Capa da publicação A moral kantiana e o erro dos filósofos do direito
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A metafísica da doutrina do Direito em Kant.

Moral, Ética e Direito: uma crítica à interpretação dos filósofos do Direito

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3. Liberdade, dever, máximas e imperativo categórico

Ainda é importante ter em mente o conceito de liberdade, no pensamento kantiano, liberdade é um conceito puro da razão, em sentido cosmológico-transcendental, se coaduna com a ideia de uma causa primária, absolutamente incondicionada. Desse modo, um arbítrio é livre se tem a faculdade de ser determinado apenas pela razão pura (autonomia) - isto é, independente de todas as inclinações sensíveis -, que comprove no sujeito uma vontade pura (espontaneidade absoluta do agir), ponto de partida para as leis morais (ética ou moral em sentido estrito).

A liberdade é a causalidade da razão como norteadora da vontade, assim uma pessoa livre é aquela que tem a faculdade de autodeterminar-se racionalmente. A razão é autônoma quando obedece à lei que dá a si mesma. A filosofia kantiana ressalta a autonomia da subjetividade como exigência de liberdade, sendo o homem livre, haja vista que, ao contrário dos animais irracionais, tem a possibilidade de não ser escravo dos próprios instintos. Nesta senda, a natureza

dotou o homem de razão e da liberdade da vontade que nela se funda, isso era já um indício claro da sua intenção no tocante ao seu equipamento Ele não deveria ser dirigido pelo instinto ou ser objeto de cuidado e ensinado mediante conhecimentos adquiridos; deveria pelo contrário, extrair tudo de si mesmo.26

Kant identifica o incondicionado precisamente no conceito de vontade livre como atributo do sujeito moral e concebe-a em termos de uma espontaneidade (spontaneitas) das causas, subtraindo a ação moral à esfera do determinismo da causalidade da natureza (Causalität aus Natur) e posicionando-a em outro domínio, o da causalidade da liberdade (Causalität aus Freiheit). É neste dualismo transcendental, nesta antítese entre natureza e liberdade, que Kant baseia o rigorismo da sua filosofia moral e a sua concepção formalista de dever (Sollen) como esfera superior do incondicionado. 27

Apesar de todo o rigor de sua teoria, o próprio Kant admite que nenhum homem pode ter absoluta certeza de ter cumprido o dever de um modo inteiramente desinteressado, pois isto caberia à consciência interna. Malgrado isto, sustenta a validade da sua teoria moral, asseverando que “o que é correcto para a teoria deve também valer para a prática”28 e mesmo que tal retidão do agir nunca tenha ocorrido tão puramente na prática, ela deve ser inexoravelmente buscada.

Desse modo, a metafísica dos costumes é uma metafísica do uso prático da razão pura, uma metafísica da liberdade, refere-se à existência de sujeitos como seres racionais e não à sua existência empírica. Logo, é uma doutrina prescritiva/normativa, pois diz como o sujeito deve se comportar para agir moralmente.

As leis morais são imperativos categóricos, pois ordenam que certas ações sejam praticadas incondicionalmente, uma vez que são moralmente necessárias, decorrendo daí o conceito de dever. Portanto, o dever envolve uma coerção do arbítrio livre pela lei. Logo, o imperativo categórico29 significa uma obrigação que é válida sem limites e não deriva sua obrigatoriedade de nenhuma experiência, apenas da razão pura. A liberdade, está conectada com a ética, pois é autodeterminação/autocoerção 30 pura da vontade ou autolegislação do sujeito racional. Obrigação é a necessidade de uma ação livre sob um imperativo moral.31 Nesse sentido assevera Kant:

O imperativo é, pois, uma regra cuja representação torna necessária a acção subjectivamente contingente e que representa, com isso, o sujeito como alguém que tem de ser compelido (necessitado) a conformar-se à regra. O imperativo categórico (incondicionado) é aquele que pensa a acção como objetivamente necessária e a torna necessária não de modo mediato, através da representação de um fim que pode alcançar-se, mas através da mera representação da própria acção (da sua forma), ou seja, de modo imediato; nenhuma outra doutrina prática pode apresentar como exemplos outros imperativos senão aqueles que prescrevem obrigação (os morais).32

