Capa da publicação O voto mecânico de Fux: entre Kelsen e a democracia
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Ministro Luiz Fux: voto positivista mecânico

Resumo:


  • A transformação da monarquia para a República no Brasil envolveu interesses que ultrapassavam o bem-estar do povo, dividindo a população entre "brasileiros puros" e "brasileiros impuros", ambos de origem portuguesa.

  • A Constituição de 1988 materializou não apenas a dignidade humana, mas também o "afeto universalista", sendo uma relação ética que acolhe e protege todas as pessoas.

  • A interpretação judicial sobre o ato obsceno, em normas indeterminadas, mostra a influência da subjetividade do julgador e a necessidade de considerar valores sociais e constitucionais na aplicação do Direito.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

O voto de Luiz Fux na AP 2668 ilustra o garantismo kelseniano, em que fatos e provas se encaixam na norma penal. A decisão revela a tensão entre o positivismo, que garante segurança jurídica, e o pós-positivismo, que protege a democracia ante novas ameaças.

“O problema fundamental da nossa época não é fundamentar os direitos humanos, mas protegê-los.” (Norberto Bobbio)

O povo brasileiro está dividido; sempre esteve em sua história.

A transformação brasileira da monarquia para a República não foi apenas uma ideia de liberdade, mas também fruto de interesses que extrapolavam o “bem-estar do povo”. As ideologias oscilavam entre “brasileiros puros”, os “reinóis”, e “brasileiros impuros”, os “mazombos” — na realidade, ambos eram “portugueses”.

Os “puros” eram nascidos em Portugal e, muitas vezes, enviados ao Brasil como administradores, militares, comerciantes ou funcionários públicos. Consideravam-se socialmente superiores aos brasileiros (mesmo aos brancos descendentes de portugueses nascidos no Brasil), defendiam os interesses da metrópole — Lisboa e a Coroa Portuguesa — e ocupavam frequentemente os melhores cargos públicos e administrativos, gerando ressentimento entre os locais.

Os “impuros” eram filhos de portugueses nascidos no Brasil e, apesar da origem europeia, eram considerados “menos puros” por não terem nascido na metrópole. Muitas vezes, tinham forte identidade regional ou nacional brasileira e, com o tempo, passaram a exigir maior autonomia política e econômica — muitos deles se tornaram líderes da independência.

Percebe-se, assim, que já existia o “nós e eles” como diferenciador entre, respectivamente, “pessoas boas” e “pessoas ruins”. Por séculos, os brasileiros foram categorizados pelo racismo, mesmo sendo um povo miscigenado. Para manter a “aura de igualdade”, vários discursos políticos e elitizados diziam que “o povo” brasileiro é guerreiro, trabalhador, patriota (nacionalista) etc. Ocorre que a falácia, infelizmente, permaneceu apenas na mente de pouquíssimos brasileiros e brasileiras. Como a “maioria” — não em quantidade, mas em força econômica, política e, principalmente, armada — mantinha o status quo da segregação e, consequentemente, das desigualdades sociais abissais, a República, como ideia de “povo”, de 1891 até 1990, em nada transformou o Brasil. Somente com a CRFB/1988 — sim, um clamor do povo jamais consubstanciado em documento solene na história do Brasil — os constituintes originários, numa verdadeira vontade política, materializaram muito mais do que a dignidade humana: materializaram “afeto”. Não “afeto” de igualdade de etnia, de sexualidade, de condição econômica, de nome e sobrenome (elite ou plebe), mas o “afeto universalista”.

Trata-se da expressão de uma verdadeira vontade política que materializa o afeto — não apenas a dignidade humana no sentido jurídico ou formal, mas algo mais emocional, simbólico e coletivo. Na psicanálise, afeto não é sinônimo de sentimento ou emoção no sentido comum. Afeto, em Freud, é uma energia psíquica ligada à representação de algo ou alguém; é a carga emocional que acompanha uma ideia, uma lembrança ou uma imagem. Pode manifestar-se como amor, ódio, medo, angústia, desejo etc.

