Capa da publicação Pedágio free-flow é ilegal; multas são nulas
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Inconstitucionalidades e ilegalidades do sistema de pedágio free-flow

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30/09/2025 às 22:03
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6. Antinomia do Inciso XVII do artigo 24 da Lei 10.233/2001 com o Inciso III do Artigo 7º. do CTB

Há uma antinomia relevante entre o Inciso III do art. 7º do Código de Trânsito Brasileiro (CTB) e o art. 24, inciso XVII, da Lei nº 10.233/2001. O CTB estabelece, de forma taxativa, quais são os órgãos que integram o Sistema Nacional de Trânsito (SNT) e, a ANTT, como um órgão executivo rodoviário da União, não está entre eles.

Já o art. 24. da Lei nº 10.233/2001 atribui à ANTT a competência para exercer, diretamente ou mediante convênio, as atribuições previstas no inciso VIII do art. 21. do próprio CTB, ou seja, fiscalizar, autuar e aplicar penalidades administrativas relativas a infrações de trânsito do artigo 209-A e VIII do caput do artigo 21, ambos do CTB.

“Art. 24. Cabe à ANTT, em sua esfera de atuação, como atribuições gerais:

...

XVII – exercer, diretamente ou mediante convênio, as competências expressas nos incisos VI, quanto à infração prevista no art. 209-A, e VIII do caput do art. 21. da Lei nº 9.503, de 23 de setembro de 1997 (Código de Trânsito Brasileiro), nas rodovias federais por ela administradas; (Redação dada pela Lei nº 14.157, de 2021)

Esse conflito normativo é uma antinomia real, pois ambas as normas são válidas, estão em vigor e regulam a mesma matéria — a competência para exercer o poder de polícia de trânsito —, mas com comandos que não se harmonizam.

A Lei nº 10.233/2001 confere poderes a um ente que não faz parte do SNT para atuar em matéria de trânsito, contrariando a estrutura orgânica estabelecida pelo CTB.

Na resolução da antinomia, deve-se aplicar o critério da especialidade. O CTB é norma especial em matéria de trânsito, disciplinando de maneira sistemática e detalhada a composição do SNT e a repartição de competências entre os seus órgãos.

Já a Lei nº 10.233/2001 trata da organização institucional do setor de transporte terrestre e da criação de agências reguladoras, não tendo como objeto primário a normatização do trânsito. Assim, deve prevalecer o CTB quanto à definição de quem pode exercer, validamente, as competências de fiscalização e penalização de infrações de trânsito, inclusive à relativa à fiscalização de excesso de peso e de lotação dos veículos prevista no artigo 21, Inciso VIII do CTB.

Portanto, a ANTT, por não integrar o SNT, não possui competência própria para exercer diretamente as atribuições previstas nos artigos 209-A e 21, Inciso VIII do CTB.

A autorização genérica da Lei nº 10.233/2001 não supre a exigência legal de que o exercício do poder de polícia de trânsito se dê por órgãos integrantes do SNT, conforme disposto no CTB.

Essa é uma violação da legalidade estrita em matéria de sanções administrativas, o que compromete a validade das sanções administrativas aplicadas por essa agência.

O CTB, por tratar especificamente de trânsito e prever de forma taxativa os órgãos competentes para fiscalização e autuação, deve prevalecer sobre a Lei nº 10.233/2001, que tem escopo mais amplo e generalista. Nesse sentido, a ANTT não possui competência para autuar infrações de trânsito típicas.


7. A impossibilidade de convênio entre a ARTESP e o DER-SP para fiscalização do artigo 209-A do CTB nas rodovias paulistas

Outro exemplo prático da extrapolação de competência se dá no Estado de São Paulo, onde a aplicação de sanções administrativas de trânsito relacionadas à “evasão” do pedágio free-flow. Atualmente, o sistema encontra-se implantado em trechos específicos:

  • SP-333, km 179 (Itápolis) – Concessionária EcoNoroeste.

  • SP-333, km 110 (entre Sertãozinho e Jaboticabal) – Concessionária EcoNoroeste.

  • Rodovia dos Tamoios (SP-099), km 13,5 (Contorno Sul, Caraguatatuba) – Concessionária CCR Tamoios.

Nesses trechos, o procedimento adotado consiste na detecção automática da placa do veículo, seguida da cobrança do pedágio eletrônico tal qual se dá na BR-101.

