Capa da publicação OS na gestão da saúde: quando regras viram barreiras
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A exigência de índices de liquidez e de patrimônio em chamamentos públicos para contratação de organizações sociais na gestão de unidades de saúde

27/09/2025 às 19:25

Resumo:


  • A exigência de índices contábeis e de patrimônio líquido mínimo em chamamentos públicos para Organizações Sociais na área da saúde pode restringir indevidamente a competitividade dos certames.

  • A aplicação analógica da Lei nº 14.133/2021 nos chamamentos públicos visa garantir isonomia, transparência e competitividade, mas deve ser constantemente aferida à luz da proporcionalidade.

  • A exigência de critérios econômico-financeiros deve ser proporcional ao risco do contrato, evitando impor barreiras ilegítimas à competitividade e respeitando os princípios da isonomia e da seleção da proposta mais vantajosa.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

A Administração pode exigir índices contábeis altos e patrimônio de 10% nos chamamentos de organizações sociais para a saúde? Tais regras, se desproporcionais, reduzem a concorrência e afetam o SUS.

Introdução

A expansão do modelo de gestão compartilhada de unidades públicas de saúde por meio de contratos de gestão com Organizações Sociais (OS) consolidou-se como estratégia da Administração para conferir eficiência e economicidade ao Sistema Único de Saúde (SUS). Nesse contexto, a fixação de critérios de habilitação econômico-financeira nos editais de chamamento público objetiva assegurar que as entidades contratadas detenham capacidade para honrar suas obrigações.

Ocorre que, quando tais requisitos são formulados de modo absoluto e desproporcional, produzem restrição artificial à competição, afastando entidades idôneas e tensionando a lógica constitucional das contratações públicas (art. 37, XXI, CF/88). Este artigo examina criticamente a exigência cumulativa de liquidez geral, liquidez corrente e solvência geral superiores a 1, bem como a exigência de patrimônio líquido mínimo de 10% do valor estimado da contratação — prática recorrente em chamamentos na área da saúde.

Embora tais exigências possam, em tese, revelar prudência administrativa na seleção de parceiros financeiramente estáveis, a desvinculação à realidade econômico-contábil das OS — entidades sem fins lucrativos, com patrimônio frequentemente imobilizado e dependência de repasses periódicos — conduz ao efeito inverso: redução indevida da competitividade, alijando entidades com comprovada capacidade técnica para gerir serviços hospitalares, apenas por não disporem de estrutura patrimonial típica de sociedades empresárias lucrativas.

Sustenta-se, portanto, que a adoção de parâmetros rígidos e descompassados da execução parcelada e continuada dos contratos de gestão compromete a própria finalidade da política pública, em desalinho com a Constituição e com os princípios do Direito Administrativo contemporâneo.


1. Autorização Legal e Aplicação Analógica da Lei nº 14.133/2021 nos Chamamentos Públicos

A exigência de índices econômico-financeiros como requisito de habilitação encontra respaldo expresso no art. 69. da Lei nº 14.133/2021, que autoriza a Administração a demandar a apresentação de demonstrações contábeis e parâmetros financeiros proporcionais ao risco da contratação.

O dispositivo admite, ainda, a fixação de patrimônio líquido mínimo de até 10% do valor estimado do ajuste, condicionando, entretanto, essa previsão à devida motivação e à demonstração de pertinência com o objeto a ser executado.

Cumpre esclarecer, no entanto, que embora a contratação de Organizações Sociais (OS) não esteja, em sentido estrito, sujeita ao regime das licitações, uma vez que se dá mediante contrato de gestão regulado pela Lei nº 9.637/1998, a prática administrativa tem consagrado o uso de chamamentos públicos como instrumento de seleção.

Isto porque, malgrado não necessite de realizar a licitação, tais chamamentos, têm o desiderato de assegurar isonomia, transparência e competitividade. Logo, os entes que conduzem tais procedimentos, acabam reproduzindo os ritos e critérios próprios da Lei nº 14.133/2021, inclusive no que se refere à qualificação econômico-financeira.

