Capa da publicação A moral kantiana e o erro dos filósofos do direito
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A metafísica da doutrina do Direito em Kant.

Moral, Ética e Direito: uma crítica à interpretação dos filósofos do Direito

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A pesquisa pergunta se a teoria moral de Kant foi mal interpretada pelos filósofos do direito e revisa seus conceitos de moral, ética e direito. Mostra-se, com rigor jurídico, que a leitura tradicional confunde moral e ética e simplifica o direito como mera heteronomia.

Resumo: A teoria moral de Kant tem sido mal compreendida pelos filósofos do Direito. Partindo do contexto histórico em que Kant viveu, investigou-se a sua filosofia moral, buscando estabelecer uma boa interpretação da Metafísica da doutrina do direito, lapidando os conceitos de moral, direito e ética, a fim de compreender o projeto metafísico moral do autor, a partir de uma interpretação mais moderna. Ademais, foram investigadas as obras de autores das áreas de Introdução ao Estudo do Direito, Teoria Geral do Direito e Filosofia do Direito, disciplinas ministradas no curso de Direito, e se percebeu que há confusão entre os conceitos de moral e ética, e há uma simplificação na conceituação do direito como heteronomia.

Palavras–chave: direito; ética; metafísica; moral.

Sumário: Introdução: a problemática da relação entre moral, direito e ética em Immanuel Kant e os filósofos do direito. 1. O contexto histórico de Immanuel Kant: entendendo a motivação da sua filosofia moral. 2. O projeto metafísico da moral kantiana: moral, ética e direito em A metafisica dos costumes. 3. Liberdade, dever, máximas e imperativo categórico. 4. A doutrina do direito em Kant: direito em sentindo amplo e direito em sentido estrito. 5. A moderna interpretação da teoria moral de Kant: uma crítica a confusão dos filósofos do direito. Conclusões.


Introdução: a problemática da relação entre moral, direito e ética em Immanuel Kant e os filósofos do direito

Immanuel Kant foi um dos pensadores mais importantes dentro da tradição filosófica ocidental, sendo um dos pilares do idealismo alemão e um dos principais nomes - senão o principal -, dentro da metafísica dos costumes, ou se se preferir, da metafísica da moral. Apesar de ter vivido entre os séculos XVIII e XIX, falar de teoria dos valores, na atualidade, é falar inescapavelmente, conquanto indiretamente, do sistema moral kantiana. Desta feita, aquele será o marco teórico do trabalho.

A filosofia kantiana é bastante complexa e extensa, exigindo uma evidente delimitação epistemológica, assim interessa aqui sobretudo a sua filosofia prática ou filosofia moral. Nesta senda, com o escopo de aprofundar os estudos da filosofia kantiana do direito, investigar-se-á a relação entre moral, direito e ética. Malgrado muito já ter sido escrito sobre isto, o problema da delimitação de tais conceitos ainda é atual, porquanto a sua relação não é clara. Assim, a relação entre os conceitos de moral, direito e ética requer um esclarecimento mais preciso.

Ademais, da mesma forma pode ser dito da definição do direto dada por Kant, o que demonstra a importância do presente trabalho, pois Kant oferece bons subsídios para (re) pensar e fundamentar a distinção entre moral, ética e direito. Outrossim, na obra A Metafísica dos Costumes, cerne do presente estudo, Kant tentou buscar um critério tão bem fundamentado que pudesse legitimar o agir moral em qualquer situação, tornando fácil compreender o que é moral e o que é imoral universalmente.3

Contudo, algumas interpretações mais antigas, por não compreenderem muito bem a correlação entre moral, direito e ética, no pensamento kantiano, costumam misturar conceitos e fazer confusão na hora de distinguir direito e moral. Inclusive, no âmbito da Introdução ao Estudo do Direito, Teoria Geral do Direito e Filosofia do Direito, disciplinas lecionadas no Curso de Direito, ainda predominam tais interpretações, as quais confundem moral e ética e se equivocam quanto a algumas características diferenciadoras entre ética e direito. Assim, a relação entre os conceitos de moral, direito e ética requer um esclarecimento mais preciso.

