Capa da publicação STF flexibiliza regra do Marco Civil para punir omissões
Capa: Ton Molina/STF + Sora

A inconstitucionalidade parcial do art. 19 do Marco Civil da Internet.

Liberdade de expressão, responsabilidade das plataformas digitais e proteção de direitos fundamentais

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5. Impactos jurídicos e sociais da decisão

5.1. Efeitos sobre influenciadores, anunciantes e veículos de mídia

A decisão do Supremo Tribunal Federal, ao redimensionar a responsabilidade civil das plataformas digitais mediante a flexibilização da exigência de ordem judicial prévia, projeta reflexos diretos sobre a atuação de influenciadores, anunciantes e veículos de mídia que operam no ambiente virtual. Estes agentes, embora distintos na natureza de sua atividade, compartilham a característica de serem produtores ou promotores de conteúdo com potencial de amplo alcance, circunstância que os coloca em posição de maior visibilidade e, por conseguinte, de maior suscetibilidade à incidência do novo regime.

No caso dos influenciadores digitais, cuja notoriedade e interação com o público se materializam em postagens, transmissões ao vivo e outros formatos de engajamento, a decisão implica a necessidade de rever práticas de divulgação, parcerias e patrocínios. Conteúdos patrocinados ou impulsionados, pela sua natureza remunerada e direcionada, tornam-se mais sensíveis ao escrutínio jurídico, pois se presume que o influenciador, ao firmar contrato de publicidade, exerce controle sobre a mensagem veiculada. A persistência na manutenção de material ilícito, mesmo após notificação inequívoca, pode ensejar responsabilização solidária com a plataforma, sobretudo quando haja indícios de que o beneficiário do conteúdo patrocinado tenha anuído ou se omitido dolosa ou culposamente quanto à sua continuidade.

Para os anunciantes, a reconfiguração jurisprudencial amplia a responsabilidade indireta, impondo-lhes a adoção de mecanismos internos de compliance para selecionar influenciadores e canais de divulgação, monitorar a execução das campanhas e estabelecer cláusulas contratuais específicas sobre conduta e remoção de conteúdo. Em ambiente regulatório mais sensível à rapidez da resposta, a inércia do anunciante, ciente da ilicitude, pode ser interpretada como conivência, implicando riscos à sua reputação e à sua integridade patrimonial.

Quanto aos veículos de mídia — sejam eles portais jornalísticos, canais audiovisuais ou plataformas independentes de produção de conteúdo —, a decisão do STF demanda o fortalecimento de políticas editoriais e procedimentos internos voltados à identificação e correção célere de conteúdos potencialmente ilícitos. Ainda que se reconheça a proteção constitucional à liberdade de imprensa, é inegável que a circulação digital de matérias, reportagens ou colunas de opinião passa a estar sujeita ao mesmo dever de diligência que vincula as demais modalidades de difusão online.

Assim, o novo paradigma impõe a todos esses agentes a internalização de um protocolo de gestão de riscos digitais, que inclua a triagem prévia de conteúdo patrocinado, a verificação contínua de postagens e a atuação imediata diante de notificações idôneas. A lógica instaurada pelo STF desloca a responsabilidade de uma postura meramente reativa para um modelo preventivo, no qual a vigilância ativa sobre a integridade das publicações se apresenta como condição indispensável para a mitigação de riscos jurídicos e reputacionais.

5.2. Consequências para a moderação e exclusão de conteúdos

A redefinição interpretativa do art. 19 do Marco Civil da Internet, promovida pelo Supremo Tribunal Federal, introduz um novo parâmetro de atuação para as plataformas digitais no tocante à moderação e exclusão de conteúdos. Sob o regime anterior, a exigência de ordem judicial específica como condição para a responsabilização civil resultava em um modelo predominantemente reativo, no qual a intervenção da plataforma somente se impunha diante de comando jurisdicional formal. O novo entendimento, ao admitir a responsabilização por omissão diante de notificação extrajudicial qualificada, altera substancialmente essa lógica e impõe uma postura mais proativa na gestão de conteúdos ilícitos.

