Preliminar e metodologicamente, cumpre-nos um esclarecimento: o conteúdo aqui tecido reveste-se do caráter menos rigorosamente formal que se espera de um texto científico, alinhando-se, por assim dizer, mais ao trato característico do gênero ensaio, nos termos vazados pelo filósofo renascentista, Michel de Montaigne (1532-1592). O objeto: analisar a vedação do retrocesso social ou efeito cliquet como limitador negativo à atuação do legislador diante da Ação Penal 26681 (AP 2668), em trâmite na Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal (STF).
Na referida AP 2668, em linhas gerais, oito réus, incluindo um ex-presidente da República, respondem pelos crimes de tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito (artigo 359-L), golpe de Estado (artigo 359-M), dano qualificado pela violência e grave ameaça contra o patrimônio da União, e com considerável prejuízo para a vítima (artigo 163, parágrafo único, incisos I, III e IV), todos do Código Penal brasileiro, além de organização criminosa armada (artigo 2º, caput, parágrafos 2º e 4º, inciso II) e deterioração de patrimônio tombado (artigo 2º, caput, parágrafos 2º e 4º, inciso II), ambos da Lei 12.850/2013.
A anistia é uma causa de extinção da punibilidade2, na conformidade do art. 107, inciso II, do Código Penal. De competência administrativa da União, na disposição do art. 21, inciso XVII da Constituição Federal de 1988 (CF 88), realizável pelo Congresso Nacional, nos termos do art. 48, inciso VIII, da CF 88, a anistia é verdadeira declaração do Estado de “esquecimento” de fatos havidos por criminosos. Zaffaroni (2006, p. 202) informam que “a anistia apaga o delito”. Guilherme de Souza Nucci (2007, p. 572), afirma ser “a declaração, pelo Poder Público, de que determinados fatos se tornam impuníveis por motivo de utilidade social”.
Paraibano de nascimento e cearense de coração, luz do constitucionalismo brasileiro, o saudoso professor Paulo Bonavides, em sua obra clássica – Ciência Política (1983), afirmou que o golpe de estado demanda uma técnica apurada para sua consecução: “Via de regra, políticos de nomeada, altos dirigentes e oficiais de alta patente das Forças Armadas, investidos já em funções estatais e em condições de movimentar ou neutralizar o governo que pretendem derribar parte dos mecanismos ” (Bonavides, 1983, p. 532). Encerra conceitualmente o professor catedrático emérito da Faculdade de Direito da Universidade do Ceará: “o golpe é a prevalência do interesse egoístico de um grupo ou a satisfação de uma sede pessoal de poder ” (Bonavides, 1983, p.; 534).
Os fatos apurados na AP 2668 e o conjunto probatório a lastrear a denúncia da lavra da Procuradoria Geral da República dão conta de uma organização criminosa que buscou atentar contra o Estado Democrático de Direito, hipótese a afrontar os fundamentos da República, alocados no art. 1º, da Constituição Federal de 1988 (CF 88).
As questões que se colocam orbitam nos limites da anistia pretendida por parte dos congressistas brasileiros. É possível afirmar o princípio da proibição de retrocesso como fronteira jurídica e/ou moral a blindar a defesa dos fundamentos da CF 88? Defende-se, neste texto, que sim!
A proibição de retrocesso deriva diretamente do fundamento da dignidade humana, (art. 1º, inciso III, da CF 88), servindo como um balizador à atuação dos legisladores originário e derivado, contra a possibilidade de esvaziamento dos chamados direitos sociais, afinal, “os princípios possuem uma dimensão que as regras não têm – a dimensão do peso ou importância (Dworkin, 2004, p. 42)”.
Ainda, em obra intitulada O Império do Direito (1999), Dworkin afirmara a respeito da relação necessária entre direito e moral:
Temos dois princípios de integridade política: um princípio legislativo, que pede aos legisladores que tentem tornar o conjunto de leis moralmente coerente, e um princípio jurisdicional, que demanda que a lei, tanto quanto possível, seja vista como coerente nesse sentido (Dworkin, 1999, p. 213).
