X enunciado com um conjunto de crenças também de ordem enunciativa edifica segundo esta Teoria um sistema racionalmente coerente:

Assim, um sistema de crenças é dito coerente quando seus elementos são consistentes uns com os outros em uma rede de crenças, e quando eles estão dispostos de certa maneira que detém um tipo específico de simplicidade capaz de provocar a intelecção racional normal. 30

Segundo essa Teoria a verdade pertence a um sistema de crenças, narrativas e enunciados harmoniosos e estruturados, parecendo ter alcançado sucesso ao garantir o conhecimento da verdade desde que narrada racionalmente num sistema sem contradição.

Entretanto, contra o coerentismo da verdade são lançadas críticas, a principal delas afirma que nem todas as pessoas se posicionam ao lado da verdade somente pela coerência do sistema que a abriga, ou seja, essa crítica procura chamar atenção para os conceitos de coerência e verdade que não se ajustam, universalmente.

Este entendimento abre a possibilidade ao ceticismo, além do relativismo. O ceticismo e o relativismo fulminam a garantia de acesso à verdade e propiciam o terreno para ser ocupado pelas plantações de inverdades, pois onde se nega desde o início a possibilidade do conhecimento verdadeiro floresce a desinformação.

Uma vez fincada a implausibilidade da Teoria da Coerência nos termos expostos, principalmente devido à questão do relativismo e do ceticismo, surge a Teoria Pragmatista da Verdade que será analisada de modo mais detalhado porque além de produzir a verdade, apresenta-se como aliada de regimes totalitários e enfrentá-la exige do Poder Judiciário uma atividade legal e jurisdicional pragmática na defesa da democracia.

3.3. Teoria Pragmatista (ou da utilidade)

A Teoria Pragmática tem seu nascedouro nos Estados Unidos. O aspecto predominante do pragmatismo se remata em uma regra de conduta segundo a qual se deve agir sem preocupação com a coerência e a correspondência. Assim, seguindo a lição de William James:

Afaste-se da abstração e da insuficiência, de soluções verbais, de más razões a priori, de princípios fixos, sistemas fechados e pretensos absolutos e origens. Vire-se para a concretude e adequação, para os fatos, para a ação e para o poder. Isso significa que o temperamento empirista reina e o temperamento racionalista é sinceramente abandonado. Significa ar livre e possibilidades da natureza, contra o dogma, a artificialidade e a pretensão da verdade final.31

O pragmatismo leva em conta o empirismo da vida em sentido amplo, incluindo a experiência de um tempo histórico e sua verdade variável. Aquele que pretender acessar à verdade deve se voltar para a experiência e observar a conduta das pessoas percebidas como razoáveis e pela ação dispor-se à verdade fática e adequada a partir de um consenso pragmático que se desenvolve na direção da utilidade.

Repetidas ações consensualizadas e verbalizadas animam a verdade-utilidade estabelecida em consenso. Veja-se o magistério de Ghiraldelli: “Uma frase que está mais próxima do consenso nos leva a colocar as fichas nela; mas uma frase que está mais distante do consenso nos faz, de modo a seguir o que é mais útil, a nos afastar dela.”32

Para a obtenção do consenso pragmático as pessoas dialogam ou, de outra forma, no seu lugar utilizam o poder. Nestes termos, o surgimento de problemas não sanáveis pelo consenso parecem motivam uma nova perspectiva que sustenta a verdade na noção de poder.

Portanto, a ação pragmática pode ser vista em níveis de prevalência do poder ou do consenso, o primeiro denota um pragmatismo radical e o último um pragmatismo que atenta para ao prevalência do diálogo. O exercício do poder de forma pragmática radical atribui unilateralidade à verdade, enquanto o de consenso a verdade se sustenta n compreensão dialógica secundada pelo poder.

Nos estados democráticos o estabelecimento de política pública após deliberação congressual diz com o ser pragmático-dialógico, mesmo que se apresente necessário agir com o emprego do monopólio legítimo da força em face daqueles que se insurgirem contra a lei, impedindo a execução prática da lei.

