Resumo: O presente artigo analisa a proposta de fusão entre as redes varejistas Petz e Cobasi sob a ótica da Lei nº 12.529/2011 e da atuação do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE). Embora a operação represente participação inferior a 10% do mercado pet brasileiro de forma agregada, o caso suscita preocupações concorrenciais em segmentos específicos, notadamente no comércio eletrônico e no modelo de superstores, capazes de gerar efeitos adversos sobre fornecedores, consumidores e concorrentes. Com base em parâmetros legais, dados econômicos e precedentes do CADE, o estudo busca compreender os fundamentos da análise concorrencial e os potenciais desdobramentos do julgamento.
Palavras-chave: Direito Concorrencial. Atos de Concentração. Petz-Cobasi. CADE. Varejo Pet.
Sumário: 1. Introdução. 2. Marco regulatório da defesa da concorrência no Brasil. 3. O Caso Petz-Cobasi perante o CADE. 4. Análise jurídica e econômica. 5. Jurisprudência do CADE em casos análogos. 6. Conclusão. Referências.
1. Introdução
O setor pet no Brasil ocupa posição de liderança mundial, representando um dos maiores mercados de produtos e serviços voltados a animais de estimação. Esse crescimento acelerado tem impulsionado a expansão de grandes redes especializadas, a exemplo de Petz e Cobasi, que se consolidaram como protagonistas na comercialização de rações, medicamentos, acessórios e serviços veterinários.
Em 2025, a proposta de fusão entre essas companhias atraiu especial atenção do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE), responsável pela análise de atos de concentração nos termos da Lei nº 12.529/2011. A operação, embora celebrada pelas empresas como oportunidade de ganho de eficiência e ampliação de oferta ao consumidor, foi recebida com cautela pela autoridade antitruste, que determinou estudos adicionais para melhor compreender seus potenciais efeitos no mercado.
Este artigo busca analisar, em perspectiva jurídico-econômica, os riscos concorrenciais associados à fusão Petz-Cobasi, considerando aspectos como definição do mercado relevante, participação de mercado no segmento digital, poder de barganha junto a fornecedores e impactos sobre consumidores. Além disso, confronta o caso com precedentes do CADE em setores análogos, como o farmacêutico e o de plataformas digitais, a fim de avaliar a consistência da atuação da autarquia.
2. Marco regulatório da defesa da concorrência no Brasil
O Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência (SBDC) é regido pela Lei nº 12.529/2011, que reorganizou a estrutura institucional e procedimental do direito concorrencial no país. O CADE, órgão responsável pela prevenção e repressão às infrações contra a ordem econômica, é dotado de competência para analisar atos de concentração e condutas anticompetitivas, de acordo com os parâmetros constitucionais previstos no art. 170. da Constituição Federal.
O art. 36. da Lei nº 12.529/2011 dispõe que constituem infração da ordem econômica os atos que tenham por objeto ou possam produzir os seguintes efeitos, ainda que não alcançados: (i) limitar, falsear ou de qualquer forma prejudicar a livre concorrência ou a livre iniciativa; (ii) dominar mercado relevante de bens ou serviços; (iii) aumentar arbitrariamente os lucros; e (iv) exercer de forma abusiva posição dominante. Dessa forma, a legislação adota critério preventivo e prospectivo, permitindo a análise de riscos antes mesmo da materialização dos danos.
Quanto aos atos de concentração, o art. 88. prevê a obrigatoriedade de notificação prévia sempre que as empresas envolvidas atingirem limites mínimos de faturamento. Nesses casos, a operação não pode ser consumada antes da decisão do CADE, sob pena de configuração de “gun jumping” (implementação antecipada e ilícita da operação), nos termos do §3º do referido artigo.
O procedimento de análise concentra-se em duas instâncias:
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Superintendência-Geral (SG): responsável pela instrução do processo, coleta de informações, realização de estudos econômicos e emissão de parecer técnico inicial. A SG pode aprovar operações sem restrições em casos de baixa complexidade.