Esse movimento decorre de uma necessidade prática: como não há um estatuto processual específico que discipline de forma exaustiva os chamamentos de OS, os entes públicos valem-se da lei geral de licitações e contratações administrativas como paradigma normativo, aplicando-lhe dispositivos por analogia.

Trata-se de um expediente de segurança jurídica, de modo a garantir que a seleção das entidades gestoras se submeta a padrões objetivos e verificáveis, evitando arbitrariedades e reforçando a legitimidade do procedimento.

Ao analisar a referida legitimidade de índices de liquidez e solvência como instrumentos de aferição da capacidade econômico-financeira, o Acórdão nº 1.618/2016-Plenário estabeleceu que tais exigências são usuais, “desde que não sejam desarrazoadas ou desproporcionais ao objeto da licitação”.

Assim, ainda que não se trate tecnicamente de licitação, o raciocínio se estende aos chamamentos, dada a similitude de finalidade: selecionar, entre as entidades interessadas, aquela que reúna melhores condições de executar, em regime de parceria, serviços públicos essenciais.

Portanto, a autorização legal para a exigência de índices contábeis coexiste com a opção administrativa pela aplicação analógica da Lei nº 14.133/2021 aos chamamentos públicos de Organizações Sociais. Essa prática, se por um lado reforça a seriedade do processo seletivo, por outro deve ser constantemente aferida à luz da proporcionalidade, a fim de não converter critérios auxiliares em barreiras ilegítimas à competitividade.


2. Qualificação Econômico-Financeira e Seus Limites em Chamamentos Públicos

Como vimos, a qualificação econômico-financeira constitui requisito de habilitação legítimo nos chamamentos públicos, desde que aplicada de modo proporcional e compatível com o objeto.

A Lei nº 14.133/2021, em seu art. 69, dispõe que a Administração poderá exigir, como condição de habilitação, a demonstração de capacidade econômico-financeira, vedadas exigências não previstas em lei, estabelecendo ainda que o patrimônio líquido mínimo não poderá exceder a 10% do valor estimado da contratação (§4º), devendo, contudo, tais parâmetros estar justificados no processo licitatório, de forma objetiva e em função do risco do contrato” (§2º e §5º).

Nesse sentido, a jurisprudência do Tribunal de Contas da União reforça esses limites.

No Acórdão nº 1.618/2016-Plenário, o TCU assentou que:

“A exigência de índices de liquidez e solvência, extraídos do balanço patrimonial, é legítima e usual, desde que não sejam desarrazoados ou desproporcionais ao objeto da licitação.”

No mesmo sentido, a Súmula nº 289/TCU estabelece que:

“A exigência de índices contábeis de capacidade financeira, a exemplo dos de liquidez, deve estar justificada no processo da licitação, conter parâmetros atualizados de mercado e atender às características do objeto licitado, sendo vedado o uso de índice cuja fórmula inclua rentabilidade ou lucratividade.”

Entretanto, alguns editais de chamamento na área da saúde têm imposto, de forma cumulativa, que Liquidez Geral, Liquidez Corrente e Solvência Geral sejam todos superiores a 1.

Até mesmo em uma cognição sumária, é possível inferir que tal critério, embora concebido para atestar a solidez das entidades, mostra-se restritivo em contratos de longa duração e vultoso valor, como os de gestão hospitalar de unidades hospitalares que prestam serviços 100% SUS.

Ora, esses certames tem por finalidade a contratação de organizações sociais – entidades de direito privado sem fins lucrativos, de caráter filantrópico –, cuja realidade econômico-financeira não se assemelha à de sociedades empresariais.

É sabido que tais instituições direcionam seus recursos majoritariamente para a atividade-fim, com relevante parcela de ativos imobilizados e dependência de repasses públicos periódicos, de modo que não se mostra razoável exigir, de forma absoluta, que todos os índices de liquidez geral, corrente e solvência sejam mantidos permanentemente acima de 1,0.

