Resumo: O presente artigo analisa os aspectos jurídicos e tecnológicos decorrentes da implementação da plataforma inédita anunciada pelo governo federal para operacionalizar a Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS) e o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), tributos centrais da reforma tributária brasileira. O sistema, com capacidade de processar cerca de 70 bilhões de documentos eletrônicos por ano, incorpora o mecanismo do split payment, promovendo o recolhimento automático e em tempo real dos tributos. A pesquisa destaca os reflexos constitucionais — legalidade, isonomia, capacidade contributiva —, os impactos sobre o compliance tributário e a segurança jurídica, bem como os custos de adaptação impostos às empresas. Conclui-se que, embora a proposta traga promessas de eficiência e redução da sonegação, ela também suscita desafios quanto à proteção de dados, à neutralidade da carga tributária e à litigiosidade fiscal.
Palavras-chave: Reforma tributária. CBS. IBS. Split payment. Compliance tributário. Segurança jurídica.
Sumário: 1. Introdução – 2. A reforma tributária e a criação da CBS e do IBS – 3. A plataforma tecnológica e o mecanismo do split payment – 4. Aspectos constitucionais: legalidade, isonomia e capacidade contributiva – 5. Custos empresariais e desafios de compliance – 6. Proteção de dados e tributação digital – 7. Impactos potenciais na litigiosidade tributária – 8. Considerações finais – 9. Referências.
1. Introdução
O sistema tributário brasileiro sempre foi marcado por sua elevada complexidade, resultado da sobreposição de tributos federais, estaduais e municipais, da diversidade de regimes especiais e da multiplicidade de normas infraconstitucionais.
Esse quadro tem produzido elevados custos de conformidade para as empresas, fomentado intensa litigiosidade e reduzido a competitividade do país no cenário internacional.
Nesse contexto, a reforma tributária aprovada pela Emenda Constitucional nº 132/2023 representa um marco histórico, ao redesenhar a tributação sobre o consumo, substituindo um conjunto fragmentado de tributos por dois impostos de incidência ampla: a Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), de competência federal, e o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), de competência compartilhada entre estados e municípios.
A notícia veiculada pelo portal InfoMoney em setembro de 2025 destaca que o governo federal já desenvolve uma plataforma tecnológica inédita para operacionalizar a cobrança desses tributos.
Com capacidade estimada para processar 70 bilhões de documentos eletrônicos por ano, o sistema se coloca como “150 vezes maior que o Pix”, revelando a magnitude do desafio técnico e jurídico envolvido.
O objetivo deste artigo é analisar as implicações jurídicas dessa inovação, com enfoque nos princípios constitucionais, nos impactos empresariais e na interseção entre direito tributário e tecnologia.
2. A reforma tributária e a criação da CBS e do IBS
A estruturação da CBS e do IBS decorre da necessidade de superar o modelo fragmentado do sistema tributário brasileiro, em que a tributação sobre o consumo se dava por meio de diferentes tributos com base de cálculo semelhante, mas regimes jurídicos distintos, como PIS, Cofins e IPI no âmbito federal, ICMS no estadual e ISS no municipal.
Essa multiplicidade, além de favorecer conflitos de competência, gerava cumulatividade e distorções econômicas, contrariando os princípios da neutralidade e da simplicidade tributária.
A CBS e o IBS assumem a forma de tributos não cumulativos sobre valor agregado, aproximando-se dos modelos de Imposto sobre Valor Agregado (IVA) já consagrados em países da União Europeia e em sistemas tributários mais estáveis.
A base de cálculo abrange tanto bens como serviços, reduzindo discussões sobre enquadramento e incidência.
A transição, contudo, foi projetada para ocorrer gradualmente entre 2026 e 2032, justamente para permitir a adaptação do setor produtivo e da Administração Pública.
Durante esse período, haverá convivência entre os tributos atuais e os novos, exigindo das empresas um duplo esforço de conformidade fiscal.
É nesse cenário que surge a plataforma digital desenvolvida pela Receita Federal, cujo papel central será receber e processar as notas fiscais eletrônicas, aplicar o mecanismo de split payment, garantindo a divisão automática da receita entre União, estados e municípios, e gerenciar créditos tributários em tempo real, prometendo acelerar os ressarcimentos e compensações.
Do ponto de vista jurídico, a criação da CBS e do IBS atende ao princípio da legalidade, mas também suscita questionamentos sobre sua implementação tecnológica e os reflexos para a capacidade contributiva e a isonomia.
3. A plataforma tecnológica e o mecanismo do split payment
A modernização do sistema arrecadatório brasileiro com a criação de uma plataforma nacional inédita insere-se em um movimento global de digitalização fiscal, inspirado em experiências internacionais de real-time reporting e split payment.
