Resumo: A edição da Portaria Normativa AGU nº 186/2025 atualizou os parâmetros jurídicos para a celebração de acordos de não persecução civil no âmbito da Lei nº 8.429/1992, à luz das inovações introduzidas pela Lei nº 14.230/2021. Este artigo analisa criticamente as principais mudanças normativas introduzidas, com base nos entendimentos dos Tribunais Superiores e nos princípios da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB). A pesquisa conclui que a portaria representa um avanço institucional na direção da racionalidade, proporcionalidade e eficiência da atuação da advocacia pública federal no enfrentamento à improbidade administrativa.
Palavras-chave: Acordo de Não Persecução Civil. Improbidade Administrativa. Portaria AGU nº 186/2025. LINDB. Lei nº 14.230/2021.
Sumário: 1. Introdução. 2. A evolução normativa do ANPC no âmbito da AGU. 3. As principais mudanças introduzidas pela Portaria Normativa AGU nº 186/2025. 4. O ANPC à luz da jurisprudência dos Tribunais Superiores. 6. A LINDB como parâmetro de racionalidade administrativa. 7.Conclusão. Referências.
1. Introdução
A reforma da Lei de Improbidade Administrativa, promovida pela Lei nº 14.230, de 25 de outubro de 2021, marcou uma inflexão relevante na abordagem sancionatória do Estado frente aos atos de improbidade.
Entre as diversas inovações introduzidas, destaca-se a possibilidade de celebração de Acordos de Não Persecução Civil (ANPCs) como instrumentos de solução consensual de conflitos envolvendo a tutela do patrimônio público e da moralidade administrativa.
Nesse contexto, a Advocacia-Geral da União (AGU), no exercício de seu papel normativo e orientador da advocacia pública federal, editou a Portaria Normativa nº 186, de 25 de julho de 2025, com o objetivo de atualizar e disciplinar os requisitos, procedimentos e limites para a celebração de ANPCs no âmbito da Procuradoria-Geral da União (PGU) e da Procuradoria-Geral Federal (PGF).
A nova normativa revogou a Portaria AGU nº 18/2021, incorporando elementos trazidos pela nova legislação, bem como os entendimentos firmados pelos Tribunais Superiores, especialmente no julgamento das Ações Diretas de Inconstitucionalidade nºs 7.042 e 7.043.
A presente pesquisa tem por objetivo analisar criticamente as principais mudanças introduzidas pela Portaria AGU nº 186/2025, tomando como marcos interpretativos a Lei nº 14.230/2021, a jurisprudência recente do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça, bem como os princípios e diretrizes previstos na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB).
Busca-se compreender de que modo a regulamentação infralegal da AGU contribui para a consolidação de um modelo mais racional, eficiente e proporcional de enfrentamento da improbidade administrativa, alinhado aos valores do Estado Democrático de Direito.
2. A evolução normativa do ANPC no âmbito da AGU
A inserção expressa do ANPC na Lei de Improbidade Administrativa, por meio do art. 17-B, representou uma tentativa do legislador de incorporar à seara da tutela do patrimônio público os avanços obtidos em outras esferas da responsabilização estatal, como os acordos de não persecução penal e os acordos de leniência.
Ao prever a possibilidade de resolução consensual de conflitos mediante obrigações de ressarcimento, cessação de conduta e, eventualmente, aplicação de sanções, o instituto do ANPC passou a ocupar papel central na política pública de integridade e responsabilização.
Antes da edição da nova portaria, a AGU já havia regulamentado a matéria por meio da Portaria Normativa AGU nº 18/2021, publicada em consonância com a redação original do art. 17. da LIA e em um momento de transição normativa.
Contudo, a promulgação da Lei nº 14.230/2021 e a posterior sedimentação da sua constitucionalidade pelo Supremo Tribunal Federal demandaram a revisão das diretrizes anteriormente estabelecidas.
Nesse cenário, a Portaria AGU nº 186/2025 surge como instrumento de atualização e conformação da atuação da advocacia pública à nova realidade legal e jurisprudencial. Entre os pontos mais relevantes da nova disciplina normativa, destacam-se: a possibilidade de celebração de acordos com caráter exclusivamente reparatório, sem necessidade de imposição de sanções; a flexibilização da exigência de colaboração ampla, que passa a ser facultativa; a obrigatoriedade da homologação judicial do acordo em qualquer fase, inclusive após o trânsito em julgado; e o reforço das garantias procedimentais, com regras claras sobre confidencialidade, impedimentos e consequências do descumprimento.
