A decisão do STF sobre a cobertura de planos de saúde.

Análise crítica e implicações para o Direito Médico

30/09/2025 às 07:50

Resumo:


  • A decisão do STF validou a Lei 14.454/2022, impondo critérios cumulativos para a cobertura de procedimentos não listados no rol da ANS.

  • Os critérios exigidos para a cobertura excepcional incluem prescrição médica, inexistência de alternativa no rol da ANS, comprovação de eficácia, registro na Anvisa e ausência de negativa expressa da ANS.

  • Críticas à decisão apontam preocupações com negativas de cobertura, burocracia, aumento da judicialização, desigualdade no acesso e limitação à inovação na saúde suplementar.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

O STF validou a Lei 14.454/22, exigindo critérios cumulativos para tratamentos fora do rol da ANS. A decisão reforça segurança jurídica, mas vai restringir a acessibilidade?

Resumo: Este artigo procede a uma análise crítica da recente decisão do Supremo Tribunal Federal que validou a Lei 14.454/2022, estabelecendo critérios cumulativos para a cobertura de procedimentos não listados no rol da Agência Nacional de Saúde Suplementar. Explora-se as implicações dessa decisão para os usuários, as operadoras de planos de saúde e o futuro da judicialização da saúde no Brasil, com especial atenção às preocupações atinentes à acessibilidade e à equidade do sistema de saúde.

Palavras-chave: Direito Médico, Planos de Saúde, STF, Rol da ANS, Judicialização da Saúde, Acessibilidade à Saúde.


1. Introdução

A saúde suplementar no Brasil constitui um campo jurídico e social de elevada complexidade, caracterizado por uma constante dialética entre o direito fundamental à saúde, assegurado constitucionalmente, e a necessidade de sustentabilidade econômica das entidades operadoras de planos de saúde. A recente validação, pelo Supremo Tribunal Federal, da Lei nº 14.454/2022, que impõe aos planos de saúde a obrigatoriedade de cobertura de tratamentos e exames não expressamente listados no rol da Agência Nacional de Saúde Suplementar sob condições específicas, configura um marco decisivo nesse panorama. Embora a intenção subjacente à legislação e à decisão judicial seja a de harmonizar os interesses em conflito, a imposição de critérios cumulativos para a concessão dessa cobertura tem suscitado intensos debates e levantado sérias preocupações quanto aos seus impactos na acessibilidade e na equidade do sistema de saúde brasileiro. O presente artigo propõe uma análise aprofundada dessa decisão, examinando seus fundamentos normativos e jurisprudenciais, as críticas formuladas por diversos setores da sociedade civil e do mercado, e as potenciais consequências para o direito médico e para a sociedade em geral.


2. A Decisão do STF e os Critérios para Cobertura Excepcional

Em sua deliberação, o STF referendou a constitucionalidade da Lei nº 14.454/2022, que estabelece a obrigatoriedade de cobertura, por parte dos planos de saúde, de tratamentos e procedimentos que não constam expressamente no rol da ANS 1. Contudo, é imperioso ressaltar que essa cobertura excepcional está condicionada ao cumprimento rigoroso de cinco critérios cumulativos, cuja observância é indispensável para a sua concessão:

  • Prescrição médica ou odontológica: O tratamento em questão deve ser devidamente prescrito por profissional de saúde legalmente habilitado, com a devida fundamentação clínica 1.

  • Inexistência de alternativa terapêutica no rol da ANS: É condição sine qua non que não exista uma alternativa de tratamento já prevista e eficaz na lista de procedimentos da ANS para a condição clínica específica do paciente 1.

  • Comprovação de eficácia e segurança: A eficácia e a segurança do tratamento proposto devem ser comprovadas por meio de evidências científicas robustas, conforme padrões reconhecidos pela comunidade médica e científica 1.

  • Registro na Anvisa: O tratamento, medicamento ou produto para a saúde em questão deve possuir registro ativo na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), garantindo sua conformidade regulatória 1.

  • Inexistência de negativa expressa ou pendência de análise para atualização do rol: Não pode haver uma negativa explícita da ANS para a inclusão do procedimento no rol, nem o procedimento pode estar em fase de análise para atualização da lista, indicando uma prévia avaliação da agência reguladora 1.