Assim, tal rigor formal, em vez de atestar a efetiva capacidade de gestão hospitalar, acaba por excluir entidades idôneas que desempenham papel essencial no sistema público de saúde, restringindo de forma indevida a competitividade do certame e afrontando os princípios da isonomia e da seleção da proposta mais vantajosa

Nesse sentido, o Acórdão nº 1.087/2025-Plenário/TCU alertou que reconheceu que a aferição de capital circulante líquido ou capital de giro deve considerar apenas o período de 12 meses da execução, independentemente da duração total do contrato, sob pena de restringir indevidamente a competitividade.

Para efeitos de qualificação econômico-financeira em licitação de serviços continuados, o índice de 16,66% do Capital Circulante Líquido ou Capital de Giro, previsto no Anexo VII-A, item 11.1.b, da IN Seges-MPDG 5/2017 (aplicada no âmbito da Lei 14.133/2021 por força do art. 1º da IN Seges-ME 98/2022), deve ser apurado em função do preço estimado da contratação para o período de doze meses, independentemente da duração do contrato, sob o risco de restrição à competitividade e direcionamento do certame.

A doutrina acompanha esse entendimento. Marçal Justen Filho adverte que a qualificação econômico-financeira deve ser facultativa e proporcional ao risco do contrato, não podendo converter-se em obstáculo absoluto à competitividade.

“Não é possível supor que “qualificação econômico-financeira” para executar uma hidrelétrica seja idêntica àquela exigida para fornecer bens de pequeno valor. Mesmo nos casos em que não se configurarem presentes os requisitos de capital social ou patrimônio líquidos mínimos, será possível estabelecer regras acerca da qualificação econômico financeira. [...] Deve-se reconhecer que existem requisitos de habilitação cuja exigência é facultativa e que poderão ser dispensados em alguns casos. Assim se passa, por exemplo, com a qualificação econômico-financeira e com a qualificação técnica, que não necessitam ser examinadas em algumas hipóteses. Em tais situações, a dispensa da documentação é uma decorrência da ausência de exigência de requisitos de habilitação.

(JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratações Administrativas: Lei 14.133/2021. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021, p. 882. e 906).

O autor ressalta, contudo, que eventuais compromissos que afetem o patrimônio líquido devem estar refletidos no balanço patrimonial, sendo que a relação complementar somente pode referir-se a eventos posteriores à data de apuração. Assim, é imprescindível assegurar ao licitante a possibilidade de demonstrar que compromissos supervenientes não reduziram seu patrimônio líquido a ponto de inviabilizar a habilitação, de modo a evitar que o formalismo contábil distorça a aferição da capacidade econômico-financeira.

“A exigência de relação de compromissos apenas adquire sentido quando a execução da prestação pressupuser recursos financeiros de certa monta. [...] Todos os compromissos que afetem o patrimônio líquido terão de estar previstos no balanço. A relação dos compromissos apenas pode referir-se a eventos posteriores à data de apuração do balanço. Ora, a empresa pode ter ampliado o montante de seus compromissos após o balanço tanto quanto pode ter aumentado a sua disponibilidade de recursos. Logo, deve ser assegurado ao licitante demonstrar que os compromissos supervenientes não reduziram o montante do patrimônio líquido, de modo a continuar a preencher os requisitos do edital.”

(JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratações Administrativas: Lei 14.133/2021. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021, p. 899).

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Na mesma linha, Joel de Menezes Niebuhr enfatiza que os balanços patrimoniais, por si só, não retratam a real capacidade de honrar obrigações futuras, sendo necessária interpretação prudente e razoável:

“A finalidade é permitir que a Administração analise as reais condições dos licitantes, porque os dados constantes dos balanços patrimoniais dos dois últimos exercícios podem não retratar a efetiva e atual capacidade econômico-financeira dos licitantes, sobremodo se eles contraíram outros compromissos que as absorvam.”