A nova portaria também se mostra sensível ao princípio da eficiência administrativa ao permitir maior discricionariedade na avaliação da conveniência e oportunidade do acordo, desde que fundamentada no interesse público. Trata-se de mudança que favorece soluções mais céleres, seguras e proporcionais, evitando o custo elevado de litígios longos e muitas vezes infrutíferos.
3. As principais mudanças introduzidas pela Portaria Normativa AGU nº 186/2025
A Portaria AGU nº 186/2025 introduz um conjunto de inovações normativas que refletem não apenas a necessidade de adaptação ao novo regime jurídico da improbidade administrativa instituído pela Lei nº 14.230/2021, mas também um amadurecimento institucional quanto ao uso de instrumentos de consensualidade na atuação da advocacia pública.
Uma das alterações mais significativas diz respeito à desvinculação do acordo de sanções obrigatórias. Sob a égide da Portaria AGU nº 18/2021, havia a exigência de que o ANPC previsse ao menos uma das sanções estabelecidas no art. 12 da LIA. A nova portaria rompe com essa lógica, admitindo expressamente que o acordo possa ter natureza exclusivamente reparatória, desde que assegurado o integral ressarcimento do dano e demonstrada a adequação da solução ao interesse público.
Outro ponto de destaque é a transformação da colaboração ampla em cláusula facultativa. Antes considerada uma exigência em muitos casos, a colaboração passa a ser apenas uma das medidas possíveis a serem negociadas, conforme o contexto do caso concreto.
A nova regulamentação também impõe a homologação judicial obrigatória em qualquer fase, o que representa um avanço na perspectiva da segurança jurídica e da fiscalização judicial dos atos da Administração.
Quanto à estrutura obrigatória do ANPC, a Portaria nº 186/2025 reafirma o dever de incluir cláusulas sobre o ressarcimento integral, a cessação da conduta (quando for o caso), as condições de pagamento e o regime de sanções pelo descumprimento. Também amplia o rol de cláusulas facultativas, permitindo a exigência de obrigações funcionais, programas de integridade, compliance e garantias reais.
Em caso de descumprimento, a portaria aumenta o prazo de vedação à celebração de novo acordo para cinco anos e fixa parâmetros objetivos para multas, variando de 5% a 20% do valor da sanção prevista na LIA. A natureza executiva do acordo também é reforçada, e prevê-se monitoramento sistemático de seu cumprimento.
4. O ANPC à luz da jurisprudência dos Tribunais Superiores
A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça tem conferido respaldo progressivo à consensualidade como meio legítimo de tutela do patrimônio público. No julgamento das ADIs 7.042 e 7.043, o STF reconheceu a constitucionalidade do ANPC previsto no art. 17-B da LIA e estabeleceu que sua celebração deve observar os princípios da proporcionalidade, da eficiência e do interesse público qualificado.
Além disso, o STF reiterou que apenas o dolo específico pode configurar ato de improbidade administrativa, afastando a possibilidade de responsabilização por culpa. Essa interpretação repercute diretamente na admissibilidade dos ANPCs, pois exige uma análise robusta dos elementos subjetivos antes de eventual persecução judicial, tornando o acordo uma via legítima de composição.
A exigência de homologação judicial em qualquer fase processual, agora prevista na Portaria AGU nº 186/2025, também se harmoniza com o entendimento do STF de que o Judiciário não deve se limitar à chancela formal do acordo, mas avaliar sua legalidade e adequação ao caso concreto.
5. A LINDB como parâmetro de racionalidade administrativa
A Portaria AGU nº 186/2025 incorpora de modo explícito os valores e diretrizes trazidos pela LINDB, em especial os dispostos nos arts. 20. a 22, que exigem da Administração Pública decisões motivadas, proporcionais e fundamentadas em análise contextualizada dos fatos e consequências.
O art. 20. da LINDB impõe que os agentes públicos considerem as consequências práticas de suas decisões e os obstáculos reais enfrentados na gestão. A portaria se alinha a esse dispositivo ao autorizar soluções reparatórias sem imposição de sanções punitivas, quando estas se revelarem excessivas ou contraproducentes.
