Resumo: O presente artigo analisa, à luz da Lei nº 12.529/2011 e da jurisprudência do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE), a tentativa de fusão entre as companhias aéreas Gol e Azul e os riscos jurídicos decorrentes dos anúncios prematuros de atos de concentração. A partir das manifestações do CADE, examinam-se os limites impostos pelo controle prévio de operações societárias relevantes, os potenciais efeitos anticompetitivos no mercado aéreo brasileiro e a proteção do consumidor frente à concentração de mercado. O estudo conclui que os alertas do CADE reforçam a importância do devido processo regulatório como instrumento de preservação da concorrência e da segurança jurídica.
Palavras-chave: Defesa da concorrência. CADE. Fusão empresarial. Transporte aéreo. Gun jumping.
Sumário: 1. Introdução. 2. O mercado aéreo brasileiro e a tentativa de fusão Gol–Azul. 3. O controle prévio de atos de concentração pelo CADE. 4. O risco jurídico do gun jumping e os alertas do CADE. 5. Impactos concorrenciais e defesa do consumidor. 6. Conclusão. Referências.
1. Introdução
O transporte aéreo desempenha papel estratégico na integração territorial, no desenvolvimento econômico e na mobilidade da população brasileira.
Ao longo das últimas décadas, o setor passou por profundas transformações, com a entrada e saída de empresas, processos de recuperação judicial e movimentos de consolidação empresarial.
Nesse ambiente, a tentativa de fusão entre Gol Linhas Aéreas e Azul Linhas Aéreas ganhou contornos de grande relevância jurídica e econômica.
A operação, se fosse concluída, resultaria na criação da maior companhia aérea do Brasil, com participação de mercado superior a 58%, modificando de forma estrutural a concorrência no setor.
Essa alteração exigiria, necessariamente, a análise prévia do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE), responsável por assegurar que movimentos empresariais dessa magnitude não comprometessem os princípios da livre concorrência e da defesa do consumidor, previstos no art. 170 da Constituição Federal.
Entretanto, antes mesmo da formalização de um contrato de fusão, declarações públicas e anúncios de acordos de codeshare despertaram a atenção do CADE, que emitiu advertências sobre a necessidade de submeter tais operações à análise regulatória.
Esses alertas refletem a preocupação do órgão não apenas com a prática de gun jumping, mas também com a preservação da segurança jurídica e da ordem econômica no país.
Este trabalho tem por objetivo examinar o episódio sob a ótica jurídico-concorrencial, identificando os principais riscos envolvidos, os fundamentos legais aplicáveis e os impactos potenciais da operação no mercado aéreo brasileiro.
2. O mercado aéreo brasileiro e a tentativa de fusão Gol–Azul
O mercado de transporte aéreo no Brasil é marcado por concentração e instabilidade. Historicamente, diversas companhias entraram e saíram do setor em razão de crises econômicas, variação cambial e oscilações no preço do combustível, como se verificou nos casos da Varig, Transbrasil e Avianca Brasil.
Atualmente, o mercado doméstico é dominado por três grandes empresas: Latam, Gol e Azul, responsáveis por quase 100% da oferta de voos regulares no país.
Segundo dados da Agência Nacional de Aviação Civil (ANAC), em agosto de 2025 a Latam possuía 41,1% do mercado doméstico, enquanto Gol detinha 30,1% e Azul 28,4%. Nesse contexto, a fusão entre Gol e Azul criaria uma empresa com participação superior a 58%, alterando substancialmente o equilíbrio competitivo do setor.
Do ponto de vista empresarial, a fusão poderia gerar ganhos de eficiência, redução de sobreposição de custos e maior capilaridade na malha aérea.
Contudo, do ponto de vista jurídico, o movimento acenderia um alerta sobre riscos de abuso de posição dominante, com potencial aumento de tarifas, redução da qualidade do serviço e limitação de opções ao consumidor.
É nesse ambiente que os alertas do CADE se inserem. O presidente do órgão advertiu publicamente que empresas não devem anunciar operações de fusão sem prévia submissão ao crivo regulatório, uma vez que tais comunicações podem influenciar o comportamento do mercado, criar expectativas artificiais em investidores e consumidores e afetar a própria concorrência.