Adicionalmente aos critérios materiais supracitados, o STF também delineou procedimentos judiciais específicos para os casos de negativa de cobertura. Em tal cenário, o usuário deve, em primeira instância, formalizar o requerimento de cobertura diretamente à operadora. Somente após a constatação de demora injustificada ou omissão por parte do plano de saúde, o beneficiário poderá acionar o Poder Judiciário. Nesses casos, o magistrado deverá proceder à verificação de dados técnicos, podendo valer-se de informações e pareceres técnicos fornecidos por órgãos como o Núcleo de Apoio Técnico do Judiciário (NATJUS). Caso uma medida liminar seja concedida, a ANS será notificada para avaliar a eventual inclusão do procedimento no rol, evidenciando a intersecção entre as esferas judicial e regulatória 1.


3. Críticas e Preocupações: A Perspectiva do Consumidor e da Sociedade Civil

O Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec) tem se posicionado como uma das vozes mais incisivas na crítica à decisão do STF, argumentando que a mesma pode acarretar prejuízos significativos aos usuários de planos de saúde. Conforme o Idec, a imposição de critérios tão rigorosos tende a privilegiar os argumentos de ordem econômica das operadoras em detrimento do direito fundamental à saúde dos beneficiários 1. A principal apreensão reside na possibilidade de que inúmeros tratamentos essenciais, que porventura não se enquadrem de forma estrita nos cinco critérios estabelecidos, venham a ser negados com base em formalidades ou na suposta insuficiência de evidência científica 1.

Essa perspectiva sugere um cenário mais restritivo do que o inicialmente vislumbrado após a promulgação da Lei nº 14.454/2022, cujo propósito era conferir ao rol da ANS um caráter mais exemplificativo, visando a ampliar o acesso a tratamentos inovadores. A decisão do STF, ao invés de promover uma maior amplitude, parece instituir barreiras adicionais. O Idec alerta para o risco iminente de um recrudescimento da judicialização, uma vez que os usuários se verão compelidos a recorrer ao Poder Judiciário para assegurar seus direitos, o que implica em custos financeiros, dispêndio de tempo e a necessidade de acesso a orientação jurídica especializada 1.

As implicações práticas dessa decisão são multifacetadas e geram considerável preocupação:

  • Negativas de Cobertura: As operadoras de planos de saúde poderão fundamentar recusas de procedimentos na ausência de registro na Anvisa, na alegação de existência de alternativa terapêutica no rol, ou na percepção de insuficiência de comprovação científica robusta, mesmo para tratamentos que demonstrem grande potencial 19.

  • Burocracia e Demora: O ônus da prova para o cumprimento dos requisitos recairá sobre o paciente, que será obrigado a reunir laudos médicos, evidências científicas e prescrições detalhadas. Este processo pode ser oneroso e moroso, especialmente para indivíduos com recursos limitados ou em situações de urgência clínica 13.

  • Aumento da Judicialização: A necessidade de acionar o sistema de justiça para garantir a cobertura de tratamentos pode sobrecarregar ainda mais o Judiciário e, consequentemente, prolongar o sofrimento dos pacientes, que já se encontram em situação de vulnerabilidade 12.

  • Desigualdade no Acesso: Pacientes com maior poder aquisitivo e acesso facilitado a advogados e a laudos científicos de alta qualidade terão uma probabilidade significativamente maior de obter os tratamentos necessários, o que poderá aprofundar as desigualdades já existentes no acesso à saúde suplementar 13.

  • Limitação à Inovação: Tratamentos inovadores ou destinados a doenças raras, que frequentemente carecem de evidências científicas plenamente consolidadas ou de um registro célere na Anvisa, podem ter seu acesso inviabilizado, mesmo que já sejam reconhecidos e empregados por parte da comunidade médica internacional 13.

