Capa da publicação Transfobia é opinião ou crime?
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Artigo Destaque dos editores

Discurso de ódio não é liberdade de expressão.

O direito de incomodar também implica em responsabilidade

Resumo:


  • A liberdade de expressão não é um direito absoluto, sendo necessário arcar com responsabilidades civis e penais ao causar danos ou lesões a terceiros.

  • O discurso de ódio disfarçado de opinião configura injúria racial e difamação, ultrapassando os limites da liberdade de expressão.

  • O STF reconheceu a omissão legislativa em proteger grupos vulneráveis, aplicando a lei de racismo para coibir discursos LGBT+fóbicos como forma de crime de racismo.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

A liberdade de expressão acoberta ataques transfóbicos? O STF decidiu que discurso de ódio é crime de racismo, com responsabilidade civil e penal.

Este artigo faz um contraponto e análise jurídica do caso da autodenominada feminista Isabelle Cêpa versus Dep. Érika Hilton. Na autodefesa, descreveu um ato em que procura, de forma abusiva, se acobertar pelos direitos fundamentais da pessoa, no uso da sua “liberdade de expressão” ao declarar em suas redes sociais (2020) sobre a atual Deputada Érika Hilton: “a mulher mais votada na cidade é um homem”. Ainda, noticiou encontrar-se em “asilo político” num país do Leste Europeu.

Procuraremos mostrar que o artigo de opinião foi tendencioso ao pinçar o acontecimento e propagá-lo como teoria da conspiração contra feministas para silenciá-las e um ativismo pernicioso do STF ao julgar a questão na ADO. n. 26, inserindo o Brasil num contexto de autoritarismo.

O asilo político é um direito humano destinado à proteção de qualquer nacional que necessite de proteção internacional para garantir a observância do princípio da não repulsão. Trata-se de um princípio de direito internacional destinado para refugiados, proibindo os Estados de repatriar pessoas ao país de origem se existir risco real de tortura, atos degradantes ou desumanos, perseguição, ou outra violação dos direitos humanos. Isabelle Cêpa não foi submetida a qualquer destes atos, em verdade, procurou proteção num país do leste europeu para fugir dos efeitos da decisão erga omnes da ADO. n. 26 que considera o comentário transfóbico como espécie do crime de racismo (até haja lei tratando do tema). Ainda, obteve acolhida do Estado europeu por compatibilidade com pautas políticas extremistas de direita que flertam com bases antidemocráticas.

Ademais, não houve violação ao direito fundamental de Isabelle, houve consequência após sua livre manifestação, o que é praxe para convivência harmônica em ambientes de constitucionalidade pós-moderna de países democráticos. Isabelle disse o que desejava, assim, não houve censura, e após a livre manifestação, pode responder pelos danos causados por sua fala. Vale lembrar que a Constituição, ao falar da liberdade de expressão (art. 5o, IV e V), coloca dois condicionantes: (i) que a manifestação não seja anônima e (ii) a responsabilização mais o direito de resposta. De forma que cada um pode dizer o que quiser, desde que se identifique e arque com os abusos.

A liberdade de expressão não é um direito absoluto, como nenhum outro é – afinal, ela termina ao afetar o direito fundamental do outro – principalmente, ao colidir com outros direitos fundamentais, tal como a dignidade, cidadania, livre personalidade, identidade, honra, nome e intimidade da pessoa objeto da “opinião”. Sobre os atributos da identidade de gênero de terceira pessoa, não há espaço para “achismos”, contrariando a autodeclaração da interessada, porque é discurso de intolerância, não reconhecimento e não respeitabilidade das identidades. E mais, incitando a narrativa nas redes sociais fomenta um debate ultrapassado sobre biologia e gênero, desencadeando na coletividade novos olhares homotransfóbicos – exatamente o que o STF decidiu na ADO. n. 26 e na ADI. n. 4.275.

Trata-se de típico discurso de ódio maquiado de “opinião”, configurando injúria racial (art. 2º-A da lei n. 7716/89) à Dep. Érika Hilton, exposição indevida ou vexatória de sua identidade, bom nome e respeitabilidade perante a sociedade (difamação). O limite da expressão é não causar danos ou lesões ao outro, ainda que moral (art. 5o, X, CF/88) sob pena de indenização, além de responsabilização penal. A liberdade de expressão de Isabelle foi livre, mas não está livre das responsabilidades civil e penal. Os julgamentos pessoais não se confundem com o “parecer pessoal sobre a identidade de alguém”, nem com a exposição pública em ambiente virtual.