Portanto, a tentativa de fusão deve ser analisada não apenas sob a ótica de eficiência empresarial, mas também à luz das normas de defesa da concorrência, que impõem limites claros à liberdade contratual quando esta ameaça o equilíbrio do mercado.
3. O controle prévio de atos de concentração pelo CADE
A Lei nº 12.529/2011 estabelece um sistema robusto de defesa da concorrência no Brasil. O art. 88 da norma impõe que atos de concentração sejam previamente comunicados ao CADE quando atendidos critérios de faturamento das empresas envolvidas. Trata-se de medida que garante a análise antecipada dos efeitos da operação, evitando prejuízos de difícil reversão.
O modelo brasileiro adota, portanto, o controle prévio obrigatório, em oposição a sistemas de mera notificação posterior. Esse regime assegura que fusões e aquisições só possam ser consumadas após aprovação da autoridade antitruste, a qual pode:
a) aprovar integralmente a operação;
b) aprová-la com restrições e remedies (como alienação de ativos ou restrição a determinadas condutas); ou
c) reprová-la, quando constatado risco substancial à concorrência.
Na jurisprudência administrativa, o CADE tem exercido de forma rigorosa esse papel. Em casos envolvendo setores estratégicos — como combustíveis, telecomunicações e aviação —, a autarquia não hesitou em impor condições para mitigar riscos concorrenciais.
Isso demonstra que o controle prévio é mais do que um procedimento burocrático: é um mecanismo de governança regulatória, destinado a proteger consumidores e concorrentes de práticas que possam gerar dominação de mercado.
No caso Gol–Azul, o alerta do CADE foi claro: ainda que não houvesse consumação prática da operação, o simples anúncio público poderia configurar conduta irregular, por transmitir ao mercado a ideia de que a fusão seria inevitável. Esse posicionamento reforça a necessidade de cautela na condução de negociações empresariais de grande porte.
4. O risco jurídico do gun jumping e os alertas do CADE
A consumação antecipada de operações de fusão sem aprovação do CADE é conhecida como gun jumping. Essa prática é vedada pelo art. 88, § 3º, da Lei nº 12.529/2011, que prevê multa de até R$ 60 milhões e nulidade dos atos praticados.
O gun jumping pode ocorrer de duas formas:
Anticipatory conduct, quando empresas passam a coordenar suas atividades antes da aprovação (como fixação conjunta de preços, divisão de rotas ou integração de sistemas).
Signaling, quando declarações públicas ou comunicações de mercado antecipam os efeitos da fusão, influenciando comportamentos de consumidores, concorrentes e investidores.
No caso Gol–Azul, a preocupação do CADE relacionou-se a esse segundo aspecto. O simples anúncio da intenção de fusão e do acordo de codeshare foi visto como potencial sinalização de mercado, capaz de induzir concorrentes a rever estratégias e consumidores a antecipar reações.
A jurisprudência do CADE já sancionou empresas por condutas semelhantes, reconhecendo que a antecipação dos efeitos da fusão compromete a independência concorrencial das partes e prejudica a análise técnica do órgão. Assim, o alerta emitido no caso deve ser compreendido como reafirmação do princípio de que a negociação privada não pode substituir o controle público nos atos de concentração.
5. Impactos concorrenciais e defesa do consumidor
Os impactos de uma fusão entre Gol e Azul seriam significativos. Do ponto de vista concorrencial, a empresa resultante teria poder de mercado suficiente para impor tarifas mais altas, reduzir a oferta de rotas regionais e dificultar a entrada de novos competidores.
Do ponto de vista jurídico, isso colide diretamente com o art. 36 da Lei nº 12.529/2011, que considera infração à ordem econômica qualquer ato que limite, falseie ou prejudique a livre concorrência.
Ademais, a Constituição Federal, em seu art. 170, IV e V, consagra como princípios da ordem econômica a livre concorrência e a defesa do consumidor, de modo que a atuação do CADE busca concretizar valores constitucionais e não apenas cumprir formalidades administrativas.
