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Do voto à vigilância: a polêmica consulta à biometria eleitoral no caso dos atos de 8 de janeiro

08/08/2025 às 14:48
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É legal usar biometria da Justiça Eleitoral na investigação penal? O artigo aponta inconstitucionalidade por desvio de finalidade e violação à LGPD e à Constituição.

Resumo: O presente artigo analisa criticamente a legalidade e a constitucionalidade do uso de dados biométricos coletados pela Justiça Eleitoral para fins de persecução penal. A partir de recente controvérsia envolvendo o compartilhamento dessas informações com órgãos de investigação criminal, discute-se o alcance da proteção de dados pessoais no Brasil, especialmente diante da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (Lei nº 13.709/2018) e dos princípios constitucionais da intimidade, da legalidade e da reserva de jurisdição. A pesquisa apresenta os argumentos favoráveis ao compartilhamento, baseados no interesse público e na finalidade pública do tratamento de dados, contrapondo-os a uma análise que sustenta sua inconstitucionalidade, por violar direitos fundamentais e desrespeitar o devido processo legal. Conclui-se pela necessidade de parâmetros estritos de legalidade e proporcionalidade no acesso e uso de dados sensíveis pelo Estado, especialmente em contextos de investigação penal.

Palavras-chave: Dados biométricos. Justiça Eleitoral. LGPD. Direito Penal. Proteção de dados. Inconstitucionalidade.


INTRODUÇÃO

A consolidação do direito à proteção de dados pessoais como direito fundamental, com a promulgação da Emenda Constitucional nº 115/2022, representa um marco normativo de grande alcance no ordenamento jurídico brasileiro. Mais do que uma inovação legislativa, a consagração desse direito reflete a crescente preocupação da sociedade contemporânea com os limites éticos e jurídicos do tratamento de informações pessoais, sobretudo diante do avanço das tecnologias de identificação e vigilância.

Entre os desafios mais sensíveis desse novo paradigma está a utilização de dados biométricos, especialmente aqueles coletados por entes públicos para finalidades específicas e declaradas, como ocorre no caso do cadastro biométrico da Justiça Eleitoral. A utilização desses dados para fins diversos, como a investigação penal, tem gerado debates acalorados no meio jurídico, dividindo opiniões quanto à sua legalidade, legitimidade e compatibilidade com os princípios da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (Lei nº 13.709/2018).

O presente artigo tem por objetivo analisar criticamente a legalidade do uso de dados biométricos extraídos de bancos civis, com especial atenção ao banco da Justiça Eleitoral, no âmbito da persecução penal. A discussão é motivada por uma matéria veiculada em redes sociais, na qual se questiona a constitucionalidade da utilização desses dados por órgãos de investigação, e é enriquecida por debates técnicos surgidos em reação a tal publicação.

A título de contextualização, serão inicialmente apresentados os argumentos favoráveis à legalidade da prática, defendidos por alguns operadores do Direito, que apontam a existência de permissivos legais na própria LGPD e na Lei da Identificação Civil Nacional (Lei nº 13.444/2017). Em seguida, desenvolver-se-á a tese oposta, aqui sustentada, de que o uso penal de tais dados, na ausência de previsão legal específica e sem observância do princípio da finalidade, configura desvio de finalidade e violação direta à LGPD e à Constituição Federal.

A análise será embasada em referências doutrinárias contemporâneas, como Bruno Bioni (2021), Danilo Doneda (2019) e Renato Rocha Souza (2020), além de jurisprudência atualizada do Supremo Tribunal Federal e do Tribunal Superior Eleitoral, com destaque para a ADI nº 6.387, que consolidou a proteção de dados como direito fundamental, e para a decisão do TSE que suspendeu, em 2020, o acordo de cooperação com a Polícia Federal para uso da biometria eleitoral, justamente por risco de desvio de finalidade.

Em última instância, o que se pretende demonstrar é que, embora a persecução penal seja um dever constitucional do Estado, seus instrumentos de atuação não podem se desenvolver em detrimento dos direitos fundamentais dos cidadãos. A função pública do tratamento de dados deve ser compatível com os princípios da legalidade, finalidade, necessidade, transparência e segurança, sob pena de se converter em mecanismo de vigilância incompatível com o regime democrático.