Noutro lado, em regimes autoritários o pragmatismo radical esquece o sujeito, os direitos fundamentais, a dialogicidade civilizatória e a ordem jurídica em nome de verdades fincadas pelas consequências úteis a serem alcançadas em nome da verdade, sendo forçoso reconhecer a caracterização de autoridade-autoritária como aquela que se conduz num “falar de uma forma e agir de outra”33, mormente na esfera política quando o processo eleitoral se encontrar tomado pelo “cinismo”34, inclusive por parcela dos cidadãos.

No exacerbamento do pragmatismo a razão sofre seu momento de derrocada, no lugar da verdade postula a sabedoria da multidão35 e, uma vez alcançado o estado de confusão, parcela da sociedade perde em grande medida a autonomia mediana necessária para o conhecimento e compreensão da realidade, não havendo mais pensamento reflexivo e crítico, restando o pathos da turba, condição para o já mencionado fenômeno da polarização política afetar, em ascendente exponencial, a cognição da sociedade civil e “as instituições governamentais, incluindo júris, legislaturas, tribunais e comissões reguladoras” 36.

Não é apenas isto, a capacidade de observar o mundo se desvanece, um caminhão que transporta alimentos pode ser percebido como um carregamento para alimentar insurrecionados e a coisa em si incognoscível surge a olho nu perambulando, sendo tocada e experimentada no seio da Pólis, nesse sentido mostra-se pertinente o ensinamento a seguir reproduzido:

Entre um célebre matemático e seu sapateiro pode existir um abismo sob o aspecto intelectual, mas do ponto de vista do caráter e das crenças a diferença é em geral nula ou diminuta”. (...) Na alma coletiva apagam-se as aptidões individuais dos homens e consequentemente sua individualidade. O heterogêneo perde-se no homogêneo e as qualidades inconscientes dominam.37 (grifo nosso)

Os acontecimentos se realizam desta maneira porque as relações sociais constituídas pela diferença são agredidas pelo enfurecido pragmatismo e, porquanto calcado na experiência de grupos homogêneos, a violação do direito se normaliza.38 Por tais razões o pragmatismo chamou atenção de um grupo de intelectuais simpatizantes do nazismo39.

O simples diálogo democrático não muda as mentes dos que se radicalizaram “falta-lhes uma âncora moral”40 para ouvir e se dispor à mudança de posição. Portanto, não será a argumentação filosófica, metafísica ou ontológica que irá alterar a realidade, o modo de ser pragmático é indiferente ao pensamento abstrato, mas o exercício legítimo da força dentro do direito e fundamentado em decisões judiciais.

Visto desta forma, a Teoria Pragmática da Verdade apresenta, diferente das duas outras mencionadas alhures, evidente risco à democracia, legitimando a tutela jurisdicional segundo o critério pragmático do que funciona 41, ou da máxima efetividade na garantia do direito difuso à democracia, sendo “uma função apropriada dos Tribunais a manutenção em funcionamento do governo democrático, para garantir que os canais de participação e comunicação política permaneçam abertos”,42 inclusive em situações extremas43.

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Sobre o autor
Alfredo Canellas Guilherme da Silva

Alfredo Canellas Guilherme da Silva. Pós-doutor em Direito – UERJ. Doutor em Filosofia - UERJ. Mestre em Direito - UGF/RJ. Especialista em Direito - UNESA/RJ. Extensão Universitária em Direito Europeu - Universidade de Burgos (UBA)/Espanha. Bacharel em Filosofia - UERJ. Bacharel em Direito - UVA/RJ. Grupo de pesquisa: Hermenêutica, Direitos Humanos e Dignidade da Pessoa Humana – UERJ. CV: http://lattes.cnpq.br/9610637821059609 . E-mail: [email protected]

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Alfredo Canellas Guilherme. Fato ou boato: a legitimidade da Justiça Eleitoral no enfrentamento da desinformação. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 30, n. 8058, 24 jul. 2025. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/114976. Acesso em: 5 dez. 2025.

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