O limite entre uso legítimo de liberdade de expressão e o discurso de ódio está em que, neste último, quem fala não considera o outro como um igual, portador dos mesmos direitos: se com a pretensão de se expressar, fere-se o direito de outrem, não há direito e sim abuso. Segundo o art. 20-C da lei 7716/89, a lei de racismo precisa ser interpretada de tal forma que “o juiz deve considerar como discriminatória qualquer atitude ou tratamento dado à pessoa ou a grupos minoritários que cause constrangimento, humilhação, vergonha, medo ou exposição indevida, e que usualmente não se dispensaria a outros grupos em razão da cor, etnia, religião ou procedência (grifos nossos). Esta regra hermenêutica é fundamental para a exata diferenciação entre os citados limites: será que tratamento que Isabelle dá à Deputada é o mesmo dispensado a pessoas cisgênero? Dizer a uma (ou sobre uma) mulher trans que ela é um homem reforça estruturas de discriminção contra essa população, causando-lhes, no mínimo, constrangimento, humilhação, vergonha, medo ou exposição indevida.

O Dossiê da Antra (2025) repetiu um índice constrangedor: o Brasil ocupa a posição dentre os países que mais praticam discursos transfóbicos e assassinatos contra pessoas trans, de modo que a expectativa de vida destes é de 35 anos. Apesar do comando constitucional para coibir a violência contra grupos vulnerabilizados (art. 5o, XLI), o Congresso Nacional insiste em ignorar o público LGBTQIAPN+, omitindo-se na função de legislar. A ADO. n. 26 foi julgada pelo STF nos moldes da competência da Corte Constitucional no sistema de freios e contrapesos, e reconheceu a omissão legislativa intencional, declarando que, enquanto pairar a lacuna legislativa, aplica-se a lei geral existente, Lei n. 7.716/89, no intuito de coibir opiniões, atos e discursos LGBT+fóbicos como modalidade de crime de racismo, até que o poder legislativo em mora, edite lei específica sobre a matéria.

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O STF, ao julgar a ADO. n. 26, não editou uma lei federal, não agiu sem ser provocado, nem ultrapassou seus poderes constitucionais – fez, inclusive citando textualmente, o mesmo que havia sido decidido quando do julgamento do HC. n. 82424: o conceito de “raça” é socialmente construído e, pois, pode abarcar tanto o antissemitismo como a LGBT+fobia para efeito de incidência da lei de racismo. Reconheceu a marginalização do grupo para impedir discursos “opinativos” excludentes e de incitação do ódio contra LGBTQIAPN+, atentatórios à democracia, dignidade e isonomia, cláusulas de fundamento e objetivos da República (arts. 1o, III e 3o, IV CR/88). As decisões do HC. n. 82424 e da ADO. n. 26, nesse sentido, são declaratórias, não constitutivas.

Na ADI. n. 4.275, por sua vez, o STF deixou claro que a identidade de uma pessoa é determinada por ela mesma e não pelo Estado (e menos ainda por outra pessoa!). No caso de pessoas trans elas têm o direito de mudar seu nome e gênero no registro de nascimento e o papel do Estado (Cartório) é apenas o de fazer o registro.

Sobre o feminismo radical defendido pela autodenominada feminista, é necessário dizer que outras vertentes do feminismo, como o transfeminismo e o feminismo decolonial não o reconhece. O alcance das “mulheridades” é extenso, compreende todas as mulheres com suas diferenças de gênero, raça, classe social, sexualidades, deficiências, idades, dentre outros marcadores sociais interseccionais. As lutas sociais feministas são conectadas e solidárias. O segmento que reduz mulheres à concepção unicamente biológica não é movimento social feminista por flertar com a política excludente liderada pelo opressor da extrema direita, o opressor de todas as mulheres.

Finalizamos com António Guterrez, Secretário-Geral da ONU: “Nunca devemos esquecer a facilidade com que o discurso de ódio pode transformar-se em crime de ódio; como a ignorância ou a indiferença podem levar à intolerância; ou como o silêncio diante do fanatismo é cumplicidade”.

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Sobre os autores
Alexandre Gustavo Melo Franco Bahia

Mestre e Doutor em Direito Constitucional (UFMG). Pós-Doutor pelo Instituto de Saúde Pública (Universidade do Porto). Bolsista de Produtividade do CNPq. Professor (UFMG).︎ Presidente da Comissão de Diversidade Sexual e Gênero da OAB/MG.︎

Samantha Dufner

Mestre em Direito, professora, advogada, pesquisadora.

Robyn Pedroso Barbosa

Mestra em Direito Constitucional. Especialista em Direito Penal e Processual Penal. Professora Universitária da Unopar Itajubá.︎

Silas Oliveira Nascentes

Bacharel em Direito pela Fundação Educacional de Oliveira (FEOL).︎

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BAHIA, Alexandre Gustavo Melo Franco ; DUFNER, Samantha et al. Discurso de ódio não é liberdade de expressão.: O direito de incomodar também implica em responsabilidade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 30, n. 8098, 2 set. 2025. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/115443. Acesso em: 5 dez. 2025.

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