A CRFB/1988 é, querendo ou não, uma relação ética que acolhe e protege todas as pessoas (arts. 1º, III, e 3º). O afeto, na CRFB/1988, não é pessoal no sentido subjetivo e privado, pois cada indivíduo, por razões subjetivas e influenciado por sua formação psicoemocional — que se inicia no seio familiar, fortemente marcado por valores de pertencimento ao grupo ao qual se sente psiquicamente associado —, ou por experiências que não conseguiu elaborar coerentemente, desenvolve uma compreensão pessoal e também coletiva da realidade vivida.

“Coletividade” também pode remeter a pequeno grupo com o qual há familiaridade de gostos e ideais. Isso não é ruim, a não ser que se excluam pessoas que não façam parte da conexão afetiva (seletiva). É normal, no Estado Democrático de Direito, a existência de conflitos ideológicos — econômicos, políticos, de sexualidade, casamento etc. Quando não há conflito, não se trata de democracia; ditadura é uma construção ideopolítica em que as forças do Estado atuam para favorecer uma única pessoa, um grupo ou grupos de pessoas. É o exemplo clássico sobre direitos civis e políticos na Grécia antiga, onde alguns os detinham plenamente e outros não. Ainda que se fale no Iluminismo (Liberdade, Igualdade e Fraternidade), as estruturas sociais — divisões de classe econômica e política e distinções entre seres humanos (sexualidade, hábitos culturais) — permaneciam excludentes ou apenas semi-integradas. Exemplificativamente, as mulheres eram relativamente capazes no Código Civil de 1916 (Lei nº 3.071, de 1º de janeiro de 1916). Por força da CRFB/1988, houve revogações dos incisos I, II e III do art. 3º do Código Civil (Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002).

As transformações sociais podem ocorrer naturalmente ou ser influenciadas, direta ou indiretamente, de maneira suave ou violenta. Passemos aos costumes. Como modificá-los? Se analisarmos anúncios publicitários envolvendo corpos de mulheres, percebe-se apelo ao instinto sexual, historicamente reprimido na sociedade brasileira. A publicidade, nesse contexto, invoca desejos — inconscientes ou reprimidos —, permitindo, por meio de sua legalidade, forma de sublimação do instinto sexual masculino.

Se compararmos isso com o tipo penal do ato obsceno previsto no Código Penal (Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940), poderíamos perguntar: tais publicidades poderiam conter cenas de mulheres em poses sexuais?

Uma mulher em pose sensual de biquíni, tanto em publicidade quanto nas praias brasileiras, não comete crime de “ato obsceno”; isso decorre de nova concepção, emocional e social, do que seja “ato obsceno”. E, se nas praias as pessoas usassem roupas de banho cobrindo quase totalmente o corpo, a publicidade seria obscena (imoral)? A norma penal restringe, no plano abstrato, comportamentos humanos. Como quase tudo no Direito Penal é relativo e condicionado pelos valores sociais predominantes em dada época, a “moral média” é confluência de valores subjetivos, ainda que divergentes. Para compreendê-la, é necessário conhecer a “fundação” de um grupo, isto é, os motivos comportamentais influenciados pelo clima, por valores religiosos sobre sexualidade humana etc.

Subjetivamente, conforme o momento histórico, podemos ter duas interpretações sobre o ato obsceno e duas convicções pessoais entre duas pessoas na condição de magistrados ou magistradas. O biquíni foi introduzido no Brasil na década de 1950 — um “escândalo” social. Uma pessoa julgadora de ideologia liberal poderia não aplicar a norma do art. 233. (ato obsceno), enquanto outra, de ideologia conservadora, poderia aplicá-la. No século XXI, quando alguma mulher se sentar com as pernas abertas e sem calcinha, o magistrado liberal consideraria isso um ato não obsceno?