Nesta senda, se ao princípio aludido cabe a relativização de um poder ilimitado e incondicionado, para fazer atuar o valor mais ampliado da dignidade humana, espelhado no conteúdo dos direitos e garantias fundamentais que compõem o piso histórico do progresso (nem sempre linear, é verdade) humano da razão, de modo reflexo impõe-se a máxima in eo quod plus est semper inest et minus (quem pode o mais, pode o menos).
A consequência da tese acima exposta é a de que, tanto a limitação do campo legislativo do poder que inaugura a ordem constitucional (originário), quanto daquele a quem cabe sua reforma/dinamicidade (derivado reformador), em virtude da força da proibição de retrocesso, seu conteúdo (lei formal) já nasceria viciado pelas nódoas da inconvencionalidade e da inconstitucionalidade, hipótese a legitimar a provocação do Poder Judiciário, nos limites dos freios e contrapesos.
Na formulação das tantas teorias do direito e da justiça, muito já se disse acerca dos conceitos, fundamentos, e da tensionada relação entre descrição e prescrição. Houve quem reduzisse o direito a um modelo metafísico. Houve quem buscou fazer uma leitura mais científica desse objeto cultural. Dos jusnaturalismos aos juspositivismos tantos, todos e diversos, um dos traços permanentes é o da busca pelo conteúdo valorativo do que se define como Direito. Qual é o espírito de uma lei formulada para apagar crimes contra a democracia, o Estado de Direito e os direitos humanos e fundamentais?
Ora, os direitos sociais são fundamentais por excelência. No curso evolutivo de seu reconhecimento, foram manejados positivamente perante o Estado, exigindo-se deste, obrigação de fazer. A operabilidade, portanto, depende de ambiente de certa estabilidade democrática, assentada na maturidade das instituições e Poderes constituídos. É dizer: sem Estado Democrático de Direito hígido, os direitos e garantias fundamentais – dos quais os sociais são espécie não taxativa, não podem ser livremente gozados pelos cidadãos.
Cuida-se da característica da interdependência ou indivisibilidade dos direitos fundamentais. Não há educação e segurança quando a insegurança jurídico-política se manifesta sob a forma de “esquecimento” de atos violadores ao Estado de Direito. Não é possível, nos planos lógico-jurídico e moral, que o Poder Legislativo se manifeste, contraditoriamente, em desfavor do próprio Estado Democrático de Direito, senão como mais um exemplo do chamado efeito blacklash .
A motivação de eventual lei de anistia para o caso apurado na AP 2668, tatuaria nos anais do constitucionalismo brasileiro a impunidade do jugo, da canga e do chicote que ainda há na mente dos que buscam manter acesa a memória de um país marcado pela escravidão e pelos anos de chumbo das décadas de 60 e 70 do século passado.
Defende-se, nesse sentido, a ampliação do alcance do princípio da proibição de retrocesso 3, quando os fatos atentatórios aos fundamentos da República (soberania, cidadania, dignidade da pessoa humana, valores sociais do trabalho e pluralismo político) forem a causa ou o motivo da ratio legis anistiadora.
Em artigo publicado Revista Brasileira de Estudos Jurídicos, o Ministro do STF, Gilmar Ferreira Mendes (2024)4 ponderou:
"A jurisprudência nacional, ao interpretar e aplicar o princípio da vedação ao retrocesso social, desempenha um papel crucial na consolidação e proteção dos direitos fundamentais, garantindo a continuidade dos avanços sociais já conquistados”.