No plano prático, isso significa que as plataformas passam a assumir, em maior medida, a função de árbitros iniciais na triagem de conteúdos que lhes sejam denunciados, devendo avaliar a pertinência e a verossimilhança das alegações à luz de critérios objetivos e previamente estabelecidos. Tal exigência impõe a implementação de mecanismos técnicos mais sofisticados, aptos a identificar com rapidez não apenas o conteúdo originalmente denunciado, mas também suas eventuais replicações ou adaptações destinadas a contornar filtros automáticos.

A consequência imediata dessa mudança é o aumento da responsabilidade operacional das plataformas, que precisarão estruturar equipes capacitadas para a análise jurídica e factual das notificações recebidas, bem como para a adoção de medidas proporcionais — seja a remoção imediata, quando a ilicitude for manifesta, seja a manutenção temporária do conteúdo até a obtenção de esclarecimentos adicionais, nos casos em que a avaliação dependa de maior contextualização.

Esse novo paradigma também suscita a necessidade de revisão das políticas internas de moderação, que deverão contemplar protocolos claros para a resposta a notificações idôneas, prazos definidos para a tomada de decisão e canais acessíveis aos usuários para contestar remoções que considerem indevidas. Ao mesmo tempo, reforça-se o dever de transparência, impondo às plataformas a obrigação de informar, de maneira precisa e motivada, as razões que fundamentaram a exclusão ou a manutenção do conteúdo denunciado.

Cumpre observar, todavia, que a ampliação do poder-dever de moderação não pode ser interpretada como autorização irrestrita para a supressão de conteúdos, sob pena de se converter em instrumento de censura privada. O equilíbrio entre a celeridade na proteção de direitos e a preservação da liberdade de expressão exige que a moderação se mantenha vinculada a parâmetros objetivos, evitando a remoção arbitrária de manifestações lícitas, ainda que polêmicas ou impopulares.

Dessa forma, a decisão do STF projeta uma dupla consequência para a moderação e exclusão de conteúdos: de um lado, fortalece a capacidade de resposta rápida diante de violações evidentes; de outro, impõe às plataformas a responsabilidade de agir com prudência, proporcionalidade e fundamentação, de modo a assegurar que a tutela de direitos fundamentais não seja obtida à custa da supressão indevida do debate público e do pluralismo de ideias.

5.3. Possíveis conflitos judiciais e riscos de excesso ou omissão

A reconfiguração interpretativa do art. 19 do Marco Civil da Internet, operada pelo Supremo Tribunal Federal, embora tenha buscado aprimorar a tutela de direitos fundamentais no ambiente digital, inevitavelmente ensejará novas frentes de litigiosidade, tanto no que diz respeito à delimitação do dever de diligência das plataformas quanto à aferição da licitude ou ilicitude de conteúdos. O deslocamento de um modelo exclusivamente judicialista para um sistema que admite responsabilização por omissão diante de notificação extrajudicial qualificada amplia o espaço para controvérsias sobre a suficiência, a clareza e a precisão dessas comunicações, bem como sobre a tempestividade e adequação da resposta da plataforma.

Entre os principais pontos de tensão judicial destaca-se a definição do que constitui “ilicitude manifesta” apta a impor a remoção imediata. A ausência de parâmetros normativos estritos abre margem a interpretações divergentes, o que pode gerar, de um lado, remoções sumárias de conteúdos que, em sede jurisdicional, venham a ser considerados lícitos, e, de outro, a manutenção indevida de publicações lesivas sob a alegação de dúvida razoável quanto à sua natureza. Ambas as hipóteses alimentam riscos de responsabilização: no primeiro caso, pela supressão indevida de manifestação protegida; no segundo, pela omissão em face de violação inequívoca de direitos.