Art. 233 – Praticar ato obsceno em lugar público, ou aberto ou exposto ao público:

Pena: detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, ou multa.

A norma jurídica não tem clareza sobre “ato obsceno”. Trata-se de uma “norma penal em branco”, cuja aplicabilidade depende de interpretação judicial e dos valores sociais. Contudo, a tensão social, sim, influencia as decisões judiciais e a motivação de quem julga. Para julgador(a) de orientação “liberal”, a exposição da genitália feminina — apenas visível por determinado ângulo, já que a mulher usa saia ou vestido — representa ato obsceno? Há exposição direta da genitália, ainda que apenas algumas pessoas possam notá-la, conforme o ângulo possível de visualização. A jurisprudência atual entende que a exposição explícita em local público configura ato obsceno.

Tem-se que a norma penal vive na tensão entre norma e valor e, como permite interpretações por ser indeterminada, a valoração da decisão (do magistrado ou da magistrada) é inevitável (subjetividade). A subjetividade não pode ser apenas a de quem decide judicialmente, mas também aquela diante do inconsciente coletivo predominante.

Hans Kelsen, na Teoria Pura do Direito — positivismo jurídico que se abstém de avaliar moral e ética —, reconhece que a norma do art. 233. não informa o que seja, em si, o ato obsceno: corpo sem indumentária; homens e mulheres podem mostrar os mamilos em público? Quem julga o caso analisará costumes, valores sociais e jurisprudência. Há a possibilidade de produção de norma individual por quem julga e sentencia, dentro da “moldura” da norma geral.

Kelsen é positivista, mas não legalista cego; isto é, não se pode aplicar a letra da lei mecanicamente.

Quanto ao art. 226, § 3º, da CRFB/1988, pela letra da lei o casamento seria apenas entre homem e mulher, de sexos biológicos característicos aos gêneros. Quando o Supremo Tribunal Federal aplicou o princípio da igualdade (art. 5º) e o princípio da dignidade humana (art. 1º, III), produziu norma individual e concreta dentro da “moldura” do sistema jurídico — a própria CRFB/1988.

Retornemos à norma penal sobre ato obsceno. No início do século XX, no Brasil, o corpo nu era amplamente condenado, social e juridicamente. A noção de pudor correspondia a uma moral sexual repressiva de matriz “católica institucional” — por possuir fortíssima influência na formação psicoemocional coletiva, dentro e fora dos tribunais. Um(a) julgador(a) “liberal”, nos costumes, poderia absolver quem estivesse de sunga ou biquíni na praia? A Constituição de 1891 não trazia norma sobre a dignidade humana, como existe na CRFB/1988 (art. 1º, III); tampouco havia sistema de controle de constitucionalidade como há atualmente. A interpretação sobre ato obsceno era literal e, principalmente, moralizante, permitindo interpretação pela “lacuna semântica”.

Sim, coloco em xeque um dos pilares do positivismo jurídico tradicional: a crença na neutralidade e na limitação objetiva da interpretação judicial em uma “moldura” normativa fechada. A questão é filosófico-jurídica.

Ora, se não há pluralidade de ideologias (religiosas, políticas, econômicas etc.), as normas jurídicas expressam tão somente uma única visão de mundo, que se materializa nas decisões dos “fazedores das leis” (Poder Legislativo). O Poder Judiciário, então, seria apenas um aplicador — tipo Ctrl+C, Ctrl+V — da literalidade das normas jurídicas.