Assim, as leis morais são proposições que contêm regramentos que são bons em si mesmos, por isso são categóricas, ordenam que algo objetivamente aferível pela razão pura como bom seja realizado em qualquer situação, sendo o dever a ação a que alguém está vinculado. Dessa feita, pessoa é todo sujeito cujas ações são passíveis de imputação (Zurechnung), isto é, um juízo sobre a liberdade de um ser racional sob leis morais. Destarte, o que faz com que um dado sujeito possa ser tido como pessoa, ou seja, como suscetível de imputação de ações e responsabilidade é a liberdade, a faculdade de autodeterminar-se racionalmente. Pode ser responsabilizado, na medida em que pode escolher comportar-se de acordo com à razão e unicamente por dever.

Fica fácil perceber que só pode agir contra a moralidade quem tem a faculdade de obedecer unicamente à razão pura, mas escolhe ceder a instintos, logo, se houvesse seguido a razão pura, não agiria imoralmente. O conceito de indivíduo como autolegislador surge disso, é um ser moral na medida em que se submete a leis que dá a si mesmo através da racionalidade. Por outro lado, coisa é tudo que não tem liberdade, logo não é passível de imputação. Já a regra do agente que ele próprio toma como fundamento subjetivo se chama máxima 33, ou seja, esta é um princípio subjetivo da ação que o sujeito erige como regra do agir.

O enunciado clássico do imperativo categórico é: “age segundo uma máxima que possa valer simultaneamente como lei universal”34, ou seja, se a máxima pode ser universalizada, transformar-se-á em imperativo categórico. Tal fundamento do agir deve ser válido universalmente de modo objetivo, sendo aferível ao ser posto à prova pela razão pura de qualquer ser racional, quando submete o seu pensar ao escrutínio do legislador universal. A razão seria, pois, guia do arbítrio, utilizando como norte à máxima que possa ser um mandado universalmente válido e evidente, tal como postulados/axiomas da matemática.

Ademais, a legalidade é a conformidade de uma ação com a lei do dever (age conforme ao dever), já a moralidade/eticidade é a conformidade entre a máxima da ação com a lei do dever (age por dever). Assim, Kant chega ao princípio supremo da doutrina moral: “age segundo uma máxima que possa simultaneamente valer como lei universal”35, logo, se não puder ser universalizado não é moral.


4. A doutrina do direito em Kant: direito em sentindo amplo e direito em sentido estrito

Ressalte-se que a doutrina do direito (Jus) é o conjunto de leis que possibilita uma legislação externa, logo o sistema jurídico é baseado na doutrina do direito natural. Contudo, não um direito natural de cunho teológico, mas de cunho racional e metafísico, no qual o sistema metafísico é um ponto de partida a priori para legitimar a contingência da experiência do direito positivo (estatutário) existente em vários lugares. Assim, o direito natural é o direito cognoscível a priori pela razão de todos os homens, destarte, as obrigações jurídicas naturais podem ser conhecidas a priori pela razão, mesmo sem legislação externa.

Desse modo Kant conceitua: “o Direito é, pois, o conjunto das condições sob as quais o arbítrio de cada um pode conciliar-se com o arbítrio de outrem segundo uma lei universal da liberdade”.36 Assim, Kant pensou encontrar o critério de justiça na universalidade da lei37. Ademais, Pelo princípio universal do direito: “Uma ação é conforme ao Direito quando permite ou quando a sua máxima permite fazer coexistir a liberdade do arbítrio de cada um com a liberdade de todos segundo uma lei universal”.38

Kant ainda repete uma terceira fórmula, chamada de lei universal do direito: “age exteriormente de tal modo que o uso livre do teu arbítrio possa coexistir com a liberdade de cada um segundo uma lei universal”.39 Assim, a doutrina do direito kantiana consiste em mostrar como o homem, ao respeitar a legislação pura prática de sua própria razão, é capaz de institucionalizar sua vida intersubjetivamente.40

Ressalte-se que, nos três postulados acerca do direito, há dois elementos centrais: a relação mútua dos arbítrios e a lei universal. Da relação mútua dos arbítrios decorre um conceito de liberdade negativo, ou seja, como limitação recíproca: a liberdade de cada um encontra seus limites na liberdade do outro. Por outro lado, a universalidade da lei implica o conceito positivo de liberdade (autonomia), pelo qual o direito faz parte da ética. Assim, percebe-se que o direito em sentindo amplo, como instrumento para coadunar arbítrios segundo uma lei universal, nada mais é do que uma formulação da lei moral, sendo um verdadeiro imperativo categórico da razão pura universal. Por conta disso, duas correntes interpretativas se formaram, como se verá mais à frente.