(NIEBUHR, Joel de Menezes. Licitação pública e contrato administrativo. Belo Horizonte: Fórum, 2023, p. 802).

Portanto, a exigência de que todos os índices contábeis estejam acima de 1,0, sem motivação técnica adequada e sem ajuste ao risco efetivo da execução, pode-se revelar restritiva e ilegal, afrontando o disposto no art. 69, §§ 2º e 5º, da Lei nº 14.133/2021, a jurisprudência consolidada do TCU e os princípios constitucionais da isonomia e da ampla competitividade.

Quanto ao patrimônio líquido mínimo, a exigência de 10% calculado sobre o valor global do contrato — prática adotada em certames de saúde que superam cifras de centenas de milhões de reais — revela-se manifestamente desproporcional.

Nesse sentido, o Acórdão nº 1.087/2025-Plenário/TCU enfatizou que, para serviços continuados, a aferição do capital circulante líquido deve se dar com base no valor correspondente a 12 meses de execução, e não sobre a integralidade do contrato, justamente para evitar restrição indevida à competitividade.

Para efeitos de qualificação econômico-financeira em licitação de serviços continuados, o índice de 16,66% do Capital Circulante Líquido ou Capital de Giro, previsto no Anexo VII-A, item 11.1.b, da IN Seges-MPDG 5/2017 (aplicada no âmbito da Lei 14.133/2021 por força do art. 1º da IN Seges-ME 98/2022), deve ser apurado em função do preço estimado da contratação para o período de doze meses, independentemente da duração do contrato, sob o risco de restrição à competitividade e direcionamento do certame.

A ratio decidendi do precedente é clara: não se pode calcular exigências de capital ou patrimônio líquido com base no valor global plurianual do contrato, devendo-se limitar ao valor correspondente a 12 meses de execução, sob pena de criar barreira artificial ao ingresso de potenciais contratados.

No âmbito judicial, o Superior Tribunal de Justiça já decidiu que a exigência de patrimônio líquido mínimo deve observar limites compatíveis com o período contratual de 12 meses, sob pena de afronta ao caráter competitivo do certame:

RECURSO ESPECIAL - ADMINISTRATIVO - LICITAÇÃO PÚBLICA - SERVIÇOS DE LIMPEZA E CONSERVAÇÃO - EDITAL - ART. 30, II, DA LEI N. 8.666/93 - EXIGÊNCIA DE CAPACITAÇÃO TÉCNICA E FINANCEIRA LÍCITA - ART . 57, II, DA LEI N. 8.666/93 - AUSÊNCIA DE PREQUESTIONAMENTO - PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS DE FORMA CONTÍNUA - PATRIMÔNIO LÍQÜIDO MÍNIMO - DURAÇÃO DO CONTRATO FIXADA AB INITIO EM 60 MESES - ILEGALIDADE - RECURSO ESPECIAL PROVIDO EM PARTE. É certo que não pode a Administração, em nenhuma hipótese, fazer exigências que frustrem o caráter competitivo do certame, mas sim garantir ampla participação na disputa licitatória, possibilitando o maior número possível de concorrentes, desde que tenham qualificação técnica e econômica para garantir o cumprimento das obrigações . Dessarte, inexiste violação ao princípio da igualdade entre as partes se os requisitos do edital, quanto à capacidade técnica, são compatíveis com o objeto da concorrência. "O prequestionamento diz com a adoção de tese pelo voto condutor e não com o conteúdo do"voto vencido". Se a posição majoritária foi explicitada em voto, com considerações genéricas, carecedoras de objetividade, e ainda, sem indicação dos dispositivos legais pertinentes, os embargos de declaração deveriam ter sido opostos (Súmulas n. 282. e 356-STF e 98-STJ)" ( REsp 182 .370/AC, Rel. Min. Felix Fischer, DJ de 18.12 .1998). Apesar dos §§ 2º e 3º do artigo 31 da Lei de Licitações disporem que a Administração, na execução de serviços, poderá estabelecer, no instrumento convocatório da licitação, a exigência de patrimônio liqüído mínimo que não exceda a 10% (dez por cento) do valor estimado da contratação, na hipótese dos autos essa exigência é ilegal, pois o valor do patrimônio líqüido mínimo previsto no edital foi calculado com base na prestação do serviço pelo período inicial de 60 (sessenta) meses, contrariamente ao que dispõe o artigo 57, inciso II, da Lei 8.666/93. Recurso especial provido em parte .

