Resumo: O presente artigo analisa a decisão proferida pelo ministro Flávio Dino, do Supremo Tribunal Federal, na qual se firmou o entendimento de que leis, ordens executivas e atos administrativos editados por autoridades estrangeiras não possuem eficácia automática no território brasileiro. Para que produzam efeitos jurídicos internos, exige-se a chancela expressa do STF, por meio de reclamação constitucional ou de outro instrumento processual adequado. Inicialmente, apresenta-se a fundamentação do ministro e sua relação com os princípios constitucionais da soberania, da legalidade e da segurança jurídica. Em seguida, são examinadas as correntes doutrinárias e jurisprudenciais que apoiam tal interpretação, ressaltando a preservação da ordem constitucional frente a ingerências externas. Por outro lado, discutem-se as posições críticas, que defendem a possibilidade de aplicação direta de normas internacionais em razão da interdependência global. Por fim, conclui-se pela identificação da posição majoritária da doutrina brasileira, avaliando se a decisão representa consonância com o pensamento consolidado ou uma inflexão paradigmática no direito constitucional contemporâneo.
Palavras-chave: Supremo Tribunal Federal; sanções estrangeiras; soberania; direito internacional; controle constitucional.
INTRODUÇÃO
A temática da eficácia de normas estrangeiras em território nacional sempre foi objeto de intenso debate na doutrina e na jurisprudência brasileiras. A questão ganhou destaque recente com a decisão proferida pelo ministro Flávio Dino, do Supremo Tribunal Federal, no âmbito da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n.º 1178, ajuizada pelo Instituto Brasileiro de Mineração (IBRAM).
O caso emergiu em meio à polêmica gerada pela sanção unilateral aplicada pelos Estados Unidos ao ministro Alexandre de Moraes, com fundamento na chamada “Lei Magnitsky”. A discussão central gravitou em torno da possibilidade de que medidas restritivas oriundas de jurisdições estrangeiras possam produzir efeitos automáticos sobre cidadãos, bens e relações jurídicas estabelecidas no Brasil.
Na decisão, o ministro Flávio Dino afirmou de forma categórica que leis, ordens executivas, atos administrativos e decisões judiciais estrangeiras não possuem validade imediata em território brasileiro, sendo indispensável a intervenção do Supremo Tribunal Federal ou do Superior Tribunal de Justiça, conforme o caso. Trata-se, portanto, de manifestação que toca em três eixos fundamentais do Direito: a soberania nacional, a interpretação constitucional e a relação do Brasil com o direito internacional.
Este artigo tem como objetivo analisar a referida decisão sob quatro perspectivas:
a exposição pormenorizada dos fundamentos adotados pelo ministro;
a apresentação das correntes doutrinárias que corroboram sua interpretação;
a exposição das posições contrárias, que defendem maior abertura à eficácia de atos estrangeiros; e, por fim,
uma conclusão crítica sobre a coerência da decisão em face da doutrina majoritária e sua eventual contribuição para a transformação do paradigma jurídico brasileiro.
1. EXPOSIÇÃO DA DECISÃO DO MINISTRO FLÁVIO DINO NA ADPF 1178
No julgamento da medida cautelar na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n.º 1178, o ministro Flávio Dino enfrentou a questão da aplicação de sanções estrangeiras a cidadãos brasileiros, notadamente diante da repercussão internacional da denominada “Lei Magnitsky”. A norma estadunidense autoriza a imposição de restrições financeiras e de circulação a autoridades e pessoas acusadas de corrupção ou violações a direitos humanos.
Segundo o relator, atos normativos ou executivos editados por outros Estados não têm aplicabilidade imediata no Brasil, carecendo de controle jurisdicional prévio para que possam produzir efeitos internos. Dino fundamentou sua decisão principalmente em dispositivos constitucionais que consagram a soberania nacional (art. 1º, I, da Constituição Federal), a independência nas relações internacionais (art. 4º, I) e a igualdade soberana entre os Estados (art. 4º, V).