Apesar de pequenas distinções nos três postulados mencionados, o que importa ter em mente é que o direito envolve: apenas relações externas41 (exterioridade), o arbítrio de uma pessoa com o de outra (intersubjetividade) e tais relações são levadas em conta somente no que diz respeito à forma (legalidade). Não importando o móbil que cada agente tem no seu agir. Logo, é muito mais fácil agir legalmente do que moralmente, porquanto o direito não exige uma sociedade de santos, não importa a retidão das intenções, apenas se exige à conformidade ao dever (legalidade).

Este é o conceito de direito em sentido amplo, ou seja, um instrumento de coadunar arbítrios segundo uma lei universal. Porém, inescapável a pergunta: como fazer isso? A resposta é através de uma faculdade de coagir (direito em sentido estrito). Assim, tudo que macula o direito não se conforma com a liberdade segundo leis universais, contudo, se a coerção é contrária à liberdade, como pode ser compatível com o direito? Mais uma vez, a resposta de Kant é engenhosa: se o uso da liberdade é abusivo, obstaculizando outra liberdade segundo leis universais, a coerção, ao impedir esse uso abusivo da liberdade, favorece a liberdade segundo leis universais e está em conformidade com o direito.

Portanto, o direito estrito pode também ser representado como a possibilidade de uma coerção recíproca universal em consonância com a liberdade de cada um segundo leis universais42; ressalte-se que, para Kant, a liberdade, na medida em que pode coexistir com a liberdade de cada um segundo uma lei universal, é o único direito inato/originário, correspondente a todo homem em virtude de sua própria humanidade/racionalidade.

Para aclarar, imagine-se que um rapaz, ao chegar a uma festa de São João, enciumado por sua namorada estar dançando com outro rapaz, ataca e comete lesões corporais no dançarino. A violência, em si é contrária ao direito segundo leis universais, mas a violência estatal que impediria tal atitude do namorado ciumento se compatibiliza com o direito, na medida em que impede que o ato violento ocorra.

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Assim, o direito estrito não inclui uma dimensão ética43 e só exige fundamentos externos de determinação do arbítrio, pois é puro e não está miscigenado com preceitos de virtude, sendo completamente externo. Assim, no caso do dever jurídico, a possibilidade de coerção é externa, enquanto no dever de virtude (ético), há uma autocoerção livre44. Portanto, em sentido estrito, “direito e faculdade de coagir significam, pois, uma e a mesma coisa”45.

Outrossim, pelo fato de o ser humano ter uma vontade imperfeita muitas vezes, ou seja, que não obedece aos ditames morais da racionalidade pura, transgredindo o dever, surge, pois, a necessidade da coerção externa do direito para que o dever seja cumprido. Pelo menos para que seja aderido externamente, ainda que não se exija a retidão do espírito.

Feitos esses esclarecimentos de parte da obra A metafísica dos costumes, a saber, Princípios metafísicos da doutrina do direito, buscou-se até agora traçar a diferença entre moral, ética e direito e analisar os conceitos corolários deste debate.


5. A moderna interpretação da teoria moral de Kant: uma crítica a confusão dos filósofos do direito

Doravante, serão investigadas algumas obras de escritores, principalmente, das áreas de Introdução ao Estudo do Direito, Teoria Geral do Direito e de Filosofia do Direito, as quais são disciplinas lecionadas na graduação do Curso de Direito em todo país, a fim de observar quais as possíveis confusões que cometem ao interpretar a obra kantiana. Pelos manuais, especialmente os escritos por juristas, a doutrina do direito é muito confusa, não havendo limites para interpretações.

Durante a história do acolhimento da doutrina do direito de Kant, formaram-se basicamente duas correntes interpretativas opostas, no que tange à relação entre o direito e a ética kantiana. A primeira, alemã, que interpreta que a filosofia do direito de Kant é somente uma extensão da sua filosofia ética, apenas delimitando critérios de aplicação da lei ética às ações externas reguladas também por leis jurídicas (liberdade como autonomia, conceito positivo de liberdade).