Por fim, os objetivos, aos quais almeja o presente trabalho, consistem em: 1. objetivo geral: estudar interpretar e delimitar a relação entre moral, direito e ética, pois já se fez grande confusão entre os três conceitos; consequentemente, 2. objetivo específico: oferecer uma interpretação do texto de Kant para eleger bons critérios para distinguir direito e ética, a partir das interpretações mais modernas, as quais se mostram mais coerentes com o texto kantiano e perscrutar as obras de pesquisadores e professores das áreas de Introdução ao Estudo do Direito, Teoria Geral do Direito e Filosofia do Direito, a fim de perceber se a leitura de tais conceitos kantianos é feita de modo correto.


1. O contexto histórico de Immanuel Kant: entendendo a motivação da sua filosofia moral

Immanuel Kant nasceu em 1724 e morreu em 1804, vivendo em Königsberg4, cidade da antiga Prússia. Filho de Johann Georg Kant, homem honesto e trabalhador e que tinha horror à mentira, e de Anna Regina Reuter, mulher muito religiosa que lhe ministrou sólida educação moral e, antes de morrer, internou-o no Collegium Fridericianum (1743-1740). Sua família era luterana, e, por causa disso, teve uma educação austera numa escola pietista. Todavia, tornou-se muito cético relativamente à religião, embora preservasse a crença em Deus, mas como algo que não pode ser alvo da cognição, ou seja, que está para além da experiência da razão.

Em 1740, ingressou na universidade, onde foi influenciado por Martin Knuten, discípulo de Wolff, cujo método é um racionalismo sistemático, que se esforça por julgar tudo à mão de princípios – e não de sentimentos –, e por deduzir logicamente cada proposição. Essa senda será inexoravelmente o guia do pensamento filosófico de Kant5. Tal será a impressão quando adentrarmos na filosofia kantiana, ficando claro a argumentação estrita e o proceder científico de Wolff, um dos maiores dogmáticos, segundo o metódico e pouco romântico professor Kant.6

Historicamente, o autor se situa no século XVIII, o ápice do Iluminismo, movimento histórico-filosófico de cunho antropocentrista e racionalista, que se iniciou na França e se espalhou por toda a Europa, buscando uma fundamentação teórica para a derrocada do Antigo Regime, o qual representava a combalida monarquia de direito divino, que deveria ser superada. O movimento revolucionário, que desembocou na Revolução Francesa (1789), era liderado pela burguesia, que arregimentou camponeses- prometendo igualdade, liberdade e fraternidade -, contra a nobreza feudal, o clero e o rei.

Ademais, segundo asseverou o próprio Kant7, “o Iluminismo é a saída do homem da sua menoridade de que ele próprio é culpado. A menoridade é a incapacidade de se servir do entendimento sem a orientação de outrem”. Neste aforisma, há uma forte crítica à concepção de autoridade religiosa, oriunda da Idade Média, fundamentada na heteronomia do pensar, há verdadeiro ode à razão e à liberdade: é livre o homem que tem a possibilidade de obedecer apenas ao seu próprio entendimento (sua própria razão).

Nessa senda, a maioridade só pode ser alcançada com as “luzes” da razão e as explicações da teologia perdem espaço, a característica distintiva do homem reside na faculdade de poder obedecer apenas à razão, ao contrário dos animais que são escravos dos seus instintos, apetites e inclinações naturais. Kant diz que para o Iluminismo nada mais se exige do que a liberdade, a qual consiste em “fazer uso público da sua razão em todos os elementos”.8 Destarte, poder-se-ia sintetizar que o homem é livre na medida em que é racional, autolegislador, tendo a possibilidade de escolher obedecer somente à sua própria consciência, o dado principal passa a ser o homem em si mesmo, orgulhoso de sua força racional e de sua liberdade, capaz de constituir por si mesmo o regramento da sua conduta.9

O processo de modernização engendra a diferenciação de esferas axiológicas que passam a ter âmbitos de incidência próprios. A modernidade, na qual Kant se insere, vai romper a articulação que existia entre o saber, a ética, o direito e a arte e, de outro, a teologia e a metafísica. Antes disto, passava-se de uma esfera a outra sem sobressaltos, havendo uma hegemonia da religião, consolidada pela tradição pós-Império Romano10, quando a Igreja Apostólica Romana se solidifica na cultura europeia ocidental.