2. OS ARGUMENTOS FAVORÁVEIS À UTILIZAÇÃO PENAL DOS DADOS BIOMÉTRICOS ELEITORAIS

Em reação à crítica veiculada contra o uso de dados biométricos da Justiça Eleitoral no âmbito penal, alguns operadores do Direito manifestaram entendimento divergente, sustentando a legalidade da prática à luz da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD) e da legislação complementar sobre identificação civil. Entre esses posicionamentos, destacam-se as correntes de pensamento que fundamentam sua defesa da medida em três eixos principais: a interpretação sistemática da LGPD, o interesse público na persecução penal e o respaldo legal conferido pela Lei nº 13.444/2017.

O primeiro ponto de sua argumentação reside na interpretação do art. 7º, inciso III, combinado com o Capítulo IV da LGPD, que autoriza o tratamento de dados pessoais por órgãos públicos quando necessário para o cumprimento de obrigações legais ou regulatórias. Segundo esta corrente de pensamento, essa previsão, aliada às hipóteses do art. 11, inciso II, alíneas “a” e “b”, legitima o tratamento de dados biométricos sensíveis sem o consentimento do titular, desde que observados os princípios da proporcionalidade e da finalidade pública. Em sua visão, a ausência de legislação específica que discipline detalhadamente a utilização da biometria civil em perícias criminais não implica, por si só, a ilicitude da prova produzida com base nesses dados, desde que haja autorização judicial e respeito ao devido processo legal.

O segundo eixo da argumentação foca no interesse público e na segurança pública como fundamentos para o compartilhamento de bases biométricas civis com órgãos de investigação. Juristas que defendem a legalidade deste mecanismo destacam que, em casos concretos, o Estado deve ser capaz de recorrer aos meios disponíveis para promover a identificação de indivíduos e o esclarecimento de crimes, inclusive mediante a análise pericial de vestígios e padrões biométricos. Nessa perspectiva, o compartilhamento dos dados entre órgãos públicos não implicaria violação de sigilo, mas mera transferência de guarda sob o mesmo dever jurídico de confidencialidade funcional, amparada por precedentes como os Temas 225 e 990 da Repercussão Geral do Supremo Tribunal Federal, que tratam do compartilhamento de dados por entes públicos no exercício de funções institucionais.

Por fim, o autor invoca a Lei nº 13.444/2017, que instituiu a Identificação Civil Nacional (ICN), como fundamento legal para a integração de bancos de dados públicos e o compartilhamento de informações biométricas entre órgãos da Administração Pública. De acordo com os arts. 2º e 3º dessa norma, a unificação dos registros civis teria justamente por escopo permitir a correta identificação dos cidadãos em múltiplas esferas, incluindo, implicitamente, o uso em procedimentos investigativos criminais, como decorrência natural das atribuições legais dos entes estatais.

Ainda que reconheça a necessidade de se realizar o chamado teste de proporcionalidade, com vistas a verificar o equilíbrio entre os direitos dos titulares dos dados e o interesse público invocado, sustenta-se que, nos casos em que esse teste for superado, a utilização dos dados biométricos em processos penais não apenas seria legítima, mas contribuiria para a eficiência da atuação estatal na repressão ao crime, sem ofender os preceitos da LGPD.


3. A ILEGALIDADE E INCONSTITUCIONALIDADE DO USO PENAL DE DADOS BIOMÉTRICOS COLETADOS PELA JUSTIÇA ELEITORAL

A utilização de dados biométricos obtidos pela Justiça Eleitoral para fins de persecução penal, ainda que sob autorização judicial, suscita graves preocupações quanto à sua constitucionalidade e conformidade com a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD), além de representar afronta ao princípio da confiança legítima e ao devido processo legal. Conforme amplamente noticiado, o cruzamento de digitais colhidas em locais de crime com o banco de dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) tem sido admitido em decisões pontuais, mas carece de base legal específica e sólida fundamentação nos parâmetros constitucionais de proteção à intimidade, à autodeterminação informativa e à limitação do poder punitivo estatal.