Firmou o STF a tese de tal princípio em diversas assentadas. Por todas:
O princípio da proibição do retrocesso impede, em tema de direitos fundamentais de caráter social, que sejam desconstituídas as conquistas já alcançadas pelo cidadão ou pela formação social em que ele vive. A cláusula que veda o retrocesso em matéria de direitos a prestações positivas do Estado (como o direito à educação, o direito à saúde ou o direito à segurança pública, v.g.) traduz, no processo de efetivação desses direitos fundamentais individuais ou coletivos, obstáculo a que os níveis de concretização de tais prerrogativas, uma vez atingidos, venham a ser ulteriormente reduzidos ou suprimidos pelo Estado.
(ARE 639.337 AgR, rel. min. Celso de Mello, j. 23-8-2011, 2ª Turma).
Ou seja, os crimes apurados na AP 2668 são de tal ordem prejudiciais aos fundamentos republicanos, encartados na CF 88, que impedem – sob pena rompimento dos chamados elementos mínimos irredutíveis, qualquer possibilidade jurídica constitucional de procedibilidade. Nas lições de Bulos (2003, p. 41), esses elementos “freiam o poder estatal perante os cidadãos, evitando o arbítrio, o abuso de autoridade, o desrespeito aos direitos e garantias fundamentais”.
Em sua festejada obra A Força do Direito, o saudoso professor Frederick Schauer, ao avaliar se os agentes públicos estão acima da lei – quis coercibit ipsos coercentes? (quem coage o coator?), enfatizou: “acredita-se comumente que o principal objetivo de uma constituição é impedir que agentes públicos interessados ou mal-intencionados operem em detrimento do bem público” (Schauer, 2022, p.142).
De igual modo, uma “Lei de Esquecimento do Golpe Militar de 22/23”, arquitetada em contrariedade ao amplíssimo conjunto probatório catalogado na ação penal em curso, também violaria os reconhecidos elementos irredutíveis de estabilização constitucional – Bulos (2003, p. 41) que “buscam manter a normalidade institucional e a paz coletiva, eliminando conflitos constitucionais. Funcionando também como mecanismos de defesa do Estado e da própria Constituição”.
Nessa linha argumentativa, o professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências Jurídicas, da Universidade Federal da Paraíba, Newton de Oliveira Lima, em obra intitulada Teoria dos Valores Jurídicos: o neokantismo e o pensamento de Gustav Radbruch avaliam: “Direitos humanos são possibilitadores de um novo modo de vivenciar a interpretação jurídica que não o legalismo anti-axiológico e pretensamente neutro nos planos da gnosiologia e da operacionalização das normas do ordenamento” (Lima, 2024, p. 164).
A inconvencionalidade de eventual anistia, não só diante dos tratados sobre direitos humanos dos quais o Brasil é signatário (globais e regionais), a exemplo do Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC, 1966) e da Convenção Americana dos Direitos do Homem CADH, ambas em vigor no Brasil desde 1992, espraia-se à seara jurisdicional internacional.
O Brasil reconheceu a jurisdição da Corte IDH em 1998, o que implica sua obrigação no cumprimento das sentenças condenatórias exaradas por aquela Corte Internacional (regional). Assim ocorre desde pelo menos o ano de 2010, quando o Brasil foi condenado no caso Gomes Lund (desaparecimento forçado durante o regime militar – Guerrilha do Araguaia), tendo reconhecido a violação de direitos humanos (morte por motivação política) de 62 vítimas diretas e efetuado o pagamento das indenizações devidas às famílias.
A Corte IDH sedia jurisprudência pacífica no sentido da projeção do princípio da proibição de retrocesso social, em clara tendência histórica. Exemplos não faltam5: Caso Benites Cabrera y otros Vs. Perú (2022); Caso Gutiérrez y familia Vs. Argentina (2019); Caso Trabajadores de la Hacienda Brasil Verde Vs. Brasil (2016); Caso Adolescentes Recluidos en Centros de Detención e Internación Provisoria del Servicio Nacional de Menores (SENAME) Vs. Chile (2024); Caso Comunidad Indígena Sawhoyamaxa Vs. Paraguay (2006), entre outros.