A outra, italiana, entende que a doutrina do direito kantiana não tem relação com a ética, tratando-se de considerações sobre normas técnicas na instauração e manutenção de um Estado como autor de leis positivas (liberdade como limitação recíproca, conceito negativo de liberdade). 46

Isso ocorreu pelo fato de que, conforme visto anteriormente, nos três postulados acerca do direito, há dois elementos centrais: a relação mútua dos arbítrios e a lei universal. Da relação mútua dos arbítrios decorre um conceito de liberdade negativo, ou seja, como limitação recíproca: a liberdade de cada um encontra seus limites na liberdade do outro. Por outro lado, a universalidade da lei implica o conceito positivo de liberdade (autonomia), pelo qual o direito faz parte da ética. Assim, a corrente italiana prestou muita atenção ao elemento da relação mútua de arbítrios, esquecendo-se do elemento da lei universal, e, portanto, dissociando completamente direito e ética. Já a corrente alemã, só prestou atenção à universalidade da lei, esquecendo da relação mútua dos arbítrios, reduzindo o direito a uma simples extensão da ética.

Todavia, a literatura mais nova descobriu uma saída as duas primeiras correntes, suplantando antigas interpretações. Isto porque se passou a prestar mais atenção ao texto da Metafísica dos Costumes e se traçou uma clara distinção entre moral e ética, o que abriu espaço para uma melhor compreensão do direito dentro do sistema moral kantiano, distinguindo-o da ética. 47

Nesse sentido, chega-se à conclusão de que a teoria moral kantiana constitui gênero (moral em sentido amplo) que tem como espécies o direito e ética (moral em sentido estrito). Para delimitar o conceito de moral, Kant parte da distinção entre leis da natureza e leis da liberdade48, portanto, as “leis da liberdade chamam-se morais, à diferença de leis naturais”49. Desta feita, a moral em sentido amplo são as leis da liberdade, ou seja, toda legislação da razão para a liberdade ou simplesmente legislação prática, representando aquilo que deve ser.

Se estas leis morais incidem apenas sobre ações meramente externas e sua legalidade, serão ações que recaem no âmbito do direito. Contudo, se exigem também que elas sejam, por si mesmas, os fundamentos (móbiles) de determinação das ações, elas recaem no âmbito da ética ou moral em sentido estrito.50

Assim, o direito pode tomar como móbil, norteador do arbítrio, inclinações e aversões engendradas pela legislação coercitiva, que é algo distinto do próprio dever interno, ou seja, pode contar com um móbil empírico, portanto, não ético. Nesta senda, vem à baila as palavras do filósofo alemão:

Toda legislação pode, portanto, distinguir-se ainda em vista dos móbeis. Aquela que faz de uma ação um dever e deste dever ao mesmo tempo um móbil é ética. Mas aquela que não inclui o último na lei, admitindo assim também um outro móbil que não a ideia do próprio dever, é jurídica.51

Por outro lado, a ética toma como móbil determinante do arbítrio, como fundamento do agir, o próprio dever racionalmente autoimposto pela lei moral, dada na consciência moral como um imperativo categórico ético52, que deve valer incondicionalmente. Já o direito, diferencia-se não tanto por apresentar uma legislação de caráter diferente (hipotética ou heterônoma), mas por admitir um móbil diferente do mero respeito à lei.

Contudo, apesar de tais diferenças, como foi visto, o direito em sentindo amplo, enquanto instrumento para coadunar arbítrios, segundo uma lei universal, nada mais é do que uma formulação da lei moral, sendo um verdadeiro imperativo categórico da razão pura universal. Por outro lado, o direito em sentido estrito, como mera faculdade de coagir para coadunar arbítrios, nada tem a ver com a ética.

Assim, tal interpretação mostra-se mais moderna e tenta conciliar a correntes opostas, a saber, a italiana e a alemã.53 Não obstante isso, vários filósofos do direito não distinguem moral (gênero), ética e direito (espécies), recaindo no erro da corrente italiana, apartando completamente direito e moral (leia-se moral em sentido estrito ou ética, pois os autores pesquisados não compreendem os conceitos precisos de moral e de ética em Kant).