Em síntese, a perspectiva dos consumidores e das entidades de defesa aponta para uma decisão que, embora almeje a segurança jurídica, pode gerar um impacto adverso na vida de milhares de cidadãos brasileiros, dificultando o acesso a tratamentos essenciais e exacerbando a burocracia e a judicialização no âmbito da saúde suplementar. 13689


4. As Visões dos Demais Atores: ANS, Setor Hospitalar e Operadoras

A decisão do STF, embora alvo de críticas por parte das entidades de defesa do consumidor, foi recepcionada com distintas perspectivas pelos demais atores envolvidos no sistema de saúde suplementar. A ANS, por exemplo, interpretou a decisão como uma reafirmação de sua prerrogativa institucional na definição do rol de coberturas obrigatórias, ao mesmo tempo em que estabelece balizas claras para as exceções. Para a ANS, o julgamento representa um ponto de equilíbrio que mantém o rol como referência primordial, mas admite exceções devidamente delimitadas, conferindo maior segurança jurídica ao sistema como um todo 45.

O setor de hospitais, clínicas e laboratórios, representado por entidades de classe como a Federação dos Hospitais do Estado de São Paulo (FeSaúde), também manifestou a imperatividade de segurança jurídica e de um equilíbrio regulatório. Francisco Balestrin, presidente da FeSaúde, enfatizou que o rol não pode ser considerado absoluto, mas tampouco pode configurar um “convite a coberturas sem limites”, defendendo a aplicação de critérios técnicos transparentes, eficácia comprovada e registro regulatório. A preocupação do setor com a judicialização excessiva e a imprevisibilidade para os prestadores de serviço é manifesta 6.

Advogados e especialistas em direito da saúde apresentam visões divergentes acerca da matéria. Alguns alertam que os cinco critérios impostos pelo STF tornam o processo de acesso a tratamentos fora do rol mais complexo para usuários com menor poder aquisitivo ou menos articulados, transferindo um ônus probatório substancial para o paciente. Tal cenário pode inviabilizar o acesso a tratamentos inovadores ou pouco difundidos, ainda que potencialmente benéficos 7. Em contrapartida, há defensores da tese de que a decisão confere maior previsibilidade às operadoras de planos de saúde, coibindo decisões judiciais excessivamente amplas e desprovidas de critérios uniformes, o que, em tese, poderia mitigar abusos e reduzir custos inesperados para as operadoras 7.

As operadoras de planos de saúde, embora não tenham emitido declarações públicas extensas sobre o tema, provavelmente encaram a decisão com otimismo. A fixação de parâmetros objetivos limita as exigências judiciais genéricas e pode resultar na diminuição de indenizações ou obrigações inesperadas. A sustentabilidade financeira do setor é uma preocupação constante, e a ausência de critérios claros para a cobertura de tratamentos de alto custo ou sem eficácia comprovada poderia impactar negativamente os custos dos contratos e a solvência das operadoras, justificando a busca por maior previsibilidade 7.


5. Conclusão: Entre a Segurança Jurídica e o Acesso à Saúde

A decisão do Supremo sobre a cobertura de procedimentos não listados no rol da ANS representa um esforço notável para conferir segurança jurídica a um tema intrinsecamente complexo e de vasto impacto social. Ao estabelecer critérios objetivos e cumulativos, a Suprema Corte buscou delinear um caminho intermediário entre a rigidez de um rol taxativo e a imprevisibilidade de um rol meramente exemplificativo. Não obstante, uma análise crítica e aprofundada dessa decisão revela que, na prática, os critérios impostos podem erigir barreiras significativas ao acesso à saúde, particularmente para os pacientes em situação de maior vulnerabilidade.

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A exigência de comprovação de eficácia científica, o registro na Anvisa e a inexistência de alternativa terapêutica no rol, embora teoricamente razoáveis, podem, na prática, converter-se em obstáculos intransponíveis. O lapso temporal necessário para que novos tratamentos obtenham registro e acumulem evidências científicas robustas pode ser excessivamente longo para indivíduos que demandam cuidados urgentes. Adicionalmente, a transferência do ônus da prova para o paciente estabelece uma assimetria de poder, na qual as operadoras de saúde, munidas de seus recursos jurídicos e técnicos, detêm uma vantagem considerável.