De acordo com a Receita Federal, a ferramenta será capaz de processar aproximadamente 70 bilhões de documentos eletrônicos por ano, absorvendo 100% das notas fiscais eletrônicas emitidas no território nacional. O mecanismo de split payment consiste na retenção e partilha automática dos valores devidos a título de tributos, no momento da operação, diretamente na fonte. Assim, em uma transação comercial, a parcela correspondente ao imposto será destacada e remetida pelo sistema, em tempo real, aos cofres da União, estados e municípios.
Embora represente avanço no combate à sonegação e na aceleração de ressarcimentos, o modelo reduz a autonomia das empresas sobre seus fluxos de caixa e altera práticas tradicionais de planejamento tributário.
4. Aspectos constitucionais: legalidade, isonomia e capacidade contributiva
A análise da reforma e de sua plataforma digital deve observar os princípios constitucionais tributários. A legalidade, prevista no artigo 150, inciso I, da Constituição, assegura que nenhum tributo será instituído ou aumentado sem lei que o estabeleça.
Embora a criação da CBS e do IBS obedeça ao devido processo legislativo, a operacionalização tecnológica não pode inovar sem respaldo legal, sob pena de extrapolar a reserva de lei.
A isonomia, por sua vez, impõe tratamento equitativo entre os contribuintes. Ainda que a reforma prometa neutralidade, a exigência de adaptações tecnológicas pode impor custos desproporcionais a micro e pequenas empresas, em comparação com grandes corporações que dispõem de mais recursos.
A capacidade contributiva, insculpida no artigo 145, §1º, da Constituição, também merece reflexão, sendo que o recolhimento automático restringe margens de capital de giro, impactando empresas com menor liquidez e dificultando sua sobrevivência em setores de elevada competitividade.
Por fim, a segurança jurídica, consagrada no artigo 5º, inciso XXXVI, da Constituição, exige previsibilidade e estabilidade normativa.
Eventuais falhas sistêmicas ou mudanças abruptas no funcionamento da plataforma podem comprometer a confiança legítima dos contribuintes, reavivando disputas judiciais e ampliando a incerteza.
5. Custos empresariais e desafios de compliance
A transição para a CBS e o IBS impõe custos significativos às empresas. O processo de adaptação tecnológica demanda atualização de sistemas de gestão empresarial, softwares contábeis e plataformas de emissão de notas fiscais, além da contratação de serviços especializados de consultoria. Também exige treinamento contínuo de equipes jurídicas e contábeis, a fim de capacitá-las para lidar com as novas obrigações e com o acompanhamento em tempo real das operações tributárias.
Esses custos recaem de forma mais intensa sobre micro e pequenas empresas, que enfrentam limitações orçamentárias e estruturais.
A perda do diferimento no recolhimento de tributos, em decorrência do split payment, restringe ainda mais a flexibilidade financeira, eliminando margens historicamente utilizadas para o planejamento de liquidez.
Embora, em tese, o novo sistema possa simplificar o compliance no longo prazo, ao unificar tributos e automatizar etapas do processo arrecadatório, os custos imediatos de adaptação configuram um desafio expressivo.
O risco é de que a reforma, ao invés de reduzir a complexidade, acabe gerando novos ciclos de litigiosidade decorrentes da assimetria no cumprimento das obrigações acessórias.
6. Proteção de dados e tributação digital
A centralização de dados fiscais em uma única plataforma nacional suscita preocupações relevantes em matéria de proteção de dados.
A Lei Geral de Proteção de Dados (Lei nº 13.709/2018) e o artigo 198 do Código Tributário Nacional impõem limites claros ao tratamento e ao compartilhamento dessas informações.
O Estado deverá assegurar princípios como finalidade, necessidade e minimização, evitando usos abusivos ou inadequados dos dados coletados.
A concentração massiva de notas fiscais amplia, contudo, a vulnerabilidade a ataques cibernéticos e a falhas sistêmicas. Surge, assim, a necessidade de uma governança federativa de dados, que garanta a rastreabilidade dos acessos e impeça manipulações indevidas.
A responsabilidade civil objetiva do Estado, prevista no artigo 37, §6º, da Constituição, pode ser invocada em situações em que falhas tecnológicas causem prejuízos aos contribuintes.
Paralelamente, exige-se das empresas a adoção de práticas de compliance digital, de modo a preservar a integridade, a confidencialidade e a disponibilidade das informações fiscais. Cria-se, desse modo, uma relação de cooperação permanente entre contribuinte e Fisco, mediada por instrumentos tecnológicos.
7. Impactos potenciais na litigiosidade tributária
O contencioso tributário brasileiro figura entre os mais elevados do mundo, e sua redução é frequentemente evocada como justificativa para a reforma.