O ponto central da crítica reside na finalidade específica para a qual os dados biométricos foram coletados: a identificação civil e a habilitação do cidadão para o exercício do voto. A doutrina tem reiteradamente destacado que o princípio da finalidade (art. 6º, I, da LGPD) vincula o tratamento de dados à motivação legítima que o justificou, vedando o uso ulterior para fins diversos sem novo fundamento jurídico adequado ou consentimento expresso do titular (DONEDA, 2021).

Em casos como o do Inquérito 4929/DF, é possível observar que a coleta de digitais do local do crime e o confronto com o banco de dados do TSE foi autorizada judicialmente. Contudo, o simples fato de haver decisão judicial não supre a ausência de lei formal que autorize esse tipo de compartilhamento de dados sensíveis entre esferas do Estado com finalidades distintas. Como adverte Ingo Wolfgang Sarlet (2015, p. 195), “a reserva legal qualificada é exigível sempre que direitos fundamentais da personalidade estiverem em jogo, especialmente quando se trata de dados sensíveis”. Os dados biométricos, por sua própria natureza, são classificados como sensíveis nos termos do art. 5º, II, da LGPD.

Ademais, a Constituição Federal de 1988 consagrou o direito à intimidade, à vida privada e ao sigilo dos dados pessoais como cláusulas pétreas (art. 5º, X e XII), reforçadas pela Emenda Constitucional nº 115/2022, que incluiu a proteção de dados pessoais entre os direitos e garantias fundamentais, exigindo a estrita observância da legalidade, necessidade e proporcionalidade nos tratamentos efetuados pelo poder público.

Outro ponto relevante diz respeito ao princípio da não autoincriminação (nemo tenetur se detegere). Ao utilizar dados fornecidos de maneira compulsória para finalidades eleitorais como meio de obtenção de prova penal, o Estado indiretamente se vale da colaboração do próprio acusado contra si mesmo, em violação aos direitos constitucionais de defesa. Como bem observa Gustavo Badaró (2018), “a autoincriminação proibida não se restringe ao interrogatório, mas abrange também atos do processo penal que importem em produção de prova contra si, sem possibilidade de resistência”.

Do ponto de vista jurisprudencial, vale recordar que o Supremo Tribunal Federal, nos Temas 225 e 990 da Repercussão Geral, reafirmou a possibilidade de compartilhamento de dados entre órgãos públicos, desde que haja previsão legal e respeito à finalidade original da coleta, o que claramente não se verifica no uso da biometria eleitoral para fins de persecução penal. Em outro precedente importante, o STF decidiu que “a atuação estatal sobre dados pessoais deve observar o núcleo essencial do direito fundamental à autodeterminação informativa” (RE 1.055.941/SP, Rel. Min. Gilmar Mendes, j. 02/10/2020).

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Em síntese, o uso dos dados biométricos coletados pelo TSE fora do escopo eleitoral configura desvio de finalidade, ausência de base legal adequada e afronta direta aos princípios constitucionais da legalidade, proporcionalidade, segurança jurídica e da proteção de dados pessoais. O fato de o dado já estar em poder do Estado não legitima sua utilização irrestrita ou arbitrária, especialmente quando ausente a anuência do titular e quando a finalidade é substancialmente distinta da motivação original da coleta.


CONCLUSÃO

A análise crítica da utilização de dados biométricos coletados pela Justiça Eleitoral para fins de persecução penal revela um cenário de evidente tensão entre os interesses do Estado na repressão criminal e os direitos fundamentais à intimidade, ao devido processo legal, à autodeterminação informativa e à proteção de dados pessoais.

Embora a intenção do Estado seja legítima , identificar autores de crimes e promover a responsabilização penal , os meios empregados devem respeitar estritamente os limites constitucionais e legais, sob pena de banalizar direitos que compõem o núcleo essencial da dignidade da pessoa humana.