Para fins exemplificativos, referiu a Corte IDH:
Un tribunal internacional de derechos humanos no puede intentar frenar su propia jurisprudencia, pues actuamos en un dominio de protección que no admite retrocesos. Un tribunal internacional de derechos humanos no puede jamás permitirse bajar los estándares internacionales de protección. (Corte IDH. Caso Comunidad Indígena Sawhoyamaxa Vs. Paraguay, (2006).
A marcha do controle concentrado de convencionalidade6, exercido pela Corte IDH (casos Mack Chang Vs Guatemala, 2003; Almonacid Arellanos Vs Chile, 2006), dentre outros, reforça a proteção judicial, nesse caso, internacionalmente, contra a tentativa de anistiar fatos que violaram o Estado democrático de Direito.
Internamente, caberá ao STF em sede de controle de constitucionalidade (e em defesa do bloco de convencionalidade interamericano), caso seja provocado nesse sentido, a dizer o direito em defesa dos fundamentos constitucionais da República e do Estado democrático.
Apagar – como se possível fosse, os fatos criminosos da engenharia golpista de 2022-2023, aplaudindo-se o direito da força em detrimento da força do direito, seria colocar de joelhos a razão, como instrumento possível da convivência das liberdades públicas.
REFERÊNCIAS
BONAVIDES, Paulo. Ciência Política. 5.ed. Rio de Janeiro: Forense, 1983.
BULOS, Uadi Lammêgo. Constituição Federal anotada. 12.ed. São Paulo: Saraiva, 2017.
DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. trad. Nelson Boeira. 3.ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010.
_________. O Império do Direito. trad. Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
LEGALE, Siddarta. A Corte Interamericana de direitos humanos como Tribunal Constitucional Transnacional. 2.ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2020.
LIMA, Newton de Oliveira. Teoria dos valores jurídicos: o neokantismo e o pensamento de Gustav Radbruch. 2.ed. São Paulo: Editora Dialética, 2024.
NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Direito Penal: parte geral. 3.ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007.
RAWLS, John. O direito dos povos. trad. Luís Carlos Borges. 2.ed. São Paulo: Martins Fontes – selo Martins, 2019.
SCHAUER, Frederick. A força do direito. trad. André Luiz Freire. 1.ed. São Paulo: Editora WMF Martin Fontes, 2022.
ZAFFARONI, Eugênio Raul. Manual de Direito Penal Brasileiro – Parte Geral. vol. 1. 6.ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006.
Notas
1 Disponível em: https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=7223339 Acesso em: 08/09/2025
2 Para Zaffaroni e Pierangeli, trata-se de caso de extinção de atipicidade da conduta (Manual de Direito Penal Brasileiro, volume 1. 6ª edição, 2006, p. 638).
3 Aliás, hipótese que já vem sendo desenhada pelos nossos tribunais. Por todos a extensão da proibição de retrocesso pelo TJ RO, na ADI 0800922-58.2019.8.22.0000. Disponível em: https://ditel.casacivil.ro.gov.br/COTEL/Livros/Files/LC999%20-%20ADI_merged.pdf Acesso em: 08/09/2025.
4 Revista Brasileira de Estudos Jurídicos, Montes Claros, v. 18, n. 2, jul./dez. 2024.
5 Disponível em: https://jurisprudencia.corteidh.or.cr/search/jurisdiction:EA/prohibici%C3%B3n+de+regresi%C3%B3n/p2 Acesso em: 08/09/25.
6 Para uma revisão completa dos ciclos e casos da Corte IDH a envolver o controle concentrado de convencionalidade e o controle difuso de convencionalidade pelos tribunais e juízes domésticos, indica-se a obra A Corte Interamericana de Direitos Humanos como Tribunal Constitucional, referência presente de pesquisa no campo da Corte IDH, da lavra do professor Dr. Siddarta Legale, da Faculdade Nacional de Direito, da Universidade Federal do Rio de Janeiro FND/UFRJ.