No plano prático, consumidores poderiam enfrentar preços mais elevados e menor diversidade de serviços, especialmente em rotas monopolizadas. Concorrentes menores poderiam ser afastados do mercado, seja por exclusão estratégica, seja pela incapacidade de competir com a escala da nova empresa.
Diante disso, a análise do CADE sobre fusões desse porte deve levar em conta não apenas as eficiências alegadas pelas empresas, mas também os riscos difusos para a sociedade. A defesa da concorrência, nesse contexto, coincide com a defesa do consumidor e com a preservação da pluralidade de agentes no mercado.
6. Conclusão
A tentativa de fusão entre Gol e Azul e os alertas emitidos pelo CADE evidenciam a complexidade das operações de concentração no setor aéreo brasileiro, marcado por peculiaridades que o distinguem de outros mercados.
O transporte aéreo não se limita a uma atividade comercial comum: ele envolve a integração territorial de um país de dimensões continentais, a conectividade de regiões de baixa atratividade econômica e a prestação de um serviço essencial à mobilidade da população e ao desenvolvimento econômico.
Essas características fazem com que a análise concorrencial em aviação civil seja particularmente sensível. A alta concentração estrutural, a dependência de insumos dolarizados (como o combustível), a limitação da infraestrutura aeroportuária e a dificuldade de entrada de novos competidores criam um ambiente em que a formação de uma empresa dominante pode gerar efeitos mais gravosos e de difícil reversão.
Assim, a simples sinalização de fusão entre grandes companhias, antes mesmo de sua formalização, já é capaz de alterar expectativas do mercado e induzir comportamentos estratégicos de concorrentes e consumidores.
Nesse contexto, o papel do CADE não se restringe ao exame jurídico-formal de atos de concentração, mas assume relevância institucional como guardião da ordem econômica e do interesse público.
A repressão a práticas de gun jumping e a advertência às companhias aéreas refletem a necessidade de manter a independência concorrencial das empresas até que a análise regulatória seja concluída, assegurando que eventuais ganhos de eficiência não se sobreponham à preservação da concorrência.
A experiência internacional reforça essa compreensão: tanto a Federal Trade Commission (FTC), nos Estados Unidos, quanto a Comissão Europeia tratam o setor aéreo como de elevada sensibilidade concorrencial, impondo restrições severas a fusões e joint ventures em razão do risco de concentração excessiva. O Brasil, ao adotar postura semelhante, reafirma sua inserção em um contexto global de defesa da concorrência.
Conclui-se, portanto, que a atuação preventiva do CADE no caso Gol–Azul foi não apenas legítima, mas necessária. Ao intervir desde a fase inicial das tratativas, a autoridade assegurou a confiança dos consumidores, a previsibilidade regulatória e a preservação da livre concorrência em um mercado estratégico, reafirmando a centralidade do controle prévio como instrumento de governança regulatória e de proteção da ordem econômica constitucional.
Referências
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br. Acesso em: 26 set. 2025.
BRASIL. Lei nº 12.529, de 30 de novembro de 2011. Estrutura o Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência. Disponível em: http://www.planalto.gov.br. Acesso em: 26 set. 2025.
INFOMONEY. Gol e Azul encerram negociações de fusão e acordo de codeshare no Brasil. 26 set. 2025. Disponível em: https://www.infomoney.com.br/mercados/gol-desiste-de-processo-de-fusao-com-a-azul/. Acesso em: 26 set. 2025.
Abstract: This paper analyzes, in light of Law nº 12.529/2011 and the case law of the Brazilian Antitrust Authority (CADE), the attempted merger between the airlines Gol and Azul and the legal risks arising from premature announcements of concentration acts. Based on CADE’s warnings, the study examines the limits imposed by the prior control of relevant corporate operations, the potential anticompetitive effects on the Brazilian airline market, and consumer protection against market concentration. The research concludes that CADE’s alerts reinforce the importance of the regulatory process as a tool for preserving competition and legal certainty.
Keywords: Antitrust law. CADE. Business merger. Air transport. Gun jumping.