O ordenamento jurídico brasileiro, especialmente após a promulgação da Lei nº 13.709/2018 (LGPD) e da Emenda Constitucional nº 115/2022, não admite mais interpretações que autorizem o uso amplo e irrestrito de dados pessoais coletados por um ente público para finalidades distintas daquelas previamente estabelecidas. A proteção de dados deixou de ser um mero aspecto administrativo ou burocrático e se tornou um verdadeiro direito fundamental autônomo, impondo ao Poder Público o dever de adotar condutas transparentes, seguras, finalísticas e legalmente justificadas.

Nesse contexto, o uso judicial de dados biométricos eleitorais em investigações penais, sem previsão legal específica e em desvio de finalidade, configura violação à LGPD, à Constituição da República e aos princípios fundamentais do Estado Democrático de Direito. Trata-se de uma prática que não pode ser normalizada ou aceita sob o pretexto da eficiência ou da conveniência da persecução penal.

Portanto, corrobora-se a tese central apresentada na matéria jornalística que deu origem a este artigo: o uso de banco de dados biométrico da Justiça Eleitoral para fins criminais é, à luz da ordem constitucional vigente, inconstitucional e ilegal, sendo necessária a sua imediata interrupção, bem como a criação de marcos regulatórios claros e compatíveis com os direitos fundamentais, caso se pretenda discutir a possibilidade de compartilhamento de dados entre esferas do poder público.

O fortalecimento do Estado de Direito exige que os fins não justifiquem os meios, especialmente quando esses meios comprometem liberdades e garantias arduamente conquistadas.


REFERÊNCIAS

BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. Prova penal: comentários ao Código de Processo Penal à luz da Constituição da República. 2. ed. rev. e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2022.

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da República, 1988.

BRASIL. Lei nº 12.965, de 23 de abril de 2014. Marco Civil da Internet. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, ano 151, n. 78, p. 1, 24 abr. 2014.

BRASIL. Lei nº 13.709, de 14 de agosto de 2018. Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD). Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, ano 155, n. 158, p. 1, 15 ago. 2018.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n° 1055941/DF. Relator: Min. Alexandre de Moraes. Brasília, DF, julgado em 29 mar. 2021. Disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=754487658. Acesso em: 6 ago. 2025.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Inquérito nº 4929/DF. Relator: Min. Alexandre de Moraes. Brasília, DF, 2023. Disponível em: https://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/INQ4929AUTORIZAaOPARACONFERIMENTODEBIOMETRIA.pdf. Acesso em: 6 ago. 2025.

DONEDA, Danilo. Da privacidade à proteção de dados pessoais: elementos da formação da Lei Geral de Proteção de Dados. 2. ed. rev. e ampl. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020.

SARLET, Ingo Wolfgang; MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Curso de Direito Constitucional. 6. ed. rev. e atual. São Paulo: RT, 2022.

SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 45. ed. São Paulo: Malheiros, 2023.


Abstract: This article critically analyzes the legality and constitutionality of using biometric data collected by the Brazilian Electoral Justice system for criminal prosecution purposes. Based on a recent controversy involving the sharing of such information with law enforcement authorities, the study discusses the scope of personal data protection in Brazil, particularly under the General Data Protection Law (Law No. 13,709/2018) and the constitutional principles of privacy, legality, and judicial oversight. The paper presents the arguments supporting the data sharing, grounded in public interest and public purpose, and contrasts them with a position that argues its unconstitutionality, for infringing fundamental rights and violating due process. It concludes by emphasizing the need for strict legal and proportional parameters for State access and use of sensitive personal data, especially in criminal investigations.

Keywords: Biometric data. Electoral Justice. Brazilian General Data Protection Law. Criminal Law. Data protection. Unconstitutionality.

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Sobre o autor
Djalma Lúcio da Silva Reis

Servidor público efetivo do Tribunal de Justiça do Estado da Bahia, Bacharel em Direito e Administração de Empresas, especialista em Direito Tributário, Constitucional e Processual Civil.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

REIS, Djalma Lúcio Silva. Do voto à vigilância: a polêmica consulta à biometria eleitoral no caso dos atos de 8 de janeiro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 30, n. 8073, 8 ago. 2025. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/115139. Acesso em: 5 dez. 2025.

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