Além disso, ressaltou-se a necessidade de observância da competência atribuída ao Poder Judiciário brasileiro para homologar e conferir eficácia a decisões estrangeiras. Nos termos do art. 105, inciso I, alínea “i”, da Constituição Federal, cabe ao Superior Tribunal de Justiça homologar sentenças estrangeiras, enquanto ao Supremo Tribunal Federal incumbe o julgamento de arguições de descumprimento de preceito fundamental quando atos estrangeiros violarem diretamente a ordem constitucional interna.
Na prática, o ministro determinou que o Banco Central, a Federação Brasileira de Bancos (Febraban), a Confederação Nacional das Instituições Financeiras (CNF) e outras entidades do setor financeiro fossem comunicadas oficialmente para que se abstenham de dar cumprimento automático a ordens externas, especialmente no que se refere ao bloqueio de ativos, suspensão de transações ou restrição de direitos patrimoniais de brasileiros.
Com isso, a decisão não apenas reafirma a jurisprudência já consolidada acerca da necessidade de homologação de sentenças estrangeiras, mas também a expande, ao abarcar atos administrativos e ordens executivas de natureza sancionatória editados em outros países. Essa ampliação de escopo representa uma contribuição relevante para a delimitação dos limites da cooperação internacional no campo jurídico, tensionando a relação entre a proteção da soberania nacional e as exigências da globalização contemporânea.
2. CORRENTE FAVORÁVEL À DECISÃO
A interpretação segundo a qual normas estrangeiras não podem ter aplicação automática em território nacional encontra respaldo em significativa parcela da doutrina brasileira de Direito Internacional Público e Privado. O argumento central repousa na afirmação da soberania nacional e na necessidade de controle judicial interno para que decisões ou atos externos possam produzir efeitos jurídicos válidos no Brasil.
Jacob Dolinger (2017, p. 56) destaca que “o reconhecimento da eficácia de atos estrangeiros é manifestação de soberania e, como tal, não pode ocorrer de forma automática, sem o crivo das instituições nacionais”. Para o autor, admitir a aplicação imediata de sanções impostas por outro Estado seria abrir mão da autonomia jurídica do país, sujeitando seus cidadãos a normas editadas sem qualquer participação democrática interna.
No mesmo sentido, Valério de Oliveira Mazzuoli (2021, p. 133) observa que a Constituição de 1988 atribuiu ao Superior Tribunal de Justiça a competência para homologar sentenças estrangeiras (art. 105, I, i), o que confirma a exigência de chancela judicial para sua eficácia. O jurista acrescenta que a exigência decorre da própria ideia de segurança jurídica, na medida em que impede a importação irrefletida de decisões alheias ao ordenamento nacional.
Francisco Rezek (2022, p. 201), por sua vez, ressalta que o Direito Internacional reconhece a igualdade soberana entre os Estados e que a aplicação extraterritorial de leis estrangeiras em solo brasileiro somente pode ocorrer mediante concordância expressa do ordenamento interno. Para o ministro aposentado do STF, a homologação é uma barreira necessária contra ingerências indevidas que possam violar a independência nacional.
Hilton Rocha (2015, p. 89) vai além, afirmando que o processo de homologação cumpre dupla função: “preserva a soberania do Estado brasileiro e, ao mesmo tempo, garante que os atos estrangeiros reconhecidos atendam aos padrões mínimos de compatibilidade com a Constituição e com a ordem pública interna”.
Esse entendimento doutrinário também encontra respaldo na jurisprudência pátria. O Superior Tribunal de Justiça tem reiteradamente afirmado a imprescindibilidade da homologação de sentenças estrangeiras para que produzam efeitos internos. No julgamento da Sentença Estrangeira Contestada n.º 854/EX (Rel. Min. Eduardo Ribeiro, DJ 29 ago. 1997), a Corte destacou que “nenhuma decisão estrangeira pode ser executada no Brasil sem prévia homologação, sob pena de ofensa à soberania nacional”. Mais recentemente, a SEC 11.962/EX reafirmou que a homologação é ato de soberania, não se tratando de mera formalidade procedimental.