As velhas crenças, o status quo, a monarquia, as “trevas medievais”, o monopólio do poder através da fundamentação teológica cediam espaço para a ideia de liberdade11. Esta foi o cerne das revoluções liberais, que buscavam abolir todos os entraves que impedissem o progresso da burguesia, a qual deveria ter a máxima liberdade econômica para produzir suas riquezas. Assim, pensadores iluministas buscavam fundamentos ideológicos para sustentar o movimento burguês de emancipação em relação à Igreja e ao Estado Absolutista.

Dessa feita, houve as unificações nacionais12, em torno dos Estados Nacionais, os quais passariam a ser regidos por ordenamentos jurídicos próprios. Logo, doravante, a Modernidade, na qual Kant estava inserido, se assenta na distinção entre o campo do direito, o campo da ética e o campo do religioso, pois o poder secular (o Estado e o Direito) não mais poderia estar imbricado em crenças teológicas. Nesse diapasão, a onipotência e o monopólio da Igreja foram quebrados, logo doravante essa passaria a ter como âmbito de atuação somente a seara religiosa.

Apreendido o contexto histórico, a fim de melhor entender a motivação da filosofia moral de Kant, faz-se mister investigar a distinção/correlação entre os conceitos de moral, ética e direito.


2. O projeto metafísico da moral kantiana: moral, ética e direito em A metafisica dos costumes

Inicialmente, a implementação do projeto de análise transcendental de Kant ganhou corpo com a elaboração de uma metafísica da natureza e de uma metafísica dos costumes, as quais deveriam ser precedidas por uma crítica da razão pura e de uma crítica da razão prática, que teriam o papel de assentar o terreno para a construção do edifício da metafísica. Dessa maneira, o projeto do filósofo alemão é no sentido de fundamentar o novo conhecimento científico, que atingia o seu paradigma no modelo da física newtoniana e, de outro lado, a fundamentação da obrigação moral na ideia de liberdade, concebida como autonomia racional.13

Ao longo do trabalho, utilizar-se-á como bibliografia primária a obra A Metafísica dos Costumes 14, que também pode ser traduzida por Metafísica da Moral, a qual pretendia complementar a Fundamentação da Metafísica dos Costumes, criando um sistema da doutrina geral dos deveres (deveres jurídicos e deveres de virtude), baseado no princípio supremo da moralidade e no método da filosofia transcendental. Tal sistema moral a priori de fundamento metafísico e formal serviria como norte para o agir moral humano e, consequentemente, para a vida em sociedade.

Ademais, A Metafísica dos costumes se divide em Princípios Metafísicos da Doutrina do Direito e Princípios Metafísicos da Doutrina da Virtude. Em janeiro de 1797, cerca de 3 meses ates do aniversário de setenta e três anos de Kant, foi publicada a primeira parte e a segunda parte veio a ser estampada em agosto do mesmo ano. Contudo, a junção das duas partes num único tomo só ocorreu, após o falecimento de Kant. Na primeira parte da obra, há a exposição da doutrina metafísica do direito, a qual deve ser pura e unicamente derivada da razão, sendo um norte para a variedade empírica desse. O sistema jurídico é a priori, ou seja, uma condição de possibilidade para permitir a existência dos direitos empíricos decorrentes daquele.15

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Apresentadas tais explicações propedêuticas, passe-se ao estudo do trecho que nos interessa.

A faculdade de desejar, na medida em que é norteadora da ação, se concretiza na liberdade de fazer ou não fazer, na medida em que esta faculdade esteja ligada à consciência de que a ação é capaz de produzir o objeto, chama-se arbítrio. Já a vontade é o fundamento de determinação do arbítrio e, assim o arbítrio que pode ser determinado pela razão pura se chama de livre arbítrio e o arbítrio que só é determinado pelas inclinações (impulsos sensíveis) é o arbítrio animal. Desse modo, o arbítrio humano é influenciado, mas não determinado, pelos impulsos empíricos, porém pode ser puro, se guiado unicamente por uma vontade pura.

Chega-se, pois, ao conceito negativo de liberdade, a saber, a liberdade que independe de impulsos sensíveis; por outro lado, conceito positivo de liberdade é a faculdade que a razão pura tem de ser por si mesma prática.16 Ou seja, neste último conceito o homem é livre na medida em que tem a possibilidade de obedecer apena à própria racionalidade, sendo a razão pura a legisladora do agir moral. Para isso, a máxima da ação deve poder ser convertida em lei universal e fundamento para determinação do arbítrio.