Inicialmente, João Maurício Adeodato54 assevera que “a moral estaria no foro interno, assim como a religião, enquanto o direito estaria no âmbito externo. A isso adere Kant”, ademais, ele55 afirma que Kant, ao tratar da teoria jurídica, buscou separá-la da metafísica dos costumes em sentido geral, por fim, o mesmo autor56 ainda afirma que para Kant o que separa direito e moral é uma distinção sobretudo moral.

Primeira, fica claro que o autor não distingue moral em sentido amplo, moral em sentido estrito ou ética e direito, assim aparta complemente moral e direito, todavia, na Metafísica dos Costumes, Kant delimitou esses quatro conceitos, logo a moral em sentido amplo se divide em moral em sentido estrito ou ética e direito, o qual faz parte daquela. Segunda, não é verdade que Kant separou a teoria jurídica da metafísica dos costumes, até pela estruturação da obra Metafísica dos Costumes, a doutrina do direito claramente se insere no projeto da metafísica dos costumes, como visto acima. Terceira, a afirmação não faz sentido.

Outrossim, Paulo Nader57 deixa a entender que Kant queria distinguir direito e moral, confundindo os quatro conceitos acima e sendo impreciso ao misturar moral em sentido amplo e moral em sentido estrito ou ética, na hora da diferenciação com o direito. E no mais, Dimitri Dimoulis58: “a diferença entre a moral e o direito está no fato de que o direito ameaça com coação em caso de descumprimento da norma e não se interessa pelos motivos da ação dos indivíduos, mas somente pelos seus resultados.” Ademais, Norberto Bobbio também confunde moral e ética, ao dizer que: “trata-se do clássico problema da distinção entre moral e direito, que é geralmente considerado como problema preliminar de qualquer filosofia do direito. Na obra de Kant encontram-se não somente um, mas vários critérios de distinção” (...)59.

Em outra obra60, o mesmo autor: “o que distingue o direito e a moral é precisamente o fato que enquanto o primeiro é coercitivo, a segunda não o é”. Outrossim, Eduardo Bittar diz que “direito e moral se distinguem no sistema kantiano como duas partes de um mesmo todo unitário, a saber, duas partes que se relacionam, à exterioridade e à interioridade, uma vez relacionadas à liberdade interior e à liberdade exterior.”61 E no mais, Miguel Reale, em sua obra clássica62, a qual é lida, nas graduações de Direito do Brasil, faz a distinção entre moral e direito, ao falar da moral em Kant e, na mesma senda, na obra Filosofia do Direito diz: “o grande filósofo tratou dos problemas do Direito em várias obras, antes de dedicar trabalho especial à problemática jurídica, sendo possível afirmar-se que nos apresenta três critérios para distinguir a Moral do Direito” 63.

Destarte, fica claro que os filósofos do direito, ainda repetem a interpretação da corrente italiana, a qual é ultrapassada na intepretação do texto kantiano, logo aqueles não delimitam os quatro conceitos kantianos acima, consequentemente, apartam completamente moral e direito, todavia, conforme as interpretações mais recentes da obra de Kant, moral é gênero que se divide em moral em sentido estrito ou ética e direito. Assim, na verdade, a diferenciação é entre moral em sentido estrito ou ética e direito.

No mesmo caminho, Paulo Dourado de Gusmão64 diz “Kant atribuiu à moral o julgamento dos motivos, das resoluções, da intenção e da consciência, enquanto ao direito, a disciplina da conduta exterior do homem e das manifestações da vontade”. E mais, esse autor afirma que “contra Kant podemos dizer que no direito penal a intenção é levada em conta”.

Tal interpretação da obra kantiana é equivocada, diz Kant: “o conceito do direito diz respeito em primeiro lugar, apenas à relação externa prática de uma pessoa com uma outra, na medida em que suas ações, como fatos, podem ter (imediata ou mediatamente) influência umas sobre as outras”.65 Ou seja, apenas ações externas com consequências externas são objetos do direito, as determinações exclusivamente internas da vontade não são alvo do direito. Contudo, Kant não diz que o dolo (vontade + consciência) ou os desejos perversos não podem ser levados em conta pelo direito, apenas diz que não seriam levados em conta se não chegassem a se efetivar em ações externas. 66