(STJ - REsp: 474781 DF 2002/0147947-1, Relator.: Ministro FRANCIULLI NETTO, Data de Julgamento: 08/04/2003, T2 - SEGUNDA TURMA, Data de Publicação: --> DJ 12/05/2003 p. 297)

No mesmo sentido, o Tribunal de Justiça de Santa Catarina consolidou entendimento de que a aferição de requisitos econômico-financeiros deve se dar em bases razoáveis, notadamente limitando-se ao período de doze meses, sob pena de violação à competitividade do certame. Na ocasião, a Corte catarinense consignou:

“APELAÇÃO E REMESSA OBRIGATÓRIA. MANDADO DE SEGURANÇA. EDITAL DE CONCORRÊNCIA DO TIPO MAIOR PERCENTUAL DE RETORNO, PARA CONCESSÃO DOS SERVIÇOS DE REMOÇÃO E CUSTÓDIA DE VEÍCULOS. EMPRESA INDIVIDUAL DE RESPONSABILIDADE LIMITADA ALIJADA DO CERTAME, PELO NÃO PREENCHIMENTO DOS REQUISITOS DE QUALIFICAÇÃO ECONÔMICO-FINANCEIRA. VEREDICTO QUE CONCEDEU A SEGURANÇA POSTULADA, REVERTENDO A DECISÃO ADMINISTRATIVA DE INABILITAÇÃO. [...] ESCORREITA HABILITAÇÃO DA LICITANTE QUE COMPROVOU PATRIMÔNIO LÍQUIDO SOBRE O VALOR PREVISTO PARA 12 (DOZE) MESES DE CONTRATAÇÃO. RECURSO CONHECIDO E DESPROVIDO. SENTENÇA CONFIRMADA EM REEXAME NECESSÁRIO.”

(TJSC. Primeira Câmara de Direito Público. Apelação / Remessa Necessária n. 0307367-34.2018.8.24.0064. Rel. Des. Luiz Fernando Boller. Julgado em 8 mar. 2022).

Do mesmo modo, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Norte afastou a possibilidade de se exigir patrimônio líquido mínimo calculado sobre todo o período contratual de 48 meses, entendendo tal prática como restritiva à competitividade e incompatível com a ordem constitucional:

“CONSTITUCIONAL, ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL. REMESSA NECESSÁRIA E APELAÇÃO CÍVEL EM MANDADO DE SEGURANÇA. SENTENÇA DE CONCESSÃO PARCIAL DA ORDEM IMPETRADA. [...] LICITAÇÃO PÚBLICA. EXIGÊNCIA DE QUALIFICAÇÃO ECONÔMICO-FINANCEIRA PARA FINS DE HABILITAÇÃO NO CERTAME. PATRIMÔNIO LÍQUIDO MÍNIMO DO LICITANTE. PREVISÃO NO ARTIGO 31, §§ 2º E 3º, DA LEI Nº 8.666/93. CÁLCULO SOBRE O VALOR TOTAL DO CONTRATO, COM DURAÇÃO DE 48 (QUARENTA E OITO) MESES. ILEGALIDADE. SERVIÇO DE EXECUÇÃO CONTINUADA. AFRONTA AO CARÁTER COMPETITIVO DO CERTAME. OBSERVÂNCIA DO DISPOSTO NO ARTIGO 37, INCISO XXI, DA CONSTITUIÇÃO DA REPUBLICA. PRECEDENTE DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. MANUTENÇÃO DA SENTENÇA. RECURSO CONHECIDO PARCIALMENTE E, NESTA PARTE, DESPROVIDO. REMESSA NECESSÁRIA CONHECIDA E DESPROVIDA.”