Em importante ponto, Kant diz:

Estas leis da liberdade chamam-se morais, em contraposição às leis da natureza. Na medida em que estas leis morais se referem a acções meramente externas e à sua normatividade, denominam-se jurídicas, mas se exigem, além disso, que elas próprias (as leis) constituam o fundamento determinante das acções são leis éticas e então diz-se que a conformidade com as leis jurídicas é a legalidade da acção e a conformidade com as leis éticas a moralidade. A liberdade a que as primeiras se referem é a liberdade tanto no exercício externo como no interno do arbítrio, sempre que este se encontra determinado pelas leis da razão. (...) De igual modo, quer a liberdade seja considerada no exercício externo quer no exercício interno do arbítrio as suas leis enquanto leis práticas puras da razão para o arbítrio livre em geral, têm que ser também fundamentos internos de determinação deste último, pese embora nem sempre ser possível considerá-las sob este aspecto.17

Neste trecho, há a delimitação entre moral, ética e direito. Fica bem claro que a moral (em sentido amplo) são as leis da liberdade, essa se divide em direito e ética (moral em sentido estrito), logo a doutrina da moralidade tem como objeto as leis da liberdade, subdividas por Kant em leis jurídicas e leis éticas. As leis jurídicas, pois, são leis da liberdade que se referem apenas a ações que tem algum tipo de desdobramento externo e a sua normatividade chama-se legalidade, ou seja, a conformidade da ação ao direito.

Por outro lado, as leis éticas são leis da liberdade que exigem que as próprias leis sejam o fundamento das ações (fundamentos internos de determinação), chamando-se moralidade a conformidade com as leis éticas. Estas, se referem a liberdade tanto na faceta externa como interna, assim não mentir é uma ação que diz respeito à liberdade interna, sendo um dever interno, por outro lado, não matar faz parte de uma ação/dever externo (liberdade externa), pois têm um desdobramento empírico no mundo exterior, sendo os dois comandos regidos pela ética. Ratificando tal interpretação, vem à baila os dizeres de Kant sobre a ética (filosofia moralis):

Mais tarde, considerou-se adequado aplicar este nome só a uma parte da doutrina dos costumes, a saber, à doutrina dos deveres que não estão submetidos a leis externa (para o que se julgou adequada na Alemanha a designação doutrina da virtude): de modo que afora o sistema da doutrina geral dos deveres divide-se no sistema da doutrina do Direito (ius), que trata de leis externas, e no sistema da doutrina da virtude (ethica) que não diz respeito a tais leis; podemos, pois, atermo-nos a uma tal definição.18

As leis morais em sentido estrito (leis éticas) só valem se fundamentadas a priori, não podendo ser fundamentada em uma doutrina da felicidade, como queriam os utilitaristas; o comando deve simplesmente ser obedecido, sem atenção às inclinações, pois é válido por si mesmo e a razão comanda o agir, sem levar em conta sentimentos de prazer e desprazer. Por isso, tal sistema é metafísico, é uma legislação universal a priori, ou seja, decorre da própria razão e independe da experiência.

Assim, a novidade no projeto kantiano de uma metafísica dos costumes consiste, no método transcendental de fundamentação da obrigação moral, sendo o princípio supremo da moralidade consolidado na ideia de uma vontade pura e a priori, independente da experiência empírica. Somente com a ideia de uma vontade autônoma, lastreada apenas na racionalidade do próprio sujeito, se pode dar à lei moral a forma universal, senda a razão a única legisladora para o arbítrio racional (legislação interna).

Apresenta, pois uma fundamentação da obrigação moral que decorre do princípio da autonomia (legislação interior). Tal concepção se refletirá na teorização jurídico-política para fundamentar o ideal constitucional de Estado de Direito, estabelecendo a necessidade racional do Direito e do Estado na proteção peremptória dos direitos individuais.