Logo, se se externalizam através de ações, podem ser considerados. Isso quer dizer que a intenção de uma ação, por exemplo, só se torna relevante quando se exterioriza, ou seja, quando se confronta com a esfera de liberdade alheia.67 Assim, não é que o direito não leve em consideração a intenção da ação, na verdade, a intenção só é relevante quando se exteriorizar, quando atinge a liberdade do outro. 68

Outrossim, conforme visto no trabalho, não há dúvida de que o direito em sentido estrito é heterônomo do ponto de vista ético, tendo em vista que a pessoa é coagida por uma instância externa. Mas, será que se poderia sustentar que ele é autônomo do ponto de vista jurídico-político? Assim, o fato de as leis do direito, enquanto leis que comandam externamente, são leis da autonomia ou da heteronomia?

Há quem entenda que a garantia da efetividade do direito só pode se dar a partir da coerção estatal, a qual impera externamente em suas leis, malgrado a vontade contrária dos seus cidadãos. Assim, segundo tal entendimento, tais leis só podem ser entendidas como leis de heteronomia, ou seja, leis que comandam de fora da vontade dos homens.

Contudo, a fim de evitar tais conclusões superficiais, é mister ter em mente que a doutrina kantiana do direito público é parte do direito natural de cunho racionalista, estando em questão as condições para que um Estado possa ser tido como racional, sendo fonte de leis universalmente válidas. Entre tais condições está a de que o povo, submetido a um Estado, engendre o poder legislador, fazendo com que as leis a que todos têm que se submeter sejam originárias da vontade de todos, o que define a liberdade jurídica ou externa de cada um.

Portanto, a autonomia pode ser pensada em sentido amplo, como a exigência de participação de todos na legislação, não levanto em conta o móbil. Assim, há um retorno às ideias de Rousseau sobre vontade geral, concebendo-se a autonomia no plano jurídico e político. 69

Para Kant, a concepção positiva de liberdade servirá como cerne da sua teoria político-jurídica. O contrato originário, pois, seria

O acto mediante o qual o povo se constitui em si mesmo como Estado ou, dito com maior propriedade, a ideia deste acto apenas, que é a única pela qual pode aferir-se a sua legitimidade, é o contrato originário, segundo a qual todos (omnes et singuli) no povo renunciam à sua liberdade exterior, para a recuperar de seguida como membros de uma comunidade, quer dizer, como membros do povo considerado como Estado (universi); e não pode dizer-se que o homem no Estado tenha sacrificado a um fim uma parte da sua liberdade natural externa inata, mas que abandonou por completo a liberdade selvagem e sem lei, para reencontrar intacta a sua liberdade em geral, numa dependência legal, quer dizer , no estado jurídico; porque esta dependência dimana da sua própria vontade legislador.70

Assim, o contrato originário, no plano político, exige a autonomia, ou seja, a soberania popular e poderá ser critério para aferir o direito, porquanto uma lei será justa se puder provir da vontade unida (universal) de todo o povo. O contrato se relaciona ao Estado como união de homens sob leis jurídicas a priori.71

Portanto, as relações das vontades no direito podem ser pensadas sob uma vontade geral, remetendo para a autonomia no direito, uma vez que todos participam da legislação, à qual se submetem. Desse modo, a liberdade externa jurídica é conceituada como “a autorização de não obedecer a quaisquer leis externas a não ser àquelas a que eu tenha podido dar a minha anuência”.72 Dessa feita, mesmo as leis positivas de um Estado são leis da autonomia e não leis heterônomas.

Entre os princípios a priori do estado civil está a igualdade dos súditos, que pode ser sintetizada como a possibilidade de cada membro da comunidade ter um direito de coação sobre todos os outros, excetuando-se sobre o chefe de Estado. Assim, o direito seria fruto da vontade geral racional e universal.

Todo direito depende das leis. Mas uma lei pública que determina para todos o que lhes deve ser juridicamente permitido ou interdito é acto de um querer público, do qual promana todo o direito e que, por conseguinte, não deve por si mesmo cometer injustiças contra ninguém. Ora, a este respeito, nenhuma outra vontade é possível a não ser a de todo o povo (já que todos decidem sobre todos e, por conseguinte, cada um sobre si mesmo).73

A doutrina do direito público em Kant deve ser entendida como parte do direito natural, porquanto impõe as condições para um Estado ser reconhecido como racional, ou seja, como fonte emanadora de leis validas universalmente.74 Dentro de tais pressupostos está a de que o povo ou a totalidade dos indivíduos submetidos a um Estado constitua o poder legislador75, de tal sorte que as leis a que todo se submetem são decorrentes da vontade de todos, o que define a liberdade jurídica ou externa de cada um.