Outro vetor de conflitos reside na ponderação entre a celeridade exigida na retirada de conteúdos e a necessidade de assegurar ao autor ou divulgador oportunidade de contraditório e defesa. A adoção precipitada de medidas restritivas, sem o devido cuidado na análise do contexto, pode ser interpretada como excesso, especialmente quando a moderação recai sobre críticas legítimas, manifestações políticas ou debates de interesse público. Por outro lado, a hesitação excessiva, ainda que motivada por prudência, pode ser enquadrada como negligência quando a ofensa ou o dano potencial se revelam evidentes e de gravidade acentuada.

As plataformas, nesse cenário, enfrentam o desafio de estruturar processos internos capazes de equilibrar esses polos de risco, criando protocolos claros para triagem, análise e decisão, sem que a busca por segurança jurídica paralise a resposta diante de situações urgentes. Ainda assim, mesmo com tais medidas, é previsível que as cortes sejam chamadas a decidir, reiteradamente, sobre casos-limite, consolidando jurisprudência sobre a caracterização da culpa ou negligência e sobre os contornos da liberdade de expressão frente a outros direitos fundamentais.

Portanto, o novo regime não apenas desloca a responsabilidade para um plano mais ativo de atuação das plataformas, mas também inaugura uma fase de maior incerteza normativa e processual, na qual o excesso e a omissão, igualmente censuráveis, serão objeto de apreciação judicial contínua, moldando, caso a caso, a aplicação prática das balizas fixadas pelo Supremo Tribunal Federal.


6. A decisão e o equilíbrio entre regulação e inovação

6.1. Desafios para a harmonização legislativa e regulatória

A decisão do Supremo Tribunal Federal que mitigou a “blindagem” conferida pelo art. 19 do Marco Civil da Internet projeta, no plano normativo, o desafio de integrar o novo entendimento jurisprudencial ao sistema legal vigente, evitando contradições internas e assegurando coerência regulatória. A harmonização legislativa e regulatória impõe, de início, a revisão da própria redação do dispositivo, de modo a refletir, de forma expressa, as hipóteses em que a responsabilidade civil das plataformas pode ser reconhecida independentemente de ordem judicial, observadas as balizas fixadas pela Corte.

A dificuldade reside, em primeiro lugar, no desenho de critérios suficientemente objetivos para qualificar a “notificação inequívoca” que desencadeia o dever de remoção. Ausentes tais parâmetros em lei, corre-se o risco de fragmentação interpretativa, com decisões judiciais díspares acerca da suficiência da comunicação e do grau de diligência exigível. Essa lacuna pode comprometer a segurança jurídica e fomentar litigiosidade excessiva, além de criar incentivos para condutas defensivas que resultem na supressão indevida de conteúdos lícitos.

Outro ponto sensível é a articulação entre o novo modelo de notice and take down e outros marcos normativos incidentes sobre a comunicação digital, como a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (Lei n.º 13.709/2018), a legislação eleitoral e as normas setoriais de defesa do consumidor. Em diversas hipóteses, a atuação diligente exigida do provedor no contexto do art. 19 poderá conflitar com obrigações concorrentes previstas nesses diplomas, demandando harmonização que evite sobreposição de competências e duplicidade de exigências.

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No campo regulatório, a harmonização passa pelo alinhamento entre a atuação judicial e as diretrizes expedidas por órgãos administrativos com competência sobre o ambiente digital, a exemplo da Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD) e do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE). A ausência de coordenação entre essas instâncias pode gerar insegurança para plataformas e usuários, seja pela imposição de obrigações contraditórias, seja pela dificuldade de cumprimento simultâneo de exigências divergentes.

Finalmente, impõe-se considerar o desafio de compatibilizar o novo regime com compromissos internacionais assumidos pelo Brasil, especialmente em matéria de comércio eletrônico, direitos autorais e cooperação jurídica. A adoção de um modelo nacional descolado das práticas majoritárias pode dificultar a interoperabilidade regulatória e aumentar os custos de conformidade para provedores estrangeiros, com repercussões sobre a oferta de serviços no país.