Ademais, toda legislação, seja interna seja externa, possui dois elementos: a lei, que converte a ação em dever, ou seja, que ordena, e o móbil, que é o motivo, o fundamento de determinação do arbítrio para que realize o dever imposto pela lei.19 Assim, se observarmos o comando que diz “não deves matar”, isto é a lei; se o sujeito não mata alguém por ter medo de ser preso ou de ir ao inferno, isto é o móbil do seu arbítrio. Dessa maneira, o ponto central que Kant usa para distinguir o direito da ética gira em torno justamente do móbil de cada um. Nesse sentido: A legislação que faz de uma ação um dever e simultaneamente desse dever um móbil é a ética. Mas a que não inclui o último na lei e que, consequentemente, admite um móbil diferente da ideia do próprio dever é jurídica.20

Percebe-se que os móbiles do Direito não precisam extrair seus fundamentos do próprio dever, como a ética, mas podem extrair de causas “patológicas” (sensíveis/empíricas) de determinação do arbítrio, das inclinações, decorrentes da compulsividade (coercibilidade) da legislação jurídica. Sendo assim, a conformação de uma ação ao direito se chama legalidade, não importando o fundamento subjetivo do agir (móbil); por outro lado, a ação que tomar o próprio dever decorrente da lei como fundamento subjetivo do agir, como móbil, se chama moralidade (eticidade).

A legalidade só exige que a ação esteja em conformidade ao dever (conformidade externa), já a eticidade exige que a lei seja cumprida não somente conforme ao dever, mas por dever 21 (conformidade interna), logo é meritória ou virtuosa a ação que alguém faz por dever, mesmo que não possa ser obrigado pelo direito. Logo, os deveres jurídicos são os que possibilitam uma legislação externa, não perquirindo os fins, já os deveres de virtude (Tugendpflichten) são aqueles que têm como fim o próprio dever, sendo um ato interior do espírito (perfeição prático-moral) e uma verdadeira doutrina dos fins.

Quanto maiores são os obstáculos naturais (sensíveis/inclinações) a serem superados por uma ação, pelo simples amor ao dever, mais ética, virtuosa e meritória ela é. Assim, pode-se dizer que é relativamente fácil agir eticamente quando o agente vai fazer uma obra de caridade na igreja e irá se sentir bem, ganhar uma boa reputação perante os conhecidos e se sentir útil. Por outro lado, as inclinações no sentido contrário ao dever parecem ser bem maiores quando o sujeito fica sozinho numa casa de praia, sua mulher viajou, não há nenhum conhecido por perto e a vizinha lhe convida para tomar um banho de piscina.

Não há dúvida de que, no segundo exemplo, o indivíduo que conseguisse resistir aos impulsos sensíveis e recusa o convite agiria com mais mérito ético do que no primeiro, tendo em vista os obstáculos sensíveis que teria que superar para obedecer ao dever ético do não-adultério. Assim, fazer o certo tão somente porque é o certo constitui uma ação meritória para Kant, ressalte-se que o sentimento de felicidade pode decorrer do agir moral, mas apenas como consequência da obediência ao dever e nunca como a causa dessa.22

Os deveres do direito (Rechtspflichten) podem ser deveres externos, pois o móbil da ação não precisa ser o próprio dever. Assim, esse, por exemplo, só exige a conduta de não matar, sendo relevante apenas a conformidade à prescrição, se o indivíduo, pois, não mata por medo de ser preso ou por achar errado, para a legislação jurídica, isto é irrelevante. A legislação ética, converte em dever ações internas, sem, contudo excluir as externas, referindo-se a tudo o que é dever em geral.

Contudo, a legislação ética é uma legislação interna, pois o móbil da ação obrigatoriamente tem que ser o próprio dever, ou seja, a causalidade da ação decorre de algo interno, a saber, o próprio dever. “Disso infere-se que todos os deveres, simplesmente porque são deveres, pertencem à ética, o que, todavia, não quer dizer que a legislação de que procede, esteja por isso contida na ética”. 23

Pense-se no dever de benevolência, este é um dever ético (de virtude), um dever interno; por outro lado, não matar é um dever externo que é simultaneamente ético e jurídico. Fica claro, pois, que o dever jurídico, como um tipo específico de dever, no último exemplo, se intersecciona com a ética, mas nem por causa disso a legislação jurídica é uma legislação ética, porquanto esta exige fundamentos internos e aquela não exige, possuindo uma maneira externa para obrigar (coerção).