Inexistindo qualquer descrição pormenorizada sobre “ato obsceno” e, ausente a CRFB/1988, as decisões judiciais, dentro de uma moldura ideológica formal, escondem e, ao mesmo tempo, revelam a carga ideológica da decisão judicial sob o manto da neutralidade. Kelsen propôs que a norma superior (Constituição Federal) estabelece a moldura no ápice das demais normas (infraconstitucionais), e o julgador escolhe dentro dessa “moldura”, validando a escolha feita na decisão. Ocorre que, quando a norma é extremamente indeterminada, como no caso do “ato obsceno”, a decisão do julgador se alarga, podendo não mais permanecer na “moldura”. Logo, a “liberdade interpretativa” do(a) juiz(a) se mistura com sua adesão inconsciente aos valores hegemônicos. Conclui-se que o “controle” da interpretação era, na prática, um controle ideológico e cultural, e não propriamente normativo.

Segunda observação:

"Na sua Teoria Pura do Direito, Kelsen afirmava: “Segundo o Direito dos Estados totalitários, o governo tem o poder para encerrar em campos de concentração, forçar a quaisquer trabalhos e até matar os indivíduos de opinião, religião ou raça indesejável. Podemos condenar com a maior veemência tais medidas, mas o que não podemos é considerá-las como situando-se fora da ordem jurídica desses Estados."

(NUNES JÚNIOR, Flávio Martins Alves. Curso de direito constitucional / Flávio Martins Alves Nunes Júnior. – 3. ed. – São Paulo: Saraiva Educação, 2019)

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Como isso se alinha às explicações sobre ato obsceno se a norma não informa o que seja ato obsceno, numa perspectiva anterior à CF de 1988 e antes dos movimentos sociais de 1950? A frase transcrita acima demonstra a legalidade do ato, sem análises de moralidade, numa verificação sob a ótica dos direitos humanos atuais.

Tanto a norma do art. 233. do Código Penal (Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940) quanto as normas nazistas são normas jurídicas porque foram criadas segundo processo formal de criação (Poder Legislativo, Executivo ou ambos). Agora, como aplicar esse raciocínio à ideia de “ato obsceno”, uma norma indeterminada, num contexto moralmente homogêneo e sem contraponto social institucional? A norma foi criada por processo formal. O Poder Judiciário, em sua decisão sobre ato obsceno — lembrando que tal decisão é anterior aos movimentos sociais de 1950 e também anterior à CF de 1988 —, atuará dentro da “moldura” do ordenamento jurídico brasileiro. Como a norma do art. 233. do Código Penal não define o conteúdo do ato obsceno — mamilos à luz dos olhos públicos? Andar sem cueca ou sem calcinha de modo que o tecido da calça ou do vestido revele o “ato obsceno”? —, o(a) julgador(a) preencherá a norma do art. 233. pelo clamor social, pela subjetividade de quem julga ou, em momento posterior, pela própria CF de 1988 (arts. 1º, III, e 3º).

No entanto, como dito, a questão é anterior aos movimentos sociais e à CF de 1988. Neste caso, se a sociedade for moralmente homogênea (como era antes), o juiz preencherá esse conteúdo com os valores dominantes (patriarcais, conservadores, moralistas, cristãos etc.). De certa maneira, quando a norma não define objetivamente o conteúdo, a interpretação é ampla e quem julga atua como legislador ideológico, e não apenas como aplicador da norma jurídica. E, como não havia pluralidade ideológica antes da CF de 1988 e dos movimentos sociais de 1950, inexistiam forças institucionais e discursivas, dentro e fora dos Poderes da República (Executivo, Legislativo e Judiciário), para contestar o que é ato obsceno.

Quando a norma jurídica não conceitua, como no caso do ato obsceno, a decisão — embora formalmente dentro de uma moldura — é profundamente ideológica, sem controle material. A “neutralidade” e o “controle” da interpretação judicial, no positivismo formalista, são ilusórios quando a norma é indeterminada, o contexto social é homogêneo e não há controle democrático nem pluralidade de ideologias entre julgadores e julgadoras.