A Agência Reguladora de Transportes do Estado de São Paulo – ARTESP firmou convênio5 com o Departamento de Estradas de Rodagem do Estado de São Paulo – DER-SP para emissão de autuações e imposição de sanções administrativas de trânsito àqueles motoristas que não efetuarem o pagamento voluntário da tarifa de pedágio no prazo de 30 dias.

Esse modelo é flagrantemente inconstitucional e ilegal.

O DER-SP não integra o Sistema Nacional de Trânsito (SNT) como órgão com competência para aplicar sanções administrativas de trânsito de evasão de pedágio, atribuição esta que em âmbito estadual, pertenceria exclusivamente à Polícia Militar Rodoviária, na condição de órgão executivo de trânsito delegado pelo Estado (Artigo 23, Inciso III do CTB).

A ARTESP, como agência reguladora, possui natureza meramente regulatória, vinculada ao acompanhamento das concessões de rodovias, não podendo exercer poder de polícia de trânsito, nem repassá-lo a outro órgão por meio de convênio.

Além disso, o art. 209-A do CTB tipifica a “evasão” de pedágio como infração de trânsito, de modo que sua fiscalização e a aplicação de sanções administrativas inserem-se exclusivamente na competência dos órgãos executivos de trânsito do SNT do artigo 7o., Inciso III do CTB, e não das concessionárias nem tampouco de agências reguladoras ou departamentos rodoviários dos Estados, como se dá na prática com o DER-SP.

Portanto, o convênio ARTESP–DER-SP para aplicar sanções administrativas de trânsito pelo não pagamento de pedágio free-flow viola o Princípio da Legalidade estrita em matéria sancionatória (art. 5º, II, CF/88), e a repartição de competências constitucionais e legais definidas pelo art. 144. da CF/88 e pelo CTB.

Como mencionado alhures, a ANTT é uma entidade reguladora federal criada pela Lei 10.233/2001 e o DER-SP é um órgão executivos rodoviário do Estado de São Paulo, nos termos do art. 21. do CTB, com atribuições restritas à administração e fiscalização das rodovias sob sua circunscrição.

Por essa lógica da ANTT em nível federal, o ente competente para aplicar as sanções por “evasão” de pedágio do Art. 209-A do CTB, deveria ser a agência reguladora de São Paulo, a ARTESP, que delegou a um órgão executivos rodoviário do Estado de São Paulo – o DER-SP essa competência, que também não lhe caberia.

É um verdadeiro caos e uma anarquia jurídica e institucional.

A imposição de sanções administrativas de trânsito como v.g. a potencial autuação por “evasão” de pedágio, seria competência dos órgãos executivos de trânsito — Departamentos Estaduais de Trânsito (art. 22), órgãos municipais (art. 24) e Polícia Militar Rodoviária, esta última na qualidade de órgão executivo delegado pelos Estados (art. 23, III).

A tentativa de transferir ao DER-SP, mediante convênio com a ARTESP, competência não conferida legalmente configura desvio de finalidade e afronta ao Princípio da Legalidade do Artigo 5o., II da CF/88.

A ANTT nem tampouco o DER-SP detêm competência para aplicar sanções administrativas de trânsito.

O Portal “Guarulhos todo dia” noticiou em 17 de junho de 20256 que entre setembro de 2024 e março de 2025, o sistema de pedágio eletrônico free-flow nas rodovias paulistas resultou em 123.032 multas por suposta “evasão”, conforme dados da ARTESP.

Toda e qualquer sanção administrativa de trânsito aplicada pelo DER-SP/ARTESP (e pela ANTT) em decorrência do não pagamento do pedágio free-flow é nula de pleno direito, devendo ser anulada judicialmente.


8. A Impossibilidade de Aplicação da Penalidade do Art. 209-A do CTB aos Motoristas em Sistema de Livre Passagem – Free-Flow

Ainda que se imaginasse, hipoteticamente, que a ANTT e o DER-SP pudessem ter competência para fiscalização e aplicação de sanções administrativas de trânsito, como a da penalidade do Artigo 209-A do Código de Trânsito Brasileiro, a multa não pode ser imputada aos motoristas em situações específicas do free-flow.

A Lei 14.157 que alterou o artigo 209 do CTB, previa anteriormente e expressamente o termo “pedágio” com a tipificação “evadir-se para não efetuar o pagamento do pedágio”.