Assim, a harmonização legislativa e regulatória não se limita à alteração formal do texto legal, mas envolve a construção de um quadro normativo integrado, capaz de assegurar previsibilidade e estabilidade na aplicação do direito, preservando, ao mesmo tempo, a efetividade da tutela de direitos fundamentais e a integridade do espaço público digital.

6.2. Perspectivas de adequação empresarial e boas práticas

A reconfiguração do regime de responsabilidade civil das plataformas digitais, operada pela decisão do Supremo Tribunal Federal, impõe ao setor privado não apenas a revisão de seus protocolos internos de moderação, mas também a adoção de estratégias estruturais de governança que assegurem conformidade com as novas exigências jurídicas. A perspectiva de adequação empresarial, nesse contexto, demanda a incorporação de mecanismos permanentes de prevenção, resposta e transparência, de modo a conciliar a proteção de direitos fundamentais com a preservação da liberdade de expressão e a manutenção da confiança dos usuários.

O primeiro vetor dessa adequação reside na implementação de canais de notificação acessíveis, claros e eficientes, capazes de receber comunicações de conteúdo potencialmente ilícito com os elementos mínimos fixados pelo STF — identificação precisa do material, sua localização e a descrição objetiva da ilicitude. Não basta, entretanto, dispor desses canais; é imprescindível que haja equipes treinadas para triagem e análise preliminar, aptas a decidir, com base em critérios técnicos e jurídicos, sobre a pertinência e urgência da remoção ou manutenção do conteúdo.

No plano operacional, a adoção de tecnologias de content tracking e filtros inteligentes pode contribuir para a identificação de replicações sucessivas e a neutralização de contas inautênticas, fenômenos destacados pela Corte como agravantes do risco de lesão. Tais ferramentas, contudo, devem ser calibradas de forma a evitar bloqueios automáticos indevidos, garantindo que a intervenção preserve o núcleo essencial da liberdade de expressão.

Outro aspecto relevante consiste na formalização de políticas internas de compliance digital, com a previsão de cláusulas contratuais específicas em parcerias comerciais, especialmente com anunciantes e influenciadores, disciplinando responsabilidades e procedimentos de remoção célere em caso de conteúdo ilícito. Essas políticas, além de proteger a própria plataforma, contribuem para irradiar padrões de conduta no ecossistema comunicacional em que ela se insere.

A dimensão da transparência, por sua vez, impõe a publicação periódica de relatórios que informem, de forma agregada, o número de notificações recebidas, as medidas adotadas e os prazos médios de resposta. Tal prática, alinhada a modelos regulatórios internacionais, reforça a accountability perante usuários, reguladores e o Poder Judiciário, além de fornecer insumos para a formulação de políticas públicas baseadas em dados empíricos.

Por fim, a adequação empresarial deve contemplar a formação contínua de equipes técnicas e jurídicas, bem como a manutenção de canais de diálogo com órgãos reguladores, entidades da sociedade civil e a comunidade acadêmica. A construção de boas práticas, nesse campo, não se limita ao cumprimento literal de determinações judiciais, mas envolve um compromisso proativo com a qualidade do espaço público digital, prevenindo litígios e fortalecendo a segurança jurídica na interação entre plataformas e usuários.

Assim, a decisão do STF, longe de representar apenas um ônus adicional, pode ser compreendida como oportunidade para que empresas do setor consolidem padrões de excelência em moderação e governança digital, compatíveis com a ordem constitucional e com as expectativas legítimas da sociedade democrática.

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Sobre o autor
Paulo Vitor Faria da Encarnação

Advogado. Mestre em Direito Processual pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Sócio do escritório Santos Faria Sociedade de Advogados.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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