O Supremo Tribunal Federal, por sua vez, ao julgar o Recurso Extraordinário n.º 466.343/SP (Rel. Min. Cezar Peluso, DJ 3 dez. 2008), enfatizou a supremacia da Constituição sobre quaisquer normas internacionais, reconhecendo que tratados ou decisões externas só podem ingressar no ordenamento interno se compatíveis com a ordem constitucional brasileira. A Corte já afirmou, inclusive, que a cláusula da soberania é “princípio inafastável de proteção da ordem jurídica nacional” (STF, ADI 1.480, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 6 nov. 1998).
Assim, tanto a doutrina majoritária quanto a jurisprudência dos tribunais superiores confirmam que a negativa de eficácia automática a sanções internacionais não apenas está em consonância com o texto constitucional, mas também reforça a exigência de filtragem judicial prévia de qualquer ato estrangeiro que pretenda alcançar efeitos no Brasil.
3. CORRENTE DOUTRINÁRIA DIVERGENTE
Há também respeitável corrente doutrinária que sustenta a possibilidade de conferir eficácia imediata a determinadas normas e decisões estrangeiras, especialmente quando relacionadas a compromissos internacionais assumidos pelo Brasil. O argumento central é o de que a soberania, no Estado Constitucional contemporâneo, deve ser compreendida de forma relacional e cooperativa, não mais como um conceito absoluto e isolado.
Segundo Luiz Olavo Baptista (2019, p. 74), a interdependência econômica e política do mundo globalizado exige que os Estados permitam, em certas circunstâncias, a aplicação de medidas externas de forma célere, sob pena de inviabilizar a própria eficácia do Direito Internacional. Para o autor, “a soberania não é um muro, mas uma ponte que liga o ordenamento interno às obrigações internacionais assumidas voluntariamente pelo Estado”.
No mesmo sentido, Flávia Piovesan (2020, p. 149) argumenta que a Constituição de 1988, ao consagrar os princípios da prevalência dos direitos humanos e da cooperação entre os povos (art. 4º, II e IX), abriu espaço para que o Brasil se submeta, em certas hipóteses, a decisões externas sem necessidade de homologação judicial. Para a jurista, a rigidez excessiva na filtragem interna pode transformar o país em refúgio para a impunidade internacional.
André de Carvalho Ramos (2021, p. 212) observa que, em matéria de sanções internacionais, sobretudo quando vinculadas a resoluções do Conselho de Segurança da ONU, não se trata de ingerência arbitrária, mas de cumprimento de deveres assumidos no plano multilateral, compatíveis com a Constituição. Nesse cenário, a homologação automática ou simplificada não representaria violação da soberania, mas afirmação do compromisso internacional do Estado brasileiro.
Do ponto de vista jurisprudencial, há precedentes que sinalizam maior abertura ao reconhecimento de atos internacionais. O STF, no julgamento do Recurso Extraordinário com Agravo n.º 954.408/RS (Rel. Min. Luís Roberto Barroso, DJe 11 mar. 2020), reconheceu a possibilidade de dar eficácia imediata a decisões da Corte Interamericana de Direitos Humanos, afirmando que o Brasil se comprometeu, ao ratificar a Convenção Americana, a cumprir de boa-fé as determinações daquele tribunal.
O Superior Tribunal de Justiça também já sinalizou posição mais flexível em alguns casos. Na SEC 11.962/EX (Rel. Min. Laurita Vaz, DJe 21 jun. 2011), embora reafirmando a necessidade de homologação formal, ressaltou-se que o exame do STJ é meramente formal, sem reavaliação do mérito da decisão estrangeira, o que indica uma deferência quase automática às sentenças externas que não afrontem a ordem pública ou a soberania nacional.
Essa linha de pensamento entende que a soberania não se perde ao se reconhecer a eficácia de sanções ou decisões externas, mas se reconfigura em conformidade com os compromissos internacionais assumidos pelo Brasil. Dessa forma, a negativa absoluta de eficácia automática poderia ser vista como resquício de um conceito ultrapassado de soberania, incompatível com o modelo constitucional de abertura ao Direito Internacional previsto na Carta de 1988.