“Art. 209. Transpor, sem autorização, bloqueio viário com ou sem sinalização ou dispositivos auxiliares, deixar de adentrar às áreas destinadas à pesagem de veículos ou evadir-se para não efetuar o pagamento do pedágio:”

A norma acima se aplicava aos motoristas que se evadiam do pedágio físico, para não pagar o pedágio (tarifa/preço público), avançando lentamente sobre a cancela que automaticamente se abria para evitar dano ao veículo, ou motoristas que “colavam” no veículo da frente e passavam no pedágio físico quando a cancela se abria para o veículo da frente, ou na faixa do pedágio eletrônico, adotando a mesma estratégia.

A mencionada lei acresceu um novo subartigo ao 209 do CTB, o Artigo 209-A, eliminou o termo “pedágio”, que vem a ser a instalação física onde o pedágio é arrecadado, manual ou eletronicamente e, neste caso, são cobrados através de dispositivos eletrônicos, também denominados tags.

No entanto, esse esforço criativo do legislador foi e é inócuo, pois a aplicação do art. 209-A do CTB aos motoristas em sistemas free-flow é juridicamente impossível por uma série de razões.

8.1. Inexistência de Evasão no Sistema Free-Flow

Ressalte-se, desde já, que, ainda que a fiscalização e as autuações fossem atribuídas à Polícia Rodoviária Federal ou à Polícia Militar Rodoviária, na qualidade de órgãos executivos de trânsito, nos termos do artigo 7º, inciso III, do Código de Trânsito Brasileiro (CTB), o modelo de pedágio free-flow não comporta a caracterização da infração de “evasão”, prevista no artigo 209-A do mesmo diploma legal.

A conduta típica descrita no dispositivo legal exige a existência de praça de pedágio física , em que o motorista adentra a cabine e se evade sem realizar o pagamento devido.

Nos sistemas desprovidos de barreiras físicas ou de controle manual, a lógica convencional do CTB torna inviável enquadrar a conduta como infração de trânsito, configurando-se, assim, uma hipótese clássica de crime impossível ou tentativa frustrada do ponto de vista administrativo-penal.

Do ponto de vista da teoria da tipicidade, a definição de condutas puníveis exige clareza semântica e correlação direta entre norma e o comportamento descrito .

O artigo 209-A tipifica a “evasão” de pedágio de forma estrita e este só pode ser aplicável exclusivamente onde houver praças físicas.

O sistema de cobrança cria uma obrigação concreta e imediata de pagamento. Ausentes cancelas, cobradores ou dispositivos automáticos que restrinjam efetivamente a passagem, não se configura ato ilícito de “evasão”, uma vez que a norma pressupõe a existência de meios que impeçam a passagem sem quitação da tarifa.

A análise dialética entre norma e realidade fática evidencia o descompasso entre o sistema free-flow e o tipo penal/administrativo previsto.

De um lado, a lei menciona “evasão”; de outro, o sistema implementado não oferece barreiras físicas que permitam a consumação da conduta típica de “fuga” ou “escape”.

Qualquer tentativa de estender a aplicação da norma às passagens livres de obstáculos conflita com a interpretação sistemática, teleológica e finalística da lei, uma vez que a finalidade do dispositivo — coibir a quebra da obrigação de pagamento imediato em locais com barreira — não se confunde com a inadimplência diferida 7 que ocorre no sistema free-flow.

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Uma interpretação sistemática e constitucional do art. 209-A exige compatibilização com os princípios da tipicidade e da legalidade , pilares do Estado de Direito.

O significado de “evadir” deve harmonizar-se com todo o ordenamento jurídico, e não apenas com a literalidade do CTB.

No contexto das praças físicas, o condutor que passa sem pagar, se enquadra perfeitamente na definição de “evasão”, dada a existência de obstáculo físico e coercitivo.

Já no sistema free-flow, a ausência de barreiras torna impossível se falar em fuga, configurando uma situação de crime impossível , pois a consumação do tipo administrativo sancionável é materialmente inviável.

Em resumo, no sistema free-flow, a infração prevista no art. 209-A do CTB exige que o motorista realize uma “evasão” de pedágio, o que pressupõe a existência de uma praça de pedágio física , com cabines, cancelas ou outros obstáculos que criem uma obrigação concreta e imediata de pagamento.

O tipo do direito administrativo sancionador do caso concreto considera como objeto a barreira física ou coercitiva que permita a consumação da “evasão” .

No entanto, no free-flow, essa condição objetiva não existe: não há cabines, cancelas ou qualquer mecanismo que restrinja a passagem do veículo.

Mesmo que o motorista não realize o pagamento, não há um objeto sobre o qual a conduta típica possa recair, pois a estrutura do sistema não permite que a “evasão” ocorra de forma material.