O positivismo jurídico sofreu duras críticas após a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), em razão dos horrores dos campos de concentração. O pós-positivismo surgiu (Ferrajoli, Dworkin etc.) justamente para afirmar a dignidade humana. Contemporaneamente, a validade formal não é suficiente: o ordenamento jurídico é legítimo quando respeita os direitos fundamentais, os princípios de justiça e as garantias contra arbitrariedades. Exemplo disso é a aplicação da Lei de Segurança Nacional, utilizada por Estados ditatoriais como o de Getúlio Vargas e durante o Golpe Militar (1964-1985).


A mão e a luva: o caso da “trama golpista” (AP 2668)

Ao votar pela absolvição de Jair Bolsonaro na ação penal relativa à chamada “trama golpista”, o ministro Luiz Fux entendeu não haver provas suficientes para responsabilizá-lo criminalmente 1. Também afirmou que não cabe ao STF fazer “juízo político” — isto é, avaliar o que é bom ou ruim, conveniente ou inconveniente —, ressaltando que o papel da Corte é decidir segundo o que está previsto em lei, distinguindo o que é legal do que é ilegal 2.

Fux invocou princípios constitucionais e evitou o uso político no Direito Penal. Ou seja, sua interpretação foi estritamente garantista, mesmo diante das pressões públicas (antibolsonaristas). “A luva que se encaixa na mão” é justamente a ideia de que a decisão judicial só pode ser tomada quando os fatos se ajustam à norma penal vigente e com respeito às garantias constitucionais. Fux não criou “Tribunal de Exceção”, não inverteu o “ônus da prova” e aplicou o devido processo legal e a presunção de inocência. Sim, Fux foi teórico, coerente com Kelsen e com o ordenamento jurídico brasileiro.

Alguns dos pontos debatidos foram: atos preparatórios e atos executórios; inadmissibilidade de provas ilícitas; legalidade das prisões processuais.

O Tribunal de Nuremberg, com efeito, foi um Tribunal de Exceção. O direito de soberania foi violado pelos Aliados, já que estes também cometeram “crimes contra a humanidade” em seus próprios Estados. Réus foram condenados com base em crimes que, à época, não estavam claramente definidos no Direito Internacional, sem uma estrutura processual plenamente garantista. Esse episódio fundamentou o pós-positivismo jurídico: a ideia de que a validade da norma não é suficiente — ela precisa ser também justa e moralmente aceitável.

No positivismo formalista (Fux), a decisão judicial só pode se basear na norma vigente e na prova concreta; a função do juiz é aplicar o Direito existente, ainda que politicamente custoso. Já no pós-positivismo (Alexandre de Moraes, entre outros), a decisão judicial deve considerar também os valores constitucionais, princípios democráticos e o contexto. Houve, assim, um conflito de modelos jurídicos e filosóficos, reafirmando que o Direito não é “ciência exata”.

O Direito é lento, seja na formação de decisões judiciais, seja na produção de novas normas pelo Poder Legislativo. Atualmente, mostra-se ainda mais lento diante das Big Techs, em que informações são transmitidas, modificadas e disseminadas como “fake news” em ritmo inédito. Ou seja, o Direito é reativo, lento e procedimental, enquanto os golpes são velozes, estratégicos e frequentemente simbólicos. A formação de provas exige tempo e cooperação, até internacional, dentro da legalidade, especialmente em casos de violação de direitos humanos e quebra de sigilo. Todo golpe de Estado ou ato golpista se vale dos movimentos sociais para agir, ao passo que o excesso de formalismo legal revela-se burocrático e ineficaz.

Surge, então, a questão: o Direito positivo atual, com todas as suas garantias e lentidão, é capaz de responder com eficácia às ameaças à democracia, sobretudo quando tais ameaças usam a própria legalidade para se legitimar?

O STF tem recorrido a inteligências artificiais, diante do volume de processos e da omissão do Legislativo e do Executivo. Nas Big Techs, as (des)informações circulam em velocidade jamais vista na história. Para uma resposta adequada, é necessário também o uso de tecnologia. Eis um ponto fundamental: tribunais e advogados já utilizam IA — mas quem não deveria utilizar?

