Capa da publicação Pedágio free-flow é ilegal; multas são nulas
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Inconstitucionalidades e ilegalidades do sistema de pedágio free-flow

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30/09/2025 às 22:03
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9. Do tempo do pagamento e da Ausência de Infração Administrativa

O prazo de 30 dias para pagamento do pedágio, depois que a placa de veículo é captada pela câmera do pedágio eletrônico é mera liberalidade da concessionária.

Inexiste lei ou norma que estabeleça essa condição oferecida aos usuários, em uma clara violação ao Princípio da Legalidade.

Na realidade, a concessionária se torna credora do usuário da rodovia/devedor, como dito, no momento em que a câmera capta a placa do veículo.

Importante ressaltar que a dívida é, no caso, o valor cobrado pela concessionária a título de tarifa de pedágio do usuário e, no momento em que a câmera capta a placa do veículo, ela se torna líquida e certa.

Há meios legais de cobrança da dívida pela concessionária, seja extrajudicial ou judicial e esta, de acordo com a lei, deve notificar o motorista do débito e cumprir as formalidades legais para que este possa adimplir com sua obrigação.


10. Meios Vexatórios de Cobrança e o Direito do Devedor

O uso de sanções administrativas como forma de constrangimento para o pagamento do pedágio free-flow se enquadra como um meio vexatório e intimidatório de cobrança, violando o princípio da dignidade da pessoa humana e os direitos fundamentais do devedor.

Nesse sentido, o artigo 42 do Código de Defesa do Consumidor – CDC, Lei 8.078/1990, veda esse tipo de prática abusiva e constrangedora na cobrança de dívidas:

“Art. 42. Na cobrança de débitos, o consumidor inadimplente não será exposto a ridículo, nem será submetido a qualquer tipo de constrangimento ou ameaça.

Parágrafo único. O consumidor cobrado em quantia indevida tem direito à repetição do indébito, por valor igual ao dobro do que pagou em excesso, acrescido de correção monetária e juros legais, salvo hipótese de engano justificável.”

Em resumo, a penalidade prevista no art. 209-A do CTB não se aplica ao sistema de free-flow porque:

  • a) Não há “evasão” nos moldes exigidos pela norma, até porque não há pedágio físico.

  • b) Existe uma câmera que capta a placa do veículo e, dentre aqueles que não optam pela instalação do tag (dispositivo eletrônico que debita automaticamente na conta do usuário), surge uma relação de direito obrigacional, um credor e um devedor. Veja fotografia do pórtico abaixo:

Pórtico na BR-101 no Km 538 em Parati – Rio de Janeiro (Foto: Alex Mafort/TV Rio Sul)

  • c) A relação entre concessionária e motorista é de natureza obrigacional e regida pelo direito civil.

  • d) A inadimplência deve ser tratada como uma questão contratual, sujeita aos meios de cobrança previstos na legislação.

Portanto, o constrangimento e a aplicação da sanção administrativa do artigo 209-A do CTB aos usuários que não efetuarem o pagamento no prazo 30 dias viola o artigo 42 do Código de Defesa do Consumidor – CDC, Lei 8.078/1990, além dos Princípios da Legalidade e da Razoabilidade, além de configurar uma distorção do ordenamento jurídico brasileiro.


11. Da informação intimidatória veiculada em placas na Rodovia BR-101

A concessionária CCR RioSP tem divulgado por meio de diversas placas fixas e móveis, ao longo da Rodovia Rio-Santos – BR-101, mensagens de cunho alarmista, constrangedor, desinformativo e intimidatório.

Essas mensagens afirmam que o não pagamento do pedágio eletrônico acarretará a aplicação de “multa” ao condutor, induzindo-o ao erro quanto às reais consequências legais da inadimplência, que, conforme demonstrado anteriormente, (i) situam-se no campo do Direito das Obrigações, e não no campo Direito Administrativo sancionador, (ii) pela impossibilidade da ANTT e do DER-SP em aplicarem esse tipo de sanção administrativa de trânsito, (iii) em rodovia federal cuja competência constitucional é da PRF, (iv) pela impossibilidade até da PRF ou órgãos rodoviários de trânsito estaduais ou municipais (Artigo 7º, III do CTB) em aplicarem sanções do artigo 209-A do CTB dada a inexistência de qualquer infração pela ausência de praças físicas, bem como (v) violação patente ao Parágrafo Único do Artigo 42 do CDC.

Eis fotografias das referidas placas:

Placas (fixa e móvel) na BR-101 na região de Angra dos Reis/Parati no Estado do Rio de Janeiro onde se vê “Evite multas”(foto: Andressa Secco/Arquivo pessoal)

Evidente que se trata de um abuso e um arbítrio por parte da CCR RioSP e das concessionárias de rodovias que operam no Brasil. Há previsão concreta de que este esse meio de cobrança de pedágio eletrônico free-flow seja expandindo para dezenas de rodovias já concedidas, pois os novos contratos preveem esse tipo de cobrança.


12. Da obrigatoriedade de notificação da dívida, da tarifa de pedágio gerada pelo free-flow

A prática da Concessionária CCR RioSP e de outras concessionárias, de concederem um prazo de 30 dias para pagamento da tarifa, sob pena de autuação por infração ao art. 209-A do Código de Trânsito Brasileiro (CTB), carece de respaldo normativo.

