Os ataques que um criminoso comum faz ao Tribunal geralmente não têm importância. A assimetria entre o réu e o Estado garantem a tranquilidade do órgão julgador. Isso para não mencionar o fato de que o juiz tem uma série de garantias que lhe permitem ignorar ataques como esses. Nos casos mais graves, porém, o réu pode ser eventualmente responsabilizado por ameaçar o juiz. Todavia, isso será objeto de outra ação penal.
A situação se modifica, porém, quando o réu é uma pessoa poderosa que pode mobilizar a imprensa ou um partido político em seu favor. Esse era o caso de Lula e é o de Jair Bolsonaro, mas ambos se comportaram de maneira muito diferente. Lula aceitou a condenação e a prisão injusta não resistindo à ordem de prisão. O que ele fez foi desafiar a legalidade do encarceramento antes do trânsito em julgado da condenação injusta proferida por um juiz incompetente e suspeito tanto na Justiça brasileira quanto na Comissão de Direitos Humanos da ONU.
Bolsonaro, entretanto, não tem a mesma civilidade de Lula. Além de ter dito que em caso de condenação receberá a Polícia Federal a bala (promessa que ele não cumpriu quando teve a prisão domiciliar decretada), Jair usa o filho e contatos internacionais para dobrar o STF, o Congresso e o Brasil à sua vontade. Ao que parece a pressão sobre a Suprema Corte é o nome normal.
A punição imposta ao Ministro Alexandre de Moraes com base na Lei Magnitsky por Donald Trump (suspensa por decisão do Ministro Flavio Dino), as tarifas de importação adotadas pelo governo dos EUA e as ameaças que pairam sobre o próprio sistema de justiça brasileiro são desdobramentos diplomáticos e políticos extraprocessuais de um caso criminal. A Ação Penal n. 2.668. que deverá ser julgada de acordo com a legislação brasileira pela autoridade competente com base nas provas colhidas sob o crivo do contraditório se transformou num paradigma de conflito insolúvel entre Direito e Política, entre Justiça e Poder e entre Processo e Barbárie.
“Kelsen nunca disse que ao Estado seja moralmente lícito fazer aquilo que quer e, portanto, que o Estado, que faça o que fizer, age justamente; mas explicitou simplesmente quais são as condições sobre cujas bases os governantes agem para conseguir os fins a que se propõe. Uma coisa é dizer que tudo é permitido aos governantes, outra que, para agir, devem servir-se daquela técnica de organização social, assim e assado determinada, que é o Direito. Uma coisa é justificar os fins; outra compreender os meios que são adotados para atingir determinados fins.”
(Direito e poder, Norberto Bobbio, editora Unesp, São Paulo, 2008, p. 36)
O que o STF está fazendo é lícito e a licitude do processo contra Jair Bolsonaro é confirmada pela denúncia e pelas alegações finais protocoladas nos autos pelo Procurador Geral da República. O que Jair Bolsonaro e os filhos dele estão fazendo fora dos autos para constranger a Suprema Corte e obrigá-la a proferir uma decisão absolutório não é lícito e pode resultar em sanção tanto contra o réu como contra (medidas restritivas, uso de tornozeleira eletrônica e finalmente a prisão domiciliar) quanto aos parceiros dele nos EUA (bloqueio de redes sociais de Eduardo Bolsonaro). Retaliações do STF contra Donald Trump são possíveis?
Essa é uma questão interessante que merece ser considerada. A CF/88 confere ao presidente da república a prerrogativa de decidir e comandar a política externa do país (art. 84, VII, VIII, XIX, XX, da CF/88). Todavia, nem mesmo ele poderia fazer o que Donald Trump está fazendo em favor de Jair Bolsonaro para, por exemplo, impedir a condenação de um brasileiro pela Justiça dos EUA ou a deportação de brasileiros residentes no território norte-americano. Isso violaria frontalmente o disposto no art. 4º, da CF/88.
Além dessa limitação ao poder presidencial, existe outra: Lula não poderia, por exemplo, impedir autoridades brasileiras de prender Netanyahu ou Vladimir Putin com base nas ordens de prisão expedidas contra eles pelo Tribunal Penal Internacional. Ao aderir ao sistema internacional e se sujeitar às decisões do TPI, nosso país abriu mão de uma parcela de sua autonomia e isso obviamente limita o poder presidencial de interferir num assunto afeto à política externa resultante de atos praticados por agentes do sistema de justiça.
Donald Trump recebe visitas frequentes de Netanyahu e recentemente encontrou Putin no Alasca. O presidente dos EUA simplesmente ignorou os mandados de prisão do TIP contra ambos e nenhuma autoridade do sistema de justiça norte-americano sequer cogitou desafiar essa decisão dele. Nos EUA o poder presidencial é definido de maneira muito vaga e nos últimos anos está mais e mais se tornando digno de uma monarquia absolutista.
Assim como interfere no Judiciário de seu país, Trump tenta interferir no STF. O que ele faz nos EUA é assunto dos norte-americanos. O que ele está tentando indevidamente fazer no Brasil não é assunto apenas do STF. Ele é um assunto dos brasileiros e em grande medida da presidência da república e do Itamaraty.