Cada um é legislador do ponto de vista inteligível e a legislação é da razão pura, sendo todos colegisladores simplesmente pelo fato de serem racionais, e as leis devem ser promulgadas como se fossem decorrência da vontade unida de todos, e o Estado deve pautar seu proceder nessa vontade. Nas palavras do Kant: “daí que só a vontade concordante e unida de todos, na medida em que decida cada um o mesmo sobre todos e todos decidem o mesmo sobre cada um, por conseguinte, só a vontade geral colectiva do povo pode ser legisladora”.76

Portanto, pode-se inferir que o indivíduo, quando obedece à legislação do Estado, do ponto de vista puramente racional, está obedecendo a si mesmo, à sua própria razão. Porquanto essa integra a racionalidade universal pura, assim como o direito em sentido amplo, que deve ter como fonte leis válidas universalmente. Ou seja, se a razão universal é pura e o direito público e o agir devem refletir essa, fica claro que, enquanto membro racional, ao obedecer ao direito, o cidadão obedece a si mesmo enquanto ser racional.

No sentido jurídico-político, o direito do Estado é autônomo, pois os atributos categórica e incondicional da legislação ética valem também para o direito, haja vista que ele decorre de princípios práticos a priori da razão, e não meramente de uma legislação positiva à revelia da razão prática pura. Logo, como legislação prática da razão, o direito em sentido amplo é uma instância da autonomia da vontade, ou seja, da faculdade de dar a si mesmo ou à sua liberdade uma lei. Tal faculdade da autonomia representa o conceito positivo da liberdade, sedo fundamento para as leis práticas.

Desse modo, pois, as leis jurídicas são também leis da autonomia, simplesmente por serem leis práticas ou regras práticas puras.77. Assim, expressam-se como imperativos categóricos em relação ao arbítrio humano, tendo em vista que esse é capaz de desobedecer a lei. Portanto, a lei jurídica é uma especificação da exigência de universalidade da legislação ética, da qual decorrem obrigações que um ser racional puro também teria com móbil do seu arbítrio. Assim, há uma incorporação do jurídico pelo ético, tornando aquele autônomo.

Contudo, não sendo seres racionais puros, os homens podem precisar ainda de outro móbil não ético, mais forte e cogente, cuja implementação se dá de modo heterônomo: o direito estrito, que é a faculdade de coerção. Assim, como os deveres jurídicos- enquanto pertencentes à doutrina dos deveres-, fazem parte da ética, eles deveriam ser cumpridos simplesmente por serem deveres decorrentes da legislação prática ou moral da razão, constituindo, pois, também deveres éticos.

Não obstante isso, como o ser humano não é um ser racionalmente puro e pode ceder às inclinações, é preciso que exista uma instância exterior (heterônoma) que possa coagi-lo a cumprir o dever, é aqui que se faz necessário o direito em sentido estrito.

Nas pesquisas em obras de filósofos do direito, é comum a leitura de que o direito seria heterônomo, pois não precisa encontrar no próprio dever o seu fundamento, mas pode recebê-lo de uma causalidade exterior. Outra ideia recorrente é a de que a moral (leia-se moral em sentido estrito ou ética, pois os autores pesquisados não compreendem os conceitos precisos de moral e de ética em Kant) é autônoma, pois a pessoa encontra unicamente na sua própria racionalidade, no próprio dever, o fundamento do agir. Apesar de a ideia não estar errada completamente, peca pela superficialidade e pela incompletude, pois o direito em sentido amplo pode ser autônomo, visto que se liga à ética.