(TJRN. Segunda Câmara Cível. Apelação Cível n. 0822217-87.2017.8.20.5106. Rel. Des. Judite Nunes. 3ª Vara da Fazenda Pública de Mossoró. Julgado em 2017).

A doutrina igualmente reforça essa visão. Joel de Menezes Niebuhr afirma que:

“A exigência de capital social ou patrimônio líquido mínimo em percentual de até 10% (dez por cento) do valor estimado da contratação, como estipulado no §4º do artigo 69 da Lei nº 14.133/2021, constitui ótimo instrumento para complementar as informações obtidas com os índices contábeis. [...] Afora os índices, é preciso saber dos valores que os licitantes dispõem para fazer frente às obrigações contratuais. Daí, o capital social ou patrimônio líquido mínimo tornam-se úteis. Advirta-se que, sob essa perspectiva, não faz sentido exigir, de maneira alternativa, de um lado, o capital social ou patrimônio líquido mínimo e, de outro lado, os índices contábeis. Também não faz sentido que o capital social ou o patrimônio líquido mínimo somente seja exigido quando os índices contábeis não forem suficientes.”

(NIEBUHR, Joel de Menezes. Licitação pública e contrato administrativo. Belo Horizonte: Fórum, 2023, p. 801).

Em síntese, a exigência cumulativa de índices >1 e de PL de 10% sobre o valor global, sem motivação técnica idônea e sem correlação com o risco e a execução anualizada, converte-se em barreira ilegítima, violando art. 69, §§ 2º, 4º e 5º, da Lei nº 14.133/2021, a jurisprudência do TCU/STJ/TJs e os princípios da competitividade, isonomia e seleção da proposta mais vantajosa.


Conclusão

A análise empreendida evidencia que a exigência de índices contábeis (LG, LC e SG superiores a 1) e de patrimônio líquido mínimo de 10% do valor estimado da contratação, quando aplicadas cumulativa e rigidamente nos chamamentos públicos para seleção de Organizações Sociais (OS) voltadas à gestão de unidades de saúde, excede os limites de proporcionalidade, razoabilidade e motivação técnica traçados pelo art. 69, §§ 2º, 4º e 5º, da Lei nº 14.133/2021. ]

Embora a Administração disponha de autorização legal para aferir a capacidade econômico-financeira, a adoção de parâmetros absolutos, descontextualizados do risco do objeto e da dinâmica de execução anualizada dos contratos de gestão (com repasses periódicos e prestação continuada) degenera em barreira artificial à competitividade, tensionando os princípios da isonomia e da seleção da proposta mais vantajosa.

Assim, sob o prisma da LINDB (art. 20), impõe-se avaliar as consequências práticas das decisões administrativas, pois filtros desmedidos reduzem o universo de competidores idôneos, com potencial prejuízo à eficiência, à continuidade e à economicidade dos serviços hospitalares prestados à população.

Logo, à Administração não é dado transformar critérios auxiliares de segurança contratual em exigências impeditivas, sobretudo quando se trata de OS sem fins lucrativos, cujo perfil patrimonial — frequentemente imobilizado e vinculado à atividade-fim — não se confunde com o de sociedades empresárias lucrativas.

Dessa forma, em síntese, a autorização legal para a exigência de índices e patrimônio subsiste, mas não legitima a imposição de metas contábeis absolutas dissociadas do risco, do mercado e da natureza das OS, tendo em vista que o parâmetro correto é o da proporcionalidade material, com base de cálculo anual (12 meses), justificação técnica e adequação ao objeto, de modo a preservar a competitividade e assegurar a efetividade da política pública de gestão hospitalar — finalidade última que a Constituição e a legislação de regência buscam resguardar.