Destarte, a ética pode se interconectar com o Direito, ou seja, não se excluem mutuamente, logo, se um indivíduo não mata outro porque acha errado, está concomitantemente obedecendo à ética e ao direito. Mas se não mata, pois tem medo da coerção estatal ou de que sua mulher o deixe por sabê-lo assassino, está agindo legalmente, mas não eticamente. Assim, o direito não exige que o comando seja obedecido por puro amor ao dever como a ética, mas, caso isso aconteça, a legalidade foi mantida e a moralidade (eticidade) também o foi; logo, se o homicídio não é cometido por obediência ao dever de não matar, por medo de ir para o inferno, pelo temor da sanção estatal ou por preguiça, isto não é relevante para o direito. Apenas a ética se importa com o móbil, sendo o dever cumprido de modo completamente desinteressado.24

Dessa feita, ética e direito são diferentes sob o ponto de vista da motivação, mesmo que, sob o ponto de vista da lei, o comando das duas possa ser idêntico em alguns casos, com no caso do homicídio supracitado. O direito, pois, admite a motivação externa ou interna (de virtude), por outro lado, a ética só admite a motivação interna.

Assim, a diferença fundamental, como foi dito, entre ética e direito reside na diferença de móbiles. A legislação ética é interna - ainda que os deveres sejam externos, ou seja, que tenham um desdobramento externo -, pois o móbil é interno, a saber, agir por dever, assumindo a perspectiva de uma universalidade da razão pura na determinação da vontade moral. Por outro lado, a legislação jurídica é a que pode ser externa ou interna, porquanto o móbil pode ser externo ou interno, mas isso não é relevante para o direito (legalidade), como visto, mas apenas a conformação externa com o dever.25 Logo, apesar de ética e direito poderem ter eventualmente deveres comuns, o modo de obrigar (móbil) é bem diferente.

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Sobre os autores
Eduardo Almeida Pellerin da Silva

Especialista em Processo Civil pela Faculdade Damásio. Analista judiciário-área judiciária do TRT2. 1. Formação acadêmica: graduação em Direito pela Faculdade de Direito do Recife (FDR)/Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) (2016) e especialização em Processo Civil pela Faculdade Damásio (2018); 2. Atuação profissional: advogado proprietário do escritório Eduardo Pellerin Advocacia e Consultoria, o qual atuou com advocacia estratégica e consultiva, em Direito Civil, Consumidor e Administrativo (2020-2021), advocacia estratégica e consultiva, em Direito Civil, Administrativo e Processo Civil para Pequeno e Beltrão Advogados (2020-2021), assistente de Desembargador e servidor público federal do TRT6 (2021), assistente de Juíza e analista judiciário do TRT2 (2022-2024), analista judiciário do TRT6 (2024-atual); 3. Concursos: aprovado em vários, com destaque para o TRF5, TRT6, TRT1, TRT2 e TRT15; 4. Pesquisa e produção: autor do livro "O ativismo judicial entre a ética da convicção e a ética da responsabilidade: a racionalidade da melhor decisão judicial de controle de políticas públicas diante da ineficiência estatal na concretização de direitos fundamentais", pesquisador bolsista do PIBIC UFPE/CNPq - no Centro de Filosofia e Ciências Humanas (CFCH), linha de pesquisa: "A metafísica da doutrina do Direito em Kant: moral, ética e Direito" (2015-2016), publicou capítulo de livro, doze artigos científicos, em revistas jurídicas especializadas, jornais, anais de eventos e apresentou artigos, em congressos científicos; 5. Ensino: foi monitor das cadeiras de Introdução ao Estudo do Direito I, Direito das Coisas e Processo de Execução; 6. Extensão: Serviço de Apoio Jurídico-Universitário (SAJU) e Pesquisa-Ação em Direito (PAD): As relações entre a ficção jurídica e a ficção literária; 7. Formação complementar: fez vários cursos em Direito, Ciência Política, Português e Oratória; 8. Congressos: participou de mais de uma dezena.

Ricardo Russell Brandão Cavalcanti

Pós-Doutorando em Direitos Humanos pela Universidade de Salamanca-Espanha. Doutor em Ciências Jurídicas-Públicas pela Universidade do Minho, Braga, Portugal (subárea: Direito Administrativo) com título reconhecido no Brasil pela Universidade de Marília. Mestre em Direito, Processo e Cidadania pela Universidade Católica de Pernambuco. Especialista em Ciência Política pela Faculdade Prominas. Especialista em Direito Administrativo, Constitucional e Tributário pela ESMAPE/FMN. Especialista em Filosofia e Sociologia pela FAVENI. Especialista em Educação Profissional e Tecnologia pela Faculdade Dom Alberto. Defensor Público Federal. Professor efetivo de Ciências Jurídicas do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Pernambuco - IFPE.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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