Portanto, do ponto de vista do direito administrativo sancionador , temos um caso clássico de crime impossível por impropriedade do objeto : a conduta do motorista, por mais que seja intencional, não se concretiza porque falta o elemento essencial da norma — a barreira física .

O sistema free-flow torna impossível a consumação do tipo administrativo, protegendo o condutor de sanção indevida e reforçando o Princípio da Legalidade e da Tipicidade.

Portanto, a aplicação do art. 209-A ao free-flow não se sustenta, seja pelo descompasso entre fato e o tipo legal , seja pela lógica do crime impossível , reconhecida na doutrina como hipótese em que a conduta não pode se consumar por deficiência no objeto e/ou no meio empregado.

8.2. Natureza do Sistema Free-Flow – relação de direito obrigacional

O sistema free-flow utiliza câmeras para registrar as placas dos veículos e, exatamente no ato em que a placa do veículo é captada/capturada pela câmera, passa a existir uma relação de direito obrigacional entre o credor, no caso a concessionária e o usuário da rodovia que passa a ser o devedor e que, em nada, guarda relação com a sanção administrativa de trânsito.

Essa relação não tem natureza administrativa, mas sim civil, sendo regulada pelo Código Civil Brasileiro.

O dever de pagar nasce no instante em que o fato gerador da obrigação se concretiza. O vínculo jurídico surge no momento em que a placa do veículo é captada e registrada pelas câmeras, passando a exsurgir uma relação de direito obrigacional. Nesse contexto:

  • Credor: é a concessionária da rodovia, que tem o direito de exigir o pagamento.

  • Devedor: é o usuário da rodovia, que assume a obrigação de quitar o valor da tarifa do pedágio.

O pagamento é o cumprimento voluntário da obrigação independentemente de sua natureza.

A inadimplência do devedor gera uma dívida de natureza civil, e não se consubstancia em uma infração administrativa de trânsito.

8.3. A pessoa jurídica sancionada pelo artigo 209-A do CTB: a problemática da indicação do condutor e a violação ao princípio constitucional da não autoincriminação

A Lei nº 14.157/2021, ao introduzir o artigo 209-A no Código de Trânsito Brasileiro, estabeleceu penalidade para a conduta de deixar de efetuar o pagamento da tarifa de pedágio no sistema eletrônico denominado free-flow.

A norma, contudo, ao ser aplicada aos veículos registrados em nome de pessoa jurídica, suscita uma controvérsia relevante: a quem deve ser imputada a infração e, em que medida a obrigação de indicar o condutor interfere nos limites constitucionais da responsabilidade administrativa sujeita à sanções pelo seu não cumprimento.

Nos termos do artigo 257, §7º8, do CTB, quando a infração for cometida com veículo de propriedade de pessoa jurídica, esta deverá indicar o condutor responsável, sob pena de lhe ser imputada penalidade pecuniária autônoma.

No contexto do free-flow, entretanto, não há constatação materializada da conduta do motorista, senão o mero registro eletrônico da placa do veículo.

Exigir da pessoa jurídica que identifique, de forma compulsória, o indivíduo que estaria conduzindo o veículo no momento da suposta infração equivale a impor-lhe a produção de prova contra si mesma, em flagrante violação ao princípio nemo tenetur se detegere, consagrado no artigo 5º, inciso LXIII, da Constituição Federal de 1988.

A jurisprudência pátria já se pronunciou de maneira clara sobre a vedação à autoincriminação em matéria de trânsito.

O Superior Tribunal de Justiça – STJ, ao julgar o RE 738.214, fixou a tese no Tema 446 de que o indivíduo não pode ser compelido a colaborar com os testes do etilômetro ou do exame de sangue, justamente em respeito ao princípio segundo o qual ninguém é obrigado a se autoincriminar.

Na ocasião, destacou-se que é legítima a recusa do condutor em se submeter ao teste de alcoolemia, seja na forma expirada ou pelo exame de sangue.

Esse precedente guarda relação direta com a discussão ora proposta: assim como o condutor não pode ser compelido a submeter-se a testes que gerem prova contra si mesmo, a pessoa jurídica também não pode ser obrigada a identificar o condutor responsável, sobretudo quando a única evidência disponível é o registro eletrônico da placa do veículo pelo sistema de pedágio free-flow. Exigir tal indicação transforma a empresa em instrumento de autoincriminação, impondo-lhe um ônus probatório que não lhe cabe e que não possui meios objetivos de comprovação.

Essa lógica contraria frontalmente os princípios constitucionais da não autoincriminação (art. 5º, LXIII, CF/88) e do devido processo legal (art. 5º, LIV, CF/88), revelando a inadequação e a inconstitucionalidade da aplicação do art. 209-A do CTB neste contexto.