Referências

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Senado Federal, 1988.

BRASIL. Instrução Normativa SEGES/ME nº 98, de 19 de dezembro de 2022. Dispõe sobre a aplicação da IN SEGES/MPDG nº 5/2017 no âmbito da Lei nº 14.133/2021. Diário Oficial da União: Brasília, DF, 20 dez. 2022.

BRASIL. Instrução Normativa SEGES/MPDG nº 5, de 26 de maio de 2017. Dispõe sobre regras e diretrizes do procedimento de contratação de serviços sob o regime da Lei nº 8.666/1993. Diário Oficial da União: Brasília, DF, 26 maio 2017.

BRASIL. Lei nº 9.637, de 15 de maio de 1998. Dispõe sobre a qualificação de entidades como Organizações Sociais e dá outras providências. Diário Oficial da União: Brasília, DF, 18 maio 1998.

BRASIL. Lei nº 14.133, de 1º de abril de 2021. Lei de Licitações e Contratos Administrativos. Diário Oficial da União: Brasília, DF, 1 abr. 2021.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 474.781/DF. Relator: Ministro Franciulli Netto. 2ª Turma. Julgado em 08 abr. 2003. Diário da Justiça, Brasília, DF, 12 maio 2003, p. 297.

BRASIL. Tribunal de Contas da União. Acórdão nº 1.087/2025 – Plenário.

BRASIL. Tribunal de Contas da União. Acórdão nº 1.618/2016 – Plenário. Relator: Ministro Walton Alencar Rodrigues. Sessão de 29 jun. 2016.

BRASIL. Tribunal de Contas da União. Súmula nº 289. Sessão Plenária de 15 set. 2016.

JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratações Administrativas: Lei 14.133/2021. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021.

NIEBUHR, Joel de Menezes. Licitação pública e contrato administrativo. Belo Horizonte: Fórum, 2023.

RIO DE JANEIRO. Tribunal de Contas do Município. Processo nº 040/100314/2024.

RIO GRANDE DO NORTE. Tribunal de Justiça. Apelação Cível nº 0822217-87.2017.8.20.5106. Relatora: Des. Judite Nunes. 2ª Câmara Cível. Julgado em 2017.

SANTA CATARINA. Tribunal de Justiça. Apelação/Remessa Necessária nº 0307367-34.2018.8.24.0064. Relator: Des. Luiz Fernando Boller. 1ª Câmara de Direito Público. Julgado em 08 mar. 2022.

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Sobre o autor
Jamil Pereira de Santana

Mestre em Direito, Governança e Políticas Públicas pela UNIFACS - Universidade Salvador | Laureate International Universities. Possui pós-graduações em Direito Público (Constitucional, Administrativo e Tributário) pelo Centro Universitário Estácio e em Licitações e Contratos Administrativos pela Universidade Pitágoras Unopar Anhanguera. Bacharel em Direito pelo Centro Universitário Estácio da Bahia. É 1º Tenente R2 do Exército Brasileiro, membro ativo na Comissão Nacional de Direito Militar da ABA (Associação Brasileira de Advogados) e Vice-presidente da Comissão Estadual de Direito Militar da ABA. Compõe o Conselho Editorial da Revista Direitos Humanos Fundamentais da UNIFIEO e da Editora Mente Aberta. Atua como Professor de Direito Administrativo na Múltipla Difusão do Conhecimento. É Docente no Curso de Direito da UNINASSAU. Advogado contratado pelas Obras Sociais Irmã Dulce, com experiência em Direito Administrativo e Militar.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SANTANA, Jamil Pereira. A exigência de índices de liquidez e de patrimônio em chamamentos públicos para contratação de organizações sociais na gestão de unidades de saúde. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 30, n. 8123, 27 set. 2025. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/115790. Acesso em: 5 dez. 2025.

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