1. A Família que a Burocracia Não Viu
Imagine o projeto de uma vida. Para um casal de mulheres no Rio Grande do Sul, esse projeto tinha a forma de um berço, de noites em claro e de um amor compartilhado que transbordava, pronto para acolher um novo ser. A via escolhida para concretizar esse sonho foi a inseminação caseira, uma decisão motivada por uma combinação de fatores pessoais, financeiros e de acessibilidade 1. O sonho tomou forma, a gravidez evoluiu e um menino nasceu, saudável e amado. Contudo, ao chegarem ao cartório de registro civil, o sonho colidiu com um muro de formalismo. O pedido para que a certidão de nascimento refletisse a realidade — duas mães — foi negado. A razão? A ausência de uma declaração técnica de uma clínica de reprodução assistida, um requisito do Provimento nº 149/2023 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) 2.
Este momento, que poderia ser apenas uma nota de rodapé burocrática, revela uma tensão fundamental no Direito de Família contemporâneo: o descompasso entre as normas rígidas e a realidade multifacetada das novas configurações familiares. O Direito, em sua essência, pode ser visto como um mapa que nos ajuda a navegar pelo território das relações sociais. Mas o que acontece quando o território muda, quando novos caminhos, rios e montanhas surgem, e o mapa permanece o mesmo? A decisão da Justiça gaúcha de intervir e reconhecer a dupla maternidade neste caso é um ato crucial de cartografia jurídica. É o momento em que o juiz, como um cartógrafo atento, redesenha as linhas do mapa, não com base em trilhas antigas e desbotadas, mas guiado pelas coordenadas magnas da Constituição. Como o conceito de "mãe" e "pai" evoluiu a este ponto? E, mais importante, o que essa canetada do juiz significa, na prática, para a criança no centro dessa história?
2. O Retrato na Parede: A Filiação de Ontem e a de Hoje
Por séculos, o edifício do Direito de Família foi construído sobre duas colunas mestras, aparentemente inabaláveis: a biologia e o casamento. O sistema tradicional de filiação, herdado do Direito Romano e solidificado em códigos como o Código Civil brasileiro de 1916, operava com base em presunções quase matemáticas 3. A maternidade era uma certeza factual, resumida na máxima mater semper certa est (a mãe é sempre certa), pois derivava do fato visível do parto 4. Já a paternidade era uma presunção legal, vinculada ao matrimônio: pater is est quem nuptiae demonstrant (o pai é aquele que o casamento indica).
Nesse modelo, a "verdade real" da filiação era sinônimo de "verdade biológica" 5. Os laços de sangue eram o selo de autenticidade, e qualquer filiação que escapasse a essa moldura — os filhos nascidos fora do casamento, por exemplo — era vista com desconfiança e relegada a uma categoria de direitos inferior. A lei funcionava como um laboratório que buscava, acima de tudo, certificar a origem genética para regular a propriedade e a sucessão.
A Constituição Federal de 1988 foi o terremoto que abalou as fundações desse antigo edifício. Ao inscrever a dignidade da pessoa humana como princípio fundamental e ao proibir categoricamente qualquer tipo de discriminação entre os filhos, "havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção" (Art. 227, § 6º), a Carta Magna provocou uma mudança de paradigma 6. A lei foi forçada a olhar para além do DNA e a fazer uma pergunta mais profunda: quem, de fato, exerce a função de pai e de mãe?
Foi nesse terreno fértil que floresceu o conceito de filiação socioafetiva. Trata-se do reconhecimento jurídico da parentalidade com base no afeto, no cuidado e na construção diária de um vínculo que se manifesta publicamente como uma relação entre pais e filhos, independentemente da origem biológica 7. O Código Civil de 2002, atento a essa nova realidade, sacramentou a mudança ao dispor que o parentesco pode resultar "de consanguinidade ou de outra origem" (Art. 1.593), abrindo a porta para que o afeto fosse oficialmente reconhecido como fonte de parentesco civil 6.