Recai nessa simplificação exagerada, asseverando indistintamente que o direito é heterônomo e a moral (leia-se moral em sentido estrito ou ética, pois os autores pesquisados não compreendem os conceitos precisos de moral e de ética em Kant) é autônoma Bobbio78 que, por sinal, diz: “acreditamos que a vontade jurídica possa ser considerada somente como vontade heterônoma.”79 Contudo, convém ressaltar, como visto, que o jus aceita ser cumprido por dever, embora isso não seja obrigatório no nível da consciência. Miguel Reale80 afirma que “foi Kant o primeiro pensador a trazer à luz essa nota diferenciadora, afirmando ser a Moral autônoma, e o Direito heterônomo”. Este mesmo autor diz em outro livro81 que “a moral deve ser autônoma, enquanto o Direito se contenta com a conformidade exterior à regra, sem envolver necessariamente a adesão da consciência: o Direito é heterônomo ou de legalidade extrínseca”.

Ressalte-se que o mesmo autor, por não entender que o direito em sentido amplo se conecta com a ética- pois ambos têm por base o imperativo categórico, princípio supremo da doutrina dos costumes, imposto pela razão pura, conforme visto no trabalho -, assevera simplificadamente: “há pois, na doutrina do Direito de Kant, como na primeira de Fichte, uma inegável perda de substância ética”82. Como estudado, para Kant, o Direito não tem a ver com a moral em sentido estrito ou a ética, se e somente se, for considerado em seu sentido estrito, como mera faculdade de coagir.

Uma outra crítica a esses autores está na linha é que direito e ética (moral, segundo a nomenclatura usada por autores) não se distinguem tanto pela dicotomia autonomia/heteronomia, mas, sim, pelo móbil (triebfeder) que impulsiona a realização da ação.

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Sobre os autores
Eduardo Almeida Pellerin da Silva

Especialista em Processo Civil pela Faculdade Damásio. Analista judiciário-área judiciária do TRT2. 1. Formação acadêmica: graduação em Direito pela Faculdade de Direito do Recife (FDR)/Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) (2016) e especialização em Processo Civil pela Faculdade Damásio (2018); 2. Atuação profissional: advogado proprietário do escritório Eduardo Pellerin Advocacia e Consultoria, o qual atuou com advocacia estratégica e consultiva, em Direito Civil, Consumidor e Administrativo (2020-2021), advocacia estratégica e consultiva, em Direito Civil, Administrativo e Processo Civil para Pequeno e Beltrão Advogados (2020-2021), assistente de Desembargador e servidor público federal do TRT6 (2021), assistente de Juíza e analista judiciário do TRT2 (2022-2024), analista judiciário do TRT6 (2024-atual); 3. Concursos: aprovado em vários, com destaque para o TRF5, TRT6, TRT1, TRT2 e TRT15; 4. Pesquisa e produção: autor do livro "O ativismo judicial entre a ética da convicção e a ética da responsabilidade: a racionalidade da melhor decisão judicial de controle de políticas públicas diante da ineficiência estatal na concretização de direitos fundamentais", pesquisador bolsista do PIBIC UFPE/CNPq - no Centro de Filosofia e Ciências Humanas (CFCH), linha de pesquisa: "A metafísica da doutrina do Direito em Kant: moral, ética e Direito" (2015-2016), publicou capítulo de livro, doze artigos científicos, em revistas jurídicas especializadas, jornais, anais de eventos e apresentou artigos, em congressos científicos; 5. Ensino: foi monitor das cadeiras de Introdução ao Estudo do Direito I, Direito das Coisas e Processo de Execução; 6. Extensão: Serviço de Apoio Jurídico-Universitário (SAJU) e Pesquisa-Ação em Direito (PAD): As relações entre a ficção jurídica e a ficção literária; 7. Formação complementar: fez vários cursos em Direito, Ciência Política, Português e Oratória; 8. Congressos: participou de mais de uma dezena.

Ricardo Russell Brandão Cavalcanti

Pós-Doutorando em Direitos Humanos pela Universidade de Salamanca-Espanha. Doutor em Ciências Jurídicas-Públicas pela Universidade do Minho, Braga, Portugal (subárea: Direito Administrativo) com título reconhecido no Brasil pela Universidade de Marília. Mestre em Direito, Processo e Cidadania pela Universidade Católica de Pernambuco. Especialista em Ciência Política pela Faculdade Prominas. Especialista em Direito Administrativo, Constitucional e Tributário pela ESMAPE/FMN. Especialista em Filosofia e Sociologia pela FAVENI. Especialista em Educação Profissional e Tecnologia pela Faculdade Dom Alberto. Defensor Público Federal. Professor efetivo de Ciências Jurídicas do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Pernambuco - IFPE.

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