Com a vigência da Lei Complementar nº 213/2025 e a divulgação da minuta de Resolução do CNSP, inaugura-se um marco regulatório para a proteção veicular.
Esse avanço, de um lado, responde a um antigo anseio por segurança jurídica e maior proteção ao consumidor; de outro, pela rigidez de seu desenho, desperta preocupação quanto ao risco de transformar-se não em instrumento de fortalecimento, mas em via indireta de dissolução dos grupos de socorro mútuo.
O ponto central é a descaracterização do princípio fundamental do associativismo mutualista: a autogestão. O modelo associativo prosperou com base na liberdade de um grupo de pessoas unir-se para repartir, entre si, despesas já ocorridas (certas e passadas). Esse rateio expressa a autonomia e o propósito da associação.
Ao tornar compulsória a transferência dessa operação essencial para uma empresa administradora com fins lucrativos, a nova legislação promove uma alteração ontológica no sistema. A associação, antes protagonista na gestão do rateio, passa a ser mera intermediária, uma vendedora de contratos de uma terceira entidade. Esvazia-se, assim, sua função primordial, restando-lhe apenas um papel acessório de captação de clientes e distribuição de serviços.
A segunda camada de rigidez, talvez a mais excludente, manifesta-se nos requisitos de constituição da nova figura administradora. Ao equiparar suas exigências de capital social às de uma seguradora tradicional (S4), a minuta do CNSP cria uma barreira econômica quase intransponível para a maioria do setor, em especial para as pequenas e médias associações.
Nesse cenário, a dissolução indireta ocorre por meio de uma asfixia regulatória, um processo gradual de inviabilização. A associação perde sua principal razão de existir — a autogestão do rateio — tornando-se uma casca vazia, um apêndice de entidade com lógica de mercado distinta da sua. O mercado de administradoras, diante da alta barreira de entrada, tende a se concentrar em poucos e grandes players. Isso submete as associações a um oligopólio, com baixo poder de negociação e total dependência de seus fornecedores de serviço.
A legislação, portanto, em vez de regular para fortalecer, corre o risco de forçar a absorção do modelo mutualista pelo mercado securitário tradicional. Não se proíbe a existência da associação, mas criam-se condições tão adversas e descaracterizantes que sua continuidade se torna insustentável. A autonomia é anulada, o propósito esvaziado e a viabilidade econômica comprometida.
A busca por segurança e transparência é legítima e necessária; contudo, a solução não pode ser a aniquilação de um modelo que incluiu milhões de brasileiros. Uma regulação inteligente e proporcional deveria visar à profissionalização da autogestão, impondo transparência no rateio, fiscalização e governança corporativa, sem, entretanto, extirpar sua essência.
O risco de dissolução programada pela inviabilidade do modelo é real. A rigidez excessiva pode gerar efeito colateral igualmente danoso: a perpetuação da informalidade. Diante de barreiras intransponíveis, cria-se duplo desincentivo à regularização. O primeiro é a falta de acesso: associações, sobretudo as de menor porte, não possuem recursos financeiros e estruturais para atender às novas exigências. O segundo é a falta de vontade: a adesão ao novo sistema significaria renunciar à identidade mutualista e à autonomia que motivaram sua criação.
Esse quadro pode conduzir a uma cisão no setor, em que uma pequena elite consiga se adaptar, enquanto a maioria opta por continuar à margem da lei, exatamente como ocorria antes. O resultado seria o fracasso do objetivo primário da regulação: trazer o universo da proteção mútua para um ambiente de legalidade e supervisão. Em vez de integrar, a lei excludente pode cristalizar a informalidade, frustrando, em última análise, seu próprio propósito.
É, portanto, um momento em que vaidades pessoais, disputas por protagonismo regional e rachaduras internas, que historicamente enfraqueceram a categoria, devem ser superadas em prol de um objetivo comum: a preservação do modelo. Apenas uma frente unificada, com representatividade legítima e munida de propostas técnicas viáveis, terá força para dialogar com os reguladores e negociar alternativas que conciliem segurança jurídica e essência da autogestão. A capacidade de organização madura e uníssona não é mais um diferencial, mas condição essencial para reverter o caminho da dissolução indireta e construir um futuro regulamentado e sustentável.