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Tribunal Administrativo do CADE: órgão colegiado composto por seis conselheiros e um presidente, que profere decisão final, podendo aprovar, reprovar ou impor restrições. Nos termos do art. 61. da Lei nº 12.529/2011, cabe ao Tribunal deliberar em hipóteses de maior complexidade ou quando houver recurso de terceiros interessados.
A definição de mercado relevante, prevista no §2º do art. 36, é etapa crucial da análise. Envolve delimitar o espaço concorrencial em que as empresas atuam, tanto sob a ótica do produto (substituibilidade) quanto sob o ponto de vista geográfico. A forma como esse mercado é definido pode alterar substancialmente a percepção de concentração e os riscos de exercício de poder de mercado.
Outro elemento fundamental são os instrumentos econômicos utilizados pelo CADE. Entre eles, destacam-se:
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Índice Herfindahl-Hirschman (IHH): mede a concentração de mercado.
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GUPPI (Gross Upward Pricing Pressure Index): avalia a probabilidade de aumento unilateral de preços após a fusão.
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Testes de elasticidade de substituição: verificam se consumidores migrariam para produtos concorrentes em caso de aumento de preços.
O marco regulatório brasileiro, portanto, combina fundamentos constitucionais, princípios legais e instrumentos econômicos de análise. No caso da fusão Petz-Cobasi, todos esses parâmetros se mostraram especialmente relevantes, uma vez que a operação envolve tanto a delimitação de um mercado em rápida transformação quanto a aplicação de ferramentas prospectivas de avaliação de risco.
3. O Caso Petz-Cobasi perante o CADE
A operação de fusão entre Petz e Cobasi, duas das maiores redes varejistas do setor pet no Brasil, foi submetida ao CADE nos termos do art. 88. da Lei nº 12.529/2011. Em análise inicial, a Superintendência-Geral (SG) concluiu pela aprovação sem restrições, considerando que a participação agregada das empresas no mercado total seria inferior a 10% e que o setor apresentava baixa concentração, com milhares de pet shops de bairro, supermercados e redes regionais.
Entretanto, a empresa Petlove, concorrente direta e principal player digital do setor, interpôs recurso ao Tribunal do CADE, questionando os parâmetros utilizados na definição do mercado relevante.
Segundo a recorrente, a SG teria adotado uma definição excessivamente ampla, ao considerar na mesma categoria competitiva os pequenos pet shops, supermercados e marketplaces, quando, na realidade, a competição efetiva se dá em mercados segmentados.
O conselheiro relator, José Levi Mello do Amaral Júnior, acolheu a necessidade de exame mais aprofundado, determinando a elaboração de estudo econômico específico sobre os segmentos físico e online.
Essa decisão representou um marco no processo, por reconhecer que a dinâmica concorrencial do setor pet não pode ser reduzida a números agregados de market share.
Dois aspectos foram apontados como especialmente sensíveis:
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O modelo de superstores. Diferentemente dos pequenos pet shops, as superstores das redes Petz e Cobasi oferecem ampla variedade de produtos, inclusive marcas premium, além de serviços agregados (banho, tosa, atendimento veterinário). Essa diferenciação gera efeitos de rede e fidelização, que tornam a concorrência assimétrica em relação a estabelecimentos de menor porte.
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A relevância do e-commerce. Estimativas internas do CADE apontaram que a participação conjunta das duas companhias no comércio eletrônico poderia variar entre 40% e 50%. Esse percentual, em um mercado que cresce a taxas superiores ao varejo físico, é indicativo de poder de mercado significativo, sobretudo quando conjugado com a infraestrutura logística e a capacidade de investimento das empresas.
Além disso, especialistas alertaram para o aumento do poder de barganha da nova empresa frente a fornecedores. Mesmo que a participação total não ultrapasse 10%, a relevância de um único comprador com essa escala pode comprometer a autonomia dos fabricantes, levando-os a aceitar condições contratuais potencialmente desvantajosas.
O caso Petz-Cobasi, portanto, apresenta-se como um dos mais complexos recentemente submetidos ao CADE, por envolver não apenas questões de market share, mas sobretudo a delimitação adequada do mercado relevante, a análise de efeitos verticais e a avaliação de dinâmica multicanal (físico e digital).