O art. 21. reforça a necessidade de proporcionalidade, ponderação de valores e avaliação do interesse público na produção dos atos administrativos. A Portaria nº 186/2025 responde a esse comando ao prever expressamente que a celebração do ANPC exige juízo de conveniência e oportunidade fundado em critérios objetivos.
O art. 22. é igualmente respeitado na medida em que exige a demonstração de dolo ou erro grosseiro para fins de responsabilização, o que encontra eco nas cláusulas da portaria que vedam a celebração do acordo em casos em que não se verificam elementos mínimos de materialidade e culpabilidade.
A Portaria também dá atenção à previsibilidade e segurança jurídica, ao limitar o uso de documentos apresentados durante as tratativas quando o acordo não for celebrado, e ao prever acompanhamento específico do cumprimento das obrigações pactuadas — práticas em conformidade com a racionalidade decisória prevista na LINDB.
6. Conclusão
A edição da Portaria Normativa AGU nº 186/2025 representa um avanço relevante na consolidação de uma política pública de consensualidade administrativa no tratamento de atos de improbidade. Ao revogar a Portaria nº 18/2021 e incorporar as inovações da Lei nº 14.230/2021, a nova normativa assume postura compatível com os atuais paradigmas da responsabilização estatal, privilegiando a eficiência, a proporcionalidade e a reparação efetiva dos danos ao erário.
Com base na jurisprudência dos Tribunais Superiores e nas diretrizes da LINDB, a nova portaria oferece uma moldura normativa segura e moderna para a atuação da advocacia pública federal, reduzindo a litigiosidade, promovendo soluções céleres e valorizando a boa-fé nas relações entre Estado e administrados.
A normatização do ANPC sob a égide da Portaria AGU nº 186/2025 reafirma, por fim, o papel da AGU como agente estruturante do Estado brasileiro, irradiando boas práticas, promovendo a coerência interpretativa e fortalecendo os mecanismos de integridade e governança pública.
Referências
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 5 out. 1988.
BRASIL. Lei nº 8.429, de 2 de junho de 1992. Dispõe sobre as sanções aplicáveis aos agentes públicos nos casos de enriquecimento ilícito no exercício de mandato, cargo, emprego ou função na administração pública. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 3 jun. 1992.
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BRASIL. Lei nº 13.655, de 25 de abril de 2018. Acrescenta dispositivos à Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro sobre segurança jurídica e eficiência na criação e aplicação do direito público. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 26 abr. 2018.
BRASIL. Lei nº 14.230, de 25 de outubro de 2021. Altera a Lei nº 8.429, de 2 de junho de 1992, que dispõe sobre as sanções aplicáveis aos agentes públicos nos casos de enriquecimento ilícito no exercício de mandato, cargo, emprego ou função na administração pública, e a Lei nº 13.019, de 31 de julho de 2014. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 26 out. 2021.
BRASIL. Advocacia-Geral da União. Portaria Normativa AGU nº 186, de 25 de julho de 2025. Regulamenta a celebração de acordo de não persecução civil em matéria de improbidade administrativa pela Procuradoria-Geral da União e pela Procuradoria-Geral Federal. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 28 jul. 2025.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 7.042/DF. Relator: Ministro Alexandre de Moraes. Tribunal Pleno, julgamento iniciado em 24 abr. 2025.
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MIGALHAS. AGU atualiza regras de acordo de não persecução civil por improbidade. Migalhas, São Paulo, 29 jul. 2025. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/quentes/435639. Acesso em: 29 jul. 2025.
Abstract: The issuance of AGU Normative Ordinance No. 186/2025 updated the legal parameters for entering into civil non-prosecution agreements under Law No. 8.429/1992, in light of the innovations introduced by Law No. 14.230/2021. This article critically analyzes the main regulatory changes introduced, based on the case law of the Superior Courts and the principles of the Law of Introduction to Brazilian Legal Norms (LINDB). The research concludes that the ordinance represents an institutional advance toward rationality, proportionality, and efficiency in the performance of the federal public advocacy in addressing administrative misconduct.
Key words : Civil Non-Prosecution Agreement. Administrative Misconduct. AGU Ordinance No. 186/2025. LINDB. Law No. 14.230/2021.