Portanto, a aplicação do artigo 209-A do CTB às pessoas jurídicas revela-se, também, inconstitucional, pois condiciona a persecução administrativa ao sacrifício de garantias fundamentais já reconhecidas e consolidadas pela jurisprudência do STJ e do STF, sendo incompatível com o modelo constitucional de responsabilidade sancionadora.

8.4. A parte final do artigo 209-A também não se aplica

A parte final do artigo 209-A do CTB, ao estabelecer que constitui infração o ato de “deixar de efetuá-lo [o pagamento] na forma estabelecida” , pretende sancionar o mero inadimplemento da tarifa de pedágio, ainda que não haja “evasão” possível do pedágio free-flow, como explanado acima.

Essa ampliação do tipo infracional, especialmente no contexto de sistemas automáticos como o free-flow, onde o pagamento pode ocorrer em momento diferido/posterior, descaracteriza a natureza típica de infração de trânsito e avança indevidamente sobre o campo das obrigações civis, regidas pelo Código Civil.

É imprescindível reconhecer que essa situação configura uma relação jurídica obrigacional entre particulares — o usuário da via e a concessionária — que se estabelece por meio de um contrato de adesão tácito, formado com o uso da via pedagiada.

O não pagamento da tarifa, portanto, caracteriza inadimplemento de obrigação contratual o que, nos termos do art. 3899 e 39410 do Código Civil, enseja consequências patrimoniais. Essas são questões próprias do direito civil, no campo do Direito das Obrigações, não guardando qualquer relação com sanções administrativas de trânsito.

Ademais, essa tentativa de sancionar administrativamente o não pagamento de tarifa conflita diretamente com princípios constitucionais fundamentais.

Há, no nosso ordenamento a proibição da prisão civil por dívida (art. 5º, inciso LXVII11 da Constituição Federal), excetuando-se apenas o inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e o depositário infiel, este último relativizado pelo STF.

Ora, se é premissa fundamental do ordenamento jurídico brasileiro a inexistência de sanção para o mero inadimplemento de obrigações civis , essa lógica se estende naturalmente às obrigações contratuais, como o pagamento de tarifas de pedágio.

Assim, o simples descumprimento contratual não pode, sob nenhuma ótica e perspectiva jurídica legítima, ensejar a aplicação de sanção administrativa de trânsito , cujos efeitos podem ser severos como a pontuação na Carteira Nacional de Habilitação – CNH do usuário inadimplente, potencialmente afetando o exercício do direito de dirigir e até a renovação de documentos.

Trata-se, em última análise, de uma alteração ilegítima da natureza jurídica da dívida, em tentavia e esforço legiferante que reescreve e reinventa o direito quanto à disciplina eminentemente civil denominada inadimplência: o que é uma obrigação de pagar — civil e patrimonial — foi indevidamente transformado em infração de trânsito, sujeita ao poder de polícia e ao aparato sancionador do Estado.

A Lei 14.157 de 2021 in totum, que modificou artigos do CTB, carece de legitimidade jurídica de forma a excluir da esfera administrativa o mero inadimplemento de tarifa de pedágio pelo usuário, devendo ser enquadrada no campo do direito das obrigações.

Em outras palavras, se o motorista cuja placa foi captada pela câmara não efetuar o pagamento no prazo de 30 dias, ele é um devedor e a cobrança da dívida deve se dar pelos meios legais, seja administrativa ou judicialmente.

Não há nesse caso infração alguma, pois a sanção administrativa de trânsito difere completamente da relação de direito obrigacional de natureza civil.

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Sobre o autor
Fabio Theophilo

LL.B., LL.M. Advogado, OAB-PR 24.334, formado pela Universidade Estadual de Londrina – UEL, pós graduado em Direito pela Escola da Magistratura do Paraná – EMAP-PR, em Direito da Economia e da Empresa pela Fundação Getúlio Vargas – Rio de janeiro – FGV-RJ e mestre em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Western Ontario – UWO no Canadá, cuja tese de mestrado trata do Principio da Legalidade e as concessões de rodovias: “Highway Tolls in Brazil and the Lawfulness Principle.” Disponível online: https://ir.lib.uwo.ca/etd/1267/  

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

THEOPHILO, Fabio. Inconstitucionalidades e ilegalidades do sistema de pedágio free-flow. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 30, n. 8126, 30 set. 2025. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/115821. Acesso em: 5 dez. 2025.

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