Se o sistema tradicional via a biologia como a única fundação legítima para a casa da família, o ordenamento jurídico atual reconhece que essa casa pode ser erguida sobre um alicerce igualmente sólido: o concreto do afeto, do cuidado diário e do compromisso mútuo. A família deixou de ser apenas seu projeto genético para se tornar, aos olhos da lei, a vida que é vivida dentro de suas paredes. Essa evolução não é um mero ajuste técnico; é uma reavaliação filosófica do que significa "ser família", deslocando o foco de um evento estático (a concepção) para um processo dinâmico e contínuo (o criar, o cuidar, o amar). É essa base doutrinária que torna juridicamente possível o reconhecimento da dupla maternidade em casos como o do Rio Grande do Sul.
3. A Inseminação Caseira: Entre o Desejo e o Vácuo Legal
No Brasil, quem busca as vias da reprodução assistida para formar uma família se depara com um cenário peculiar: não existe uma lei federal específica que regulamente o tema 8. Nesse vácuo legislativo, o Conselho Federal de Medicina (CFM) assumiu um papel protagonista, editando resoluções que estabelecem parâmetros para os procedimentos 9. É crucial entender, contudo, que essas resoluções são normas éticas destinadas a orientar a prática dos médicos dentro de clínicas e hospitais, e não leis que obrigam a sociedade como um todo 10. Elas criam um ambiente altamente controlado para a reprodução assistida, com regras sobre idade máxima, número de embriões a serem implantados e o anonimato de doadores, por exemplo 11.
A inseminação caseira, por sua própria definição, ocorre fora desse ambiente clínico e regulado. É um método que envolve a introdução de sêmen no canal vaginal sem supervisão médica, escolhido por casais por uma variedade de razões, como os altos custos dos tratamentos em clínicas, o desejo por um processo mais íntimo e pessoal ou questões de saúde 1. O conflito jurídico nasce quando essa realidade encontra a burocracia. O já mencionado Provimento do CNJ, ao exigir uma declaração do diretor técnico de uma clínica para efetuar o registro de dupla parentalidade, cria um beco sem saída para essas famílias 2. Elas ficam presas em um paradoxo: para ter seu direito reconhecido, precisam de um documento que é impossível de obter, justamente porque escolheram um método não medicalizado.
Diante desse impasse, o Poder Judiciário, especialmente o Superior Tribunal de Justiça, tem atuado para preencher a lacuna deixada pelo legislador. Em uma decisão paradigmática, o STJ reconheceu a dupla maternidade em um caso de inseminação caseira, estabelecendo uma tese jurídica de enorme importância 12. O tribunal entendeu que o elemento definidor para o estabelecimento da filiação, nessas circunstâncias, não é o método de concepção, mas sim a existência de um projeto parental conjunto e da vontade procriacional 13.
Para fundamentar sua decisão, o STJ fez uma interpretação arrojada: aplicou, por analogia, a presunção de paternidade prevista no Código Civil (Art. 1.597) para o homem casado à companheira em uma união homoafetiva. O raciocínio é que, se a concepção foi planejada e ocorreu durante a união estável, a maternidade da parceira não gestante deve ser presumida, pois deriva do consentimento e do plano familiar compartilhado 12. A Corte foi explícita ao afirmar que "a inseminação artificial ‘caseira’ é protegida pelo ordenamento jurídico brasileiro" 12. A decisão da juíza gaúcha, portanto, não é um ato isolado, mas a aplicação correta de um entendimento já consolidado nos tribunais superiores, ao afirmar que o Estado não pode restringir a formação de famílias por ausência de regulamentação específica, sob pena de violar os princípios da dignidade, da igualdade e, acima de tudo, do melhor interesse da criança 1.
Essa postura judicial revela a criação de uma nova presunção jurídica: a presunção de intenção socioafetiva. A lógica é clara: um casal em união estável que planeja conjuntamente uma gravidez, independentemente do método, demonstra a intenção de exercer a parentalidade em conjunto, e essa intenção gera efeitos jurídicos. O método de concepção torna-se, assim, legalmente irrelevante. A inércia do Legislativo, portanto, acabou por impulsionar uma atuação judicial que não apenas interpreta a lei, mas a molda ativamente para garantir que ela não se torne uma ferramenta de exclusão.