O Direito Penal clássico não é suficiente para lidar com novos tipos de crimes políticos e digitais, como:

  • planejamento de golpe via redes sociais;

  • atos simbólicos ou discursos com efeitos reais;

  • participações difusas (influência, instigação, apoio financeiro, desinformação).

Nesse contexto, a “moldura normativa” kelseniana mostra-se frágil, sobretudo quando a norma é vaga e o contexto é instável. O positivismo pressupõe um mundo sólido, enquanto a realidade do século XXI é “líquida”, “instável”. A tensão entre segurança jurídica e proteção da democracia permanece aberta — talvez o Direito do século XXI precise redesenhar seus próprios fundamentos para enfrentá-la.

A conclusão? Fux está correto, assim como os demais ministros, cada qual com sua percepção de legalidade, dignidade humana e persecução estatal.

Resta indagar: é possível aprimorar as normas jurídicas em defesa do Estado Democrático de Direito contra atentados ao próprio Estado de Direito, combater o “lawfare” e controlar as “fake news” sem violar as garantias fundamentais?

O Estado Democrático de Direito brasileiro é uma “moldura sólida” estabelecida pela Constituição da República de 1988, cujo fundamento é a dignidade da pessoa humana. Quando movimentos sociais e políticos, sobretudo estrangeiros, interferem para minar avanços sociais e liberdades individuais, não há como manter fidelidade cega ao formalismo jurídico restrito. Beccaria foi — e ainda é — um divisor de águas na defesa da dignidade humana contra os arbítrios do Estado ou da sociedade que pretenda retroceder a “tempos sombrios”. Ainda que Beccaria não tivesse acesso à rede mundial de computadores, tampouco às Big Techs, sua defesa da dignidade humana permanece atual: hoje, corporações privadas exploram a “liberdade de expressão” para lucrar com pedofilia, atos antidemocráticos e manipulação psicoemocional de crianças e adolescentes em jogos mortais.

A Constituição de 1988 representa, de fato, um marco civilizatório. Ao colocar a dignidade da pessoa humana como fundamento do Estado (art. 1º, III), ela:

  • eleva os direitos humanos a pilar estruturante da República;

  • reconhece não só os direitos civis e políticos, mas também os sociais, econômicos e culturais;

  • impõe ao Estado o dever de proteção ativa contra violações, inclusive quando praticadas por atores privados.

Isso impõe que todo o sistema jurídico, inclusive o penal, opere para preservar e promover a dignidade, e não apenas punir formalmente.

A CRFB/1988 é, portanto, uma moldura sólida da dignidade humana. Entretanto, a fidelidade cega ao formalismo jurídico mecanicista equivale a uma permissão, ainda que ingênua, para violações dos direitos humanos. É uma porta aberta ao voraz backlash.


Notas

1 https://www.oliberal.com/politica/juiz-nao-pode-aplicar-pena-que-nao-esteja-estabelecida-na-lei-aval

2 https://agenciabrasil.ebc.com.br/justica/noticia/2025-09/fux-cita-inompetencia-do-stf-para-julgar-ac

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Sobre o autor
Sérgio Henrique da Silva Pereira

Articulista/colunista nos sites: Academia Brasileira de Direito (ABDIR), Âmbito Jurídico, Conteúdo Jurídico, Editora JC, Governet Editora [Revista Governet – A Revista do Administrador Público], JusBrasil, JusNavigandi, JurisWay, Portal Educação, Revista do Portal Jurídico Investidura. Participação na Rádio Justiça. Podcast SHSPJORNAL

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PEREIRA, Sérgio Henrique Silva. Ministro Luiz Fux: voto positivista mecânico. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 30, n. 8116, 20 set. 2025. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/115684. Acesso em: 5 dez. 2025.

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