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A análise das correntes doutrinárias revela que a posição defendida pelo ministro Flávio Dino enfatiza a centralidade da soberania e da ordem constitucional brasileira, restringindo a aplicação direta de sanções internacionais que não tenham passado pelo crivo do Poder Judiciário. Esse entendimento resguarda a segurança jurídica, pois impede que medidas externas afetem cidadãos e empresas brasileiras sem prévia filtragem pelos órgãos nacionais competentes. Trata-se de uma interpretação coerente com a tradição jurídica brasileira, fortemente apegada ao princípio da legalidade e à supremacia da Constituição.
Por outro lado, a corrente divergente, encampada por doutrinadores como Luiz Olavo Baptista, Flávia Piovesan e André de Carvalho Ramos, sustenta que a soberania, no mundo contemporâneo, deve ser compreendida de forma cooperativa e interdependente. Segundo esse viés, a Constituição de 1988 já consagrou a prevalência dos direitos humanos e a cooperação internacional como princípios orientadores da República, o que legitimaria uma postura de maior abertura ao reconhecimento automático — ou, ao menos, simplificado — de determinadas decisões internacionais, especialmente aquelas oriundas de organismos multilaterais dos quais o Brasil é parte.
A jurisprudência também espelha essa tensão. De um lado, o STJ reafirma a necessidade de homologação formal das decisões estrangeiras, ainda que com um exame limitado ao aspecto formal (SEC 11.962/EX). De outro, o STF já reconheceu, em julgados como o ARE 954.408/RS, a vinculação do Brasil a decisões da Corte Interamericana de Direitos Humanos, admitindo sua eficácia imediata.
Diante desse cenário, a posição que melhor harmoniza a proteção da soberania nacional com a responsabilidade internacional assumida pelo Brasil parece ser uma síntese conciliatória: para atos externos de caráter meramente privado (como sentenças civis ou comerciais estrangeiras), deve prevalecer a necessidade de homologação formal pelo STJ, como exige o ordenamento; já em relação a sanções internacionais impostas por organismos multilaterais, sobretudo no âmbito da ONU ou de cortes de direitos humanos ratificadas pelo Brasil, mostra-se mais compatível com o texto constitucional adotar uma postura de eficácia quase automática, limitada apenas pela cláusula de ordem pública e pelos princípios fundamentais do Estado brasileiro.
Assim, pode-se afirmar que o entendimento do ministro Flávio Dino, embora juridicamente consistente e protetivo da soberania, talvez seja demasiadamente rígido diante da realidade das relações internacionais. Uma interpretação constitucional mais equilibrada, que reconheça a soberania cooperativa prevista na Constituição de 1988, permite conciliar o respeito ao ordenamento interno com o cumprimento dos compromissos internacionais, evitando que o Brasil se torne um espaço de resistência indevida a sanções legitimamente pactuadas no cenário global.
REFERÊNCIAS
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Abstract: This article examines the decision issued by Justice Flávio Dino, of the Brazilian Federal Supreme Court, which established that laws, executive orders, and administrative acts enacted by foreign authorities do not automatically apply within Brazilian territory. For such norms to have domestic legal effect, express authorization from the STF is required, either through constitutional complaint or other adequate judicial mechanism. The first section addresses the minister’s reasoning and its connection with the constitutional principles of sovereignty, legality, and legal certainty. Next, the paper explores doctrinal and jurisprudential perspectives that support this interpretation, emphasizing the protection of the constitutional order against external interference. Conversely, it also presents critical positions that advocate for the direct application of international norms in light of global interdependence. Finally, the study identifies the prevailing stance of Brazilian legal scholarship, assessing whether the decision aligns with consolidated doctrine or represents a paradigmatic shift in contemporary constitutional law.
Key words : Federal Supreme Court; foreign sanctions; sovereignty; international law; constitutional control.