4. Análise jurídica e econômica
A análise jurídica da operação deve partir da premissa de que, conforme o art. 36, §2º, da Lei nº 12.529/2011, a definição de mercado relevante é essencial para aferir a existência de poder de mercado. No caso em tela, a amplitude da definição utilizada pela SG foi contestada justamente por diluir a importância relativa das grandes redes em meio à pulverização de pet shops de bairro.
Sob o ponto de vista econômico, há evidências robustas de que a fusão pode gerar riscos concorrenciais localizados e setoriais, ainda que o market share agregado pareça reduzido. Isso porque:
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Mercado físico: os pet shops de bairro, embora numerosos, não têm condições de competir em sortimento, logística e negociação com fornecedores em relação às superstores. A fusão potencializa a consolidação de um duopólio que pode excluir ou enfraquecer concorrentes menores.
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Mercado digital: os números de faturamento são expressivos. Apenas no primeiro semestre de 2025, a Petz registrou R$ 871 milhões em vendas online, representando 42% de sua receita, enquanto a Cobasi somou R$ 634 milhões (38%). A concentração no e-commerce reforça barreiras de entrada e pode comprometer a competitividade de marketplaces independentes e de novos entrantes.
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Poder de barganha: a literatura econômica e a prática decisória do CADE reconhecem que a concentração pode gerar efeitos nocivos mesmo em cenários de market share relativamente baixos, desde que o poder de compra ou venda seja significativo. Nesse caso, fornecedores de rações, medicamentos e acessórios podem ver-se obrigados a aceitar condições comerciais impostas pela empresa resultante.
Outro ponto de destaque é o estudo econômico apresentado pela GO Associados, que, utilizando a metodologia GUPPI (Gross Upward Pricing Pressure Index), indicou que em 92% das lojas das redes haveria probabilidade de aumento de preços superior a 5%.
Esse valor é considerado limiar de preocupação concorrencial pelo próprio CADE, revelando risco concreto de elevação de preços para o consumidor final.
Do ponto de vista jurídico, a operação deve ser confrontada com os objetivos da ordem econômica previstos no art. 170. da Constituição Federal, notadamente a defesa da concorrência e a proteção do consumidor. Assim, a decisão do CADE não pode restringir-se a ganhos de eficiência alegados pelas empresas, mas deve equilibrar esses ganhos com os potenciais efeitos adversos sobre a estrutura de mercado.
Portanto, a fusão Petz-Cobasi representa um teste de estresse para os instrumentos jurídicos e econômicos do direito concorrencial, ao exigir análise mais sofisticada, que considere segmentações de mercado, efeitos dinâmicos e externalidades.
5. Jurisprudência do CADE em casos análogos
A atuação do CADE em precedentes anteriores fornece importantes balizas interpretativas para compreender a análise da fusão Petz-Cobasi. Dois eixos merecem destaque: (i) a experiência em fusões no setor varejista tradicional; e (ii) os julgamentos em mercados digitais e híbridos.
No varejo tradicional, o caso da fusão Raia-Drogasil (Ato de Concentração nº 08012.011508/2011-66) é emblemático. Embora as empresas alegassem baixa concentração em nível nacional, o CADE considerou relevante avaliar a sobreposição geográfica de lojas e a possibilidade de fechamento de mercado em determinadas regiões. A operação foi aprovada, mas com imposição de remédios concorrenciais, como a alienação de pontos de venda em áreas onde a concentração era elevada. Esse precedente demonstra que, mesmo quando a participação agregada parece pequena, a análise local e segmentada pode justificar restrições.
Há se levar em consideração a possibilidade de alienação de lojas em mercados regionais em que a concentração poderia prejudicar consumidores. Isto porque é entendimento consolidado que a análise concorrencial deve levar em conta não apenas índices nacionais, mas também condições específicas de competição em mercados locais.
No campo dos mercados digitais, a jurisprudência recente tem ressaltado o risco de subestimar a concentração em segmentos inovadores. O CADE, em julgamentos envolvendo plataformas de intermediação e marketplaces, destacou que o poder de rede, os efeitos de escala e os custos de troca (switching costs) podem criar barreiras à entrada tão ou mais relevantes do que a participação percentual de mercado.