Trump não tem a prerrogativa de perdoar Jair Bolsonaro ou de anistiá-lo. Ele pode até discordar do conteúdo da Ação Penal nº 2.668, mas ele não deveria tentar dobrar Ministros da Suprema Corte brasileira como se eles fossem terroristas. A conduta dele não é apenas ilegítima e ofensiva, ela é potencialmente criminosa à luz da legislação brasileira. E assim como uma Lei norte-americana não tem aplicação automática no Brasil (como bem decidiu Flávio Dino aos suspender os efeitos da Lei Magnitsky contra Alexandre de Moraes), a lei brasileira pode ser utilizada contra o próprio Donald Trump por atos dele que tendem a produzir efeitos ilícitos em nosso território para beneficiar alguém que deve ser julgado no Brasil de acordo com nossa legislação.
É claro que tratar Trump como coautor de Jair Bolsonaro em relação à coação ilícita contra juízes brasileiros acarretaria consequências diplomáticas. Todavia, isso não implica numa invasão da competência do presidente da república por dois motivos. Primeiro, porque o Judiciário tem independência (art. 2º, da CF/88). Segundo, porque o presidente da República, o presidente da Câmara dos Deputados e o presidente do Senado não poderiam deixar de reagir à agressão contra nossa soberania e contra o funcionamento do STF sem cometer crime de responsabilidade. A harmonia dos três poderes em face de uma agressão externa como a protagonizada por Donald Trump não é apenas indispensável ela é presumida pelo sistema constitucional brasileiro.
Além das questões acima mencionadas, ao praticar atos típicos de sua competência o MPF e o Judiciário pode eventualmente acarretar consequências diplomáticas indiretas que não podem ser impedidas pelo presidente da república ou vetadas por ele com base na sua competência constitucional. Algo assim pode ocorrer, por exemplo, se o STF garantir a um cidadãos estrangeiro o direito de não ser extraditado anulando uma decisão presidencial de extradição proferida com base em cálculos diplomáticos feitos com evidente violação das obrigações humanitárias e internacionais que o nosso país assumiu de conceder asilo político a quem corre risco de vida se for devolvido ao seu país de origem.
Nos EUA, Donald Trump pode se comportar como se estivesse acima da Lei ou como se fosse a única fonte de legalidade. No Brasil, Trump não poderia se considerar acima da Lei se, por exemplo, numa recepção de gala dada em sua homenagem na mansão dos Bolsonaro ele se entupisse de cocaína e matasse a garota de programa adolescente designada para acompanhá-lo e satisfazer todas as necessidades dele naquela noite. Um crime como esse pode ser improvável, mas ele não é impossível. Se algo assim ocorresse em nosso país, Trump poderia ser imediatamente preso e Lula teria que se virar com a crise diplomática resultante da prisão.
Talvez tenha chegado o momento do PGR mover sua coneta no caso Donald Trump. O presidente dos EUA está cruzando todas as linhas de civilidade, da legalidade e da cortesia internacional como se estivesse passeando num tapete vermelho. Trump está tentando estuprar nossa Suprema Corte como se ela fosse uma adolescente indefesa. Isso é inadmissível. Ao se comportar como um criminoso comum para salvar um criminoso comum o presidente dos EUA merece ser tratado como um criminoso comum.
“Em uma teoria do Direito e do Estado que parte do primado da norma sobre o poder não pode existir poder que não seja poder jurídico, ou seja, regulado pelo direito, em que ser ‘regulado’ deve ser entendido como autorizado por uma norma que atribui poderes (ermächtigende Norm) ou eventualmente vinculado por normas imperativas. Sobre esse ponto, Kelsen voltou várias vezes em todas as suas obras com uma constância inatacável por qualquer crítica. Essa passagem é exemplar: ‘O elemento que diferencia a relação definida como poder estatal (Staatsgewalt) das outras relações de poder é ser juridicamente regulado (rechtlich geregelt); isso é, ele consiste no fato de que os homens que exercem o poder como o governo do Estado estão autorizados por um ordenamento jurídico a exercer aquele poder, produzindo e aplicando normas jurídicas, ou seja, no fato de que o poder estatal tem caráter normativo’. O expediente que permite a Kelsen executar essa redução de todo poder exercido no âmbito de um ordenamento jurídico é a norma fundamental, a qual, entendida como norma que, por um lado, autoriza o poder supremo a produzir direito e, por outro, obriga aqueles a quem se dirige o poder supremo a obedecer às normas que dele emanará, tem a função, como o próprio Kelsen exprime incisivamente, de ‘transformar o poder em direito’ e, desse modo, permitir a distinção entre uma norma jurídica e a intimidação de um bandido.”
(Direito e poder, Norberto Bobbio, editora Unesp, São Paulo, 2008,p. 174/175)
Não existe norma jurídica brasileira que permita a Donald Trump transformar seu poder de perdoar ou anistiar criminosos nos EUA em direito de perdoar ou anistiar Jair Bolsonaro no Brasil. Mas existem normas legais brasileiras que obrigam as autoridades do Brasil a defender a dignidade de nosso sistema de justiça contra interferências ilícitas e potencialmente criminosas do réu e dos amigos e comparsas do réu, estejam eles no Brasil ou nos EUA.
Portanto, podemos concluir de maneira segura que o Direito pode limitar a Política. A Justiça não precisa se curvar ao Poder. E a Barbárie não deve em hipótese alguma condicionar o resultado de um Processo. Essa é sem dúvida alguma a lição de Kelsen. Os meios adotados por Trump para defender Jair Bolsonaro não podem ser compreendidos como sendo normais, aceitáveis e lícitos.