A uniformização do sistema em torno da CBS e do IBS e a automação do split payment possuem potencial para diminuir disputas clássicas, especialmente aquelas relativas à competência tributária e às múltiplas obrigações acessórias.
A promessa de devolução ágil de créditos, em poucas horas, também pode reduzir significativamente os litígios que hoje se arrastam por anos no âmbito administrativo e judicial.
Entretanto, não se deve presumir que a litigiosidade será eliminada, eis que, ao contrário, ela tende a se reconfigurar, as supostas falhas sistêmicas no processamento de notas fiscais podem gerar recolhimentos indevidos e bloqueios de créditos, exigindo medidas judiciais para correção.
Há operações de maior complexidade, como as realizadas na economia digital, em serviços financeiros ou no comércio internacional, que podem não ser adequadamente enquadradas pelos algoritmos da plataforma, dando margem a controvérsias.
Além disso, se o sistema estabelecer critérios de cálculo ou de compensação sem respaldo em lei, haverá inevitável questionamento sobre a violação ao princípio da legalidade.
O papel do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça continuará sendo central nesse processo.
O primeiro será chamado a se pronunciar sobre questões constitucionais ligadas à repartição de receitas e aos direitos fundamentais dos contribuintes.
O segundo manterá sua função de uniformizar a interpretação da legislação infraconstitucional e de resolver disputas sobre créditos e compensações.
8. Considerações finais
A criação da plataforma digital destinada à operacionalização da CBS e do IBS representa um marco na modernização do sistema tributário brasileiro.
A iniciativa traz consigo a promessa de maior eficiência arrecadatória, a possibilidade de reduzir significativamente a sonegação mediante o uso do split payment e a perspectiva de acelerar a devolução de créditos tributários, corrigindo distorções históricas.
Ao mesmo tempo, inaugura um modelo mais transparente e potencialmente simplificado, capaz de substituir a fragmentação normativa por um sistema unificado de cobrança.
Não obstante, os desafios e riscos que acompanham essa inovação são igualmente significativos. A necessidade de adaptação tecnológica imporá elevados custos às empresas, atingindo com maior gravidade aquelas de menor porte.
O recolhimento automático comprometerá a gestão de fluxos de caixa e exigirá revisão de práticas de planejamento financeiro, sendo que a litigiosidade, longe de desaparecer, tenderá a assumir novas formas, agora centradas na confiabilidade do sistema digital e na observância do princípio da legalidade.
Acresce a essas questões a preocupação com a proteção de dados fiscais, cuja concentração em uma plataforma única amplia vulnerabilidades e demanda governança compatível com os parâmetros constitucionais e infraconstitucionais de proteção da privacidade.
Conclui-se, assim, que a plataforma configura um avanço ambivalente. De um lado, inaugura uma era de eficiência, transparência e simplificação.
De outro, impõe ônus econômicos, riscos jurídicos e desafios tecnológicos que não podem ser ignorados.
O êxito da reforma dependerá, em última instância, da capacidade do Estado em harmonizar inovação e segurança jurídica, garantindo neutralidade tributária, respeito aos princípios constitucionais e efetiva proteção dos contribuintes. Apenas desse modo a digitalização da arrecadação se consolidará como verdadeiro instrumento de modernização e de justiça fiscal.
Referências
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília: Senado Federal, 1988.
BRASIL. Código Tributário Nacional. Lei nº 5.172, de 25 de outubro de 1966. Diário Oficial da União, Brasília, 27 out. 1966.
BRASIL. Lei nº 13.709, de 14 de agosto de 2018. Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais. Diário Oficial da União, Brasília, 15 ago. 2018.
BRASIL. Emenda Constitucional nº 132, de 20 de dezembro de 2023. Altera o sistema tributário nacional e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, 21 dez. 2023.
INFOMONEY. Governo prepara plataforma inédita para impostos da reforma tributária, diz portal. São Paulo, 14 set. 2025. Disponível em: https://www.infomoney.com.br/politica/governo-prepara-plataforma-inedita-para-impostos-da-reforma-tributaria-diz-portal/. Acesso em: 14 set. 2025.
Abstract: This article analyzes the legal and technological aspects arising from the implementation of the unprecedented platform announced by the Brazilian federal government to operationalize the Contribution on Goods and Services (CBS) and the Tax on Goods and Services (IBS), core taxes of the tax reform. The system, with the capacity to process around 70 billion electronic documents per year, incorporates the split payment mechanism, enabling real-time tax collection. The research highlights the constitutional principles — legality, equality, contributive capacity —, the impacts on tax compliance and legal certainty, as well as the adaptation costs imposed on companies. It concludes that, although the proposal promises efficiency and tax evasion reduction, it also raises challenges concerning data protection, neutrality of the tax burden, and fiscal litigation.
Keywords: Tax reform. CBS. IBS. Split payment. Tax compliance. Legal certainty.