A preocupação com a sustentabilidade financeira do setor de saúde suplementar é, sem dúvida, legítima e pertinente, mas não pode, sob nenhuma hipótese, sobrepor-se ao direito fundamental à saúde. A decisão do STF, ao priorizar a segurança jurídica e a previsibilidade para as operadoras, incorre no risco de desassistir justamente aqueles que mais necessitam de proteção. A judicialização, que se pretendia mitigar, pode, paradoxalmente, intensificar-se, à medida que os pacientes se veem compelidos a buscar no Poder Judiciário a garantia de um tratamento que lhes foi negado na esfera administrativa.

Em última análise, a decisão do STF acerca do rol da ANS, embora imbuída de boas intenções em sua busca por equilíbrio, parece inclinar-se para a proteção dos interesses econômicos das operadoras, em detrimento da efetivação do acesso universal e equitativo à saúde. Resta aguardar como o Poder Judiciário, em suas instâncias inferiores, interpretará e aplicará esses novos critérios, e qual será o impacto real na vida de milhões de brasileiros que dependem dos planos de saúde para a manutenção de sua saúde e bem-estar.


Referências

1 Agência Brasil. Idec diz que decisão do STF vai prejudicar usuários de planos de saúde. Brasília, 19 set. 2025. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/saude/noticia/2025-09/idec-diz-que-decisao-do-stf-vai-prejudicar-usuarios-de-planos-de-saude. Acesso em: 20 set. 2025.

2 JOTA Jornalismo. STF define critérios mais rígidos para tratamentos fora do rol da ANS. Disponível em: https://www.jota.info/saude/stf-define-criterios-mais-rigidos-para-tratamentos-fora-do-rol-da-ans. Acesso em: 20 set. 2025.

3 Migalhas.STF admite hipóteses de cobertura fora do rol da ANS e fixa critérios. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/quentes/440412/stf-admite-hipoteses-de-cobertura-fora-do-rol-da-ans-e-fixa-criterios. Acesso em: 20 set. 2025.

4 Serviços e Informações do Brasil. Maioria dos ministros do STF vota a favor de regras claras para coberturas fora do rol. Disponível em: https://www.gov.br/ans/pt-br/assuntos/noticias/sobre-ans/maioria-dos-ministros-do-stf-vota-a-favor-de-regras-claras-para-coberturas-fora-do-rol. Acesso em: 20 set. 2025.

5 Notícias STF. STF fixa critérios para que planos de saúde cubram tratamentos fora da lista da ANS. Disponível em: https://noticias.stf.jus.br/postsnoticias/stf-fixa-criterios-para-que-planos-de-saude-cubram-tratamentos-fora-da-lista-da-ans/. Acesso em: 20 set. 2025.

6 Agência Brasil. STF fixa regras para autorização de procedimentos fora do rol da ANS. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/saude/noticia/2025-09/stf-fixa-regras-para-autorizacao-de-procedimentos-fora-do-rol-da-ans. Acesso em: 20 set. 2025.

7 InfoMoney. STF e planos de saúde: o que muda para o consumidor com nova regra. Disponível em: https://www.infomoney.com.br/consumo/stf-e-plano-de-saude-o-que-muda-para-o-consumidor-com-nova-regra/. Acesso em: 20 set. 2025.

8 O Globo. O que muda na cobertura dos planos de saúde após decisão do STF?. Disponível em: https://oglobo.globo.com/economia/defesa-do-consumidor/noticia/2025/09/19/o-que-muda-na-cobertura-dos-planos-de-saude-apos-decisao-do-stf.ghtml. Acesso em: 20 set. 2025.

9 G1. Planos de saúde: STF determina regras para autorização de procedimentos fora do rol da ANS. Disponível em: https://g1.globo.com/saude/noticia/2025/09/19/stf-determina-regras-para-autorizacao-de-procedimentos-fora-do-rol-da-ans.ghtml. Acesso em: 20 set. 2025.

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Sobre o autor
Fernando Onofre Salazar

Advogado, veterano militar e pós-graduando em Direito Médico e da Saúde , Especialista em Direito Financeiro e Tributário pelo Centro de Estudos e Pesquisas no Ensino do Direito da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Ceped-Uerj). Especialista em Direito obrigacional, Direito Trabalhista e previdenciário , Gestão Fiscal e tributária e Docência Superior.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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