4. O Direito no Plural: A Criança no Centro da Equação
Toda a discussão sobre filiação e novos arranjos familiares converge para um princípio norteador, uma verdadeira estrela polar para o Judiciário: o princípio do melhor interesse da criança, consagrado no artigo 227 da Constituição. Essa diretriz assegura que a criança é o sujeito principal de direitos, e não um mero objeto da relação entre os adultos 2. O reconhecimento da dupla maternidade, sob essa ótica, não é um benefício concedido às mães, mas um direito fundamental da criança a ter sua realidade familiar plenamente reconhecida e protegida.
O primeiro e mais imediato direito garantido é o direito à identidade. Isso vai muito além de ter nomes em um documento. É o direito da criança de ver sua realidade social e afetiva espelhada em sua identidade legal. A decisão judicial determina a inclusão do nome de ambas as mães na certidão de nascimento, bem como dos nomes dos avós de ambas as linhagens maternas 2. Na prática, isso solidifica o senso de pertencimento da criança a duas famílias, a duas ancestralidades. Impede o dano psicológico e social de ter metade de sua família tornada legalmente invisível, respondendo da forma mais completa possível à pergunta fundamental de todo ser humano: "de onde eu vim?".
O reconhecimento da dupla filiação ancora uma série de direitos materiais e de subsistência essenciais para a segurança da criança. Legalmente, a criança passa a ser herdeira necessária de ambas as mães, com plenos direitos sucessórios, assim como qualquer filho biológico ou adotivo 14. A legislação é taxativa ao proibir qualquer distinção de direitos, pessoais ou patrimoniais, entre filhos de origens diversas 7. Isso também estabelece o dever de sustento (pensão alimentícia) para ambas, garantindo que a segurança financeira da criança não repouse sobre os ombros de apenas uma genitora 7. Outros benefícios práticos incluem a inclusão como dependente em planos de saúde, o direito a benefícios previdenciários, como a pensão por morte, e quaisquer outras vantagens vinculadas à filiação.
Para além das questões materiais, a decisão assegura o direito da criança a um ambiente familiar estável e protegido. Ela confirma legalmente que ambas as mães exercem o poder familiar, o que envolve o conjunto de direitos e deveres relacionados à guarda, educação e bem-estar do filho. Garante-se, fundamentalmente, o direito à convivência familiar com ambas as genitoras, um pilar para o desenvolvimento emocional e psicológico saudável, que permanece protegido mesmo que o casal venha a se separar. Contudo, essa vitória no campo da filiação revela novas fronteiras de luta por isonomia, como o debate sobre a concessão de licença-maternidade para a mãe não gestante, um direito ainda não consolidado e que demonstra que o reconhecimento registral é o primeiro passo de uma jornada mais longa pela igualdade plena 15.
5. O Futuro da Família e os Desafios do Direito
Decisões como a proferida no Rio Grande do Sul não são pontos fora da curva. São, na verdade, a consequência lógica de décadas de evolução do Direito de Família, impulsionada pela força normativa da Constituição. Elas representam o triunfo de uma visão de família plural, inclusiva e humanista sobre um modelo antigo, formalista e estritamente biológico. O Judiciário, mais uma vez, assume um papel de vanguarda na proteção de direitos fundamentais, especialmente quando o Legislativo se mantém em silêncio 8. Essas sentenças enviam uma mensagem clara: o direito de constituir família, em toda a sua diversidade, não pode ser feito refém da inércia parlamentar ou de entraves burocráticos.
Embora o reconhecimento no registro civil seja uma vitória monumental, a jornada continua. A padronização de direitos correlatos, como a licença parental para casais homoafetivos, ainda é um desafio 16. O objetivo final é evoluir de um sistema que depende da intervenção judicial caso a caso para um em que os procedimentos administrativos, nos próprios cartórios, estejam plenamente alinhados à realidade constitucional. Um sistema que ofereça segurança e dignidade a todas as famílias, sem a necessidade de uma batalha judicial para afirmar o que já existe no afeto.
O Judiciário, com sua caneta, redesenhou o mapa para que ele finalmente corresponda ao território. O desafio, agora, é garantir que todos os agentes do Estado — do atendente do cartório ao legislador no Congresso — aprendam a ler este novo mapa. Um mapa onde as coordenadas da família não são mais traçadas apenas pela biologia, mas pelos vetores inabaláveis do amor, da intenção e do compromisso.