Esses precedentes são particularmente relevantes para a operação Petz-Cobasi, pois demonstram que o órgão já reconhece a importância de análises dinâmicas e multissetoriais. No caso específico do varejo pet, a combinação entre lojas físicas de grande porte e plataformas digitais coloca a operação em um ponto de interseção entre os dois universos decisórios do CADE, demandando abordagem ainda mais cautelosa.
A comparação com tais casos indica que o CADE poderá adotar postura intermediária: aprovar a operação, mas impor remédios comportamentais ou estruturais destinados a preservar a concorrência, como limites à exclusividade contratual com fornecedores ou alienação de ativos em mercados digitais.
6. Conclusão
A fusão entre Petz e Cobasi transcende uma simples operação de concentração empresarial. Trata-se de um caso paradigmático que coloca à prova a capacidade do CADE de lidar com mercados complexos, caracterizados pela coexistência de canais físicos e digitais, pela presença de players de diferentes portes e pela crescente relevância do comércio eletrônico.
Embora o market share agregado da operação seja inferior a 10%, a análise segmentada revela riscos substanciais. No mercado físico, a consolidação das superstores pode limitar a concorrência de pet shops independentes, reduzir a diversidade de produtos premium disponíveis e afetar a estrutura de preços. No mercado digital, a participação conjunta estimada em até 50% sugere posição dominante, capaz de criar barreiras à entrada e limitar a competitividade de plataformas alternativas.
Do ponto de vista jurídico, a Lei nº 12.529/2011 exige que a autoridade antitruste considere não apenas dados agregados, mas também a estrutura do mercado relevante, os efeitos potenciais sobre fornecedores e consumidores, e a possibilidade de exercício de poder econômico. O estudo GUPPI, indicando risco de aumento de preços, reforça a necessidade de cautela.
O caso guarda paralelos com a fusão Raia-Drogasil e com operações analisadas no setor digital, em que o CADE adotou postura prudente, impondo restrições para mitigar riscos concorrenciais. Assim, é razoável esperar que a decisão final não se limite a aprovar ou reprovar a operação, mas considere a aplicação de remédios antitruste, tais como desinvestimentos, restrições contratuais ou compromissos de manutenção de canais de distribuição independentes.
Em última análise, a fusão Petz-Cobasi poderá constituir um leading case para o direito concorrencial brasileiro, estabelecendo parâmetros para a análise de fusões em setores híbridos e dinâmicos. A atuação do CADE será determinante não apenas para o futuro do mercado pet, mas também para consolidar um modelo de análise que valorize a proteção da concorrência e do consumidor em mercados cada vez mais complexos.
Referências
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 5 out. 1988.
BRASIL. Lei nº 12.529, de 30 de novembro de 2011. Estrutura o Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 1 dez. 2011.
CONSELHO ADMINISTRATIVO DE DEFESA ECONÔMICA (CADE). Atos de Concentração. Disponível em: https://www.gov.br/cade. Acesso em: 15 set. 2025.
CADE. Ato de Concentração nº 08012.011508/2011-66. Fusão Raia-Drogasil. Julgado em 2011. Disponível em: https://sei.cade.gov.br. Acesso em: 15 set. 2025.
INFOMONEY. Fusão Petz-Cobasi: o caminho não tão simples para a aprovação pelo Cade. Publicado em 15 set. 2025. Disponível em: https://www.infomoney.com.br/business/fusao-petz-cobasi-o-caminho-nao-tao-simples-para-a-aprovacao-pelo-cade/. Acesso em: 15 set. 2025
Abstract: This article analyzes the proposed merger between the retail chains Petz and Cobasi under Brazilian Antitrust Law (Law No. 12,529/2011) and the role of the Administrative Council for Economic Defense (CADE). Although the transaction represents less than 10% of the overall Brazilian pet market, it raises competitive concerns in specific segments, especially in e-commerce and the superstore model, which may negatively affect suppliers, consumers, and competitors. Based on legal standards, economic data, and CADE precedents, the study seeks to understand the rationale behind the antitrust review and the potential outcomes of the case.
Key words : Competition Law. Merger Control. Petz-Cobasi. CADE. Pet Retail.