Fontes utilizadas
Justiça do Rio Grande do Sul reconhece dupla maternidade em caso de inseminação caseira - IBDFAM, setembro 2025, https://ibdfam.org.br/noticias/13243/Justi%C3%A7a+do+Rio+Grande+do+Sul+reconhece+dupla+maternidade+em+caso+de+insemina%C3%A7%C3%A3o+caseira
Justiça reconhece dupla maternidade após inseminação caseira - Último Segundo, setembro 2025, https://ultimosegundo.ig.com.br/brasil/2025-09-15/justica-reconhece-dupla-maternidade-inseminacao-caseira.html
Filiação no ordenamento jurídico brasileiro - Migalhas, setembro 2025, https://www.migalhas.com.br/depeso/279517/filiacao-no-ordenamento-juridico-brasileiro
Código Civil - CC - Título III | DR - Diário da República, setembro 2025, https://diariodarepublica.pt/dr/legislacao-consolidada/decreto-lei/1966-34509075-49970575
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direito ao estado de filiação e direito à - IBDFAM, setembro 2025, https://ibdfam.org.br/_img/congressos/anais/145.pdf
Artigo – Direito Net - Evolução do direito de filiação na Legislação Brasileira - ARPEN-SP, setembro 2025, https://www.arpensp.org.br/noticia/93231
Direito de Família — Filiação socioafetiva | Ministério Público do ..., setembro 2025, https://mppr.mp.br/Pagina/Direito-de-Familia-Filiacao-socioafetiva
Conselho Federal de Medicina tem novas normas para Reprodução Assistida, setembro 2025, https://www12.senado.leg.br/radio/1/noticia/2022/09/21/conselho-federal-de-medicina-tem-novas-normas-para-reproducao-assistida
CFM divulga parâmetros éticos para reprodução assistida - Agência Brasil, setembro 2025, https://agenciabrasil.ebc.com.br/saude/noticia/2022-09/cfm-divulga-parametros-eticos-para-reproducao-assistida
RESOLUÇÃO Nº 2.294 DO CFM: um ano das novas regras. - IBDFAM, setembro 2025, https://ibdfam.org.br/artigos/1828/RESOLU%C3%87%C3%83O+N%C2%BA+2.294+DO+CFM%3A+um+ano+das+novas+regras.
Novas regras sobre reprodução humana assistida: Resolução nº 2320- 22 do CFM - IBDFAM, setembro 2025, https://ibdfam.org.br/artigos/1883/Novas+regras+sobre+reprodu%C3%A7%C3%A3o+humana+assistida%3A+Resolu%C3%A7%C3%A3o+n%C2%BA+2320-+22+do+CFM
STJ reconhece dupla maternidade em inseminação caseira ..., setembro 2025, https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/2024/17102024-Mae-nao-biologica-tera-seu-nome-no-registro-civil-da-filha-gerada-com-semen-de-doador.aspx
A família para além da biologia: a inseminação caseira e o registro civil da dupla maternidade à luz do princípio da afetividade - Editora FÓRUM - Conhecimento Jurídico, setembro 2025, https://editoraforum.com.br/noticias/coluna-direito-civil/a-familia-para-alem-da-biologia-a-inseminacao-caseira-e-o-registro-civil-da-dupla-maternidade-a-luz-do-principio-da-afetividade/
Filiação Socioafetiva. Filho de criação tem direito à herança? | Publicações Jurídicas, setembro 2025, https://www.larissareis.adv.br/publicacoes/filiacao-socioafetiva-filho-de-criacao-tem-direito-a-heranca/
IGUALDADE E LICENÇA MATERNIDADE - constituição, política & instituições, setembro 2025, https://constituicao.direito.usp.br/wp-content/uploads/material/copi-material-igualdade_e_licenca_maternidade.pdf
Dupla maternidade, licença-maternidade e cuidado com as crianças - Brasil de Fato, setembro 2025, https://www.brasildefato.com.br/colunista/ana-pimentel/2023/05/24/dupla-maternidade-licenca-maternidade-e-cuidado-com-as-criancas/