Tal conduta configura uma aberração jurídica ao desconsiderar princípios fundamentais do Direito das Obrigações, do devido processo legal e da legalidade estrita.

Nos termos do Direito Civil, a relação entre o usuário da via pedagiada e a concessionária é de natureza obrigacional.

A partir do momento em que o veículo é identificado pelos sensores e câmeras do sistema free-flow, nasce para o usuário a obrigação de pagar a tarifa – obrigação ex lege decorrente da prestação de um serviço público concedido.

Não se discute nesse artigo a legalidade ou não das tarifas dos pedágios cobrada pelas concessionárias, com ou sem vias alternativas gratuitas.

Trata-se de uma obrigação líquida e certa, correspondente a um preço público previamente estipulado em contrato de concessão com a ANTT para rodovias federais e com a ARTESP, nesse último caso, no Estado de São Paulo, dentre outros.

No entanto, para que se configure o inadimplemento e a eventual sanção/penalidade, é essencial que o devedor seja validamente notificado e que se respeitem os meios de constituição em mora, conforme estabelece o art. 397. do Código Civil:

“Art. 397. – O inadimplemento da obrigação, positiva e líquida, no seu termo, constitui de pleno direito em mora o devedor.

Parágrafo único – Não havendo termo, a mora se estabelece mediante interpelação judicial ou extrajudicial.”

Dessa forma, na ausência de mecanismo instantâneo de pagamento como no caso do SemParar ou outros prestadores desse tipo de serviço como ConectCar e MoveMais, o devedor só pode ser considerado em mora após notificação efetiva, específica e individualizada – o que não ocorre no atual modelo da CCR RioSP e das concessionárias que operam esse sistema.

A concessão de um prazo de 30 dias pela concessionária para pagamento da tarifa não possui respaldo legal, pois há ausência de previsão no CTB ou em legislação específica que estabeleça que o prazo para pagamento seja de 30 dias, ou que a inércia no pagamento nesse período resulte automaticamente em infração de trânsito.

A confusão aqui é patente. O prazo de trinta dias existente no CTB relacionado ao campo de sanções administrativas, refere-se ao prazo máximo para a autoridade de trânsito expedir a notificação da autuação ao condutor, sob pena do auto de infração ser arquivado e seu registro julgado insubsistente, consoante prescrição do §1º., Inciso II do artigo 281 do CTB:

Art. 281. A autoridade de trânsito, na esfera da competência estabelecida neste Código e dentro de sua circunscrição, julgará a consistência do auto de infração e aplicará a penalidade cabível.

§ 1º O auto de infração será arquivado e seu registro julgado insubsistente: (Renumerado do parágrafo único pela Lei nº 14.304, de 2022) (Vigência)

I - se considerado inconsistente ou irregular;

II - se, no prazo máximo de trinta dias, não for expedida a notificação da autuação. (Redação dada pela Lei nº 9.602, de 1998)”

A prescrição acima não guarda qualquer relação com a liberalidade do prazo contra legem de 30 dias concedido pela concessionária, no caso a credora, para que o usuário da rodovia, o devedor efetue o pagamento da tarifa de pedágio, a não ser pelo prazo idêntico de 30 dias para situações completamente distintas, gerando, propositalmente confusão ao condutor, leigo em questões jurídicas em sua grande maioria.

A criação de prazos, obrigações e penalidades por ato unilateral da concessionária fere a exigência constitucional do artigo 5º, Inciso II de que “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”.

A imposição unilateral de sanção administrativa por inadimplemento contratual, sem base legal, caracteriza abuso e arbítrio.

A obrigação de pagar nasce com a prestação do serviço. A mera ausência de pagamento, sem que o devedor tenha sido notificado efetivamente de forma clara e pessoal, não pode ser considerada mora suficiente para a autuação sancionadora administrativa, que inexiste, como explicitado acima.

A aplicação do art. 209-A do CTB no contexto do free-flow revela os seguintes vícios:

  • a) ausência de notificação formal: O usuário não recebe interpelação formal (judicial ou extrajudicial) nem é cientificado de forma inequívoca sobre a dívida, descumprindo o requisito legal do art. 397. do Código Civil.

  • b) prazo arbitrário e unilateral: os 30 dias são definidos sem fundamento técnico, legal ou contratual, impossibilitando ao devedor avaliar se o débito é correto, se houve falha de sistema, ou se há motivo justificável para inadimplemento.

  • c) autuação automática e sem contraditório: a concessionária encaminha diretamente o nome do condutor à ANTT e ao DER-SP, que unilateralmente impõem sanções administrativas sem qualquer oportunidade de defesa prévia, contrariando o devido processo legal (art. 5º, LV, CF/88).

Ainda que pudesse se admitir o sancionamento administrativo do artigo 209-A do CTB, o que exaustivamente demonstrado não ser possível, o eventual procedimento adequado consistiria na notificação efetiva do usuário pela concessionária, de modo a constituir formalmente a mora do devedor, nas hipóteses em que: (i) a placa do veículo seja capturada pelo sensor ou câmera do sistema free-flow; e (ii) o usuário não efetue espontaneamente o pagamento da tarifa de pedágio pelos meios disponibilizados. Notificação essa que, na prática, não ocorre em patente violação da lei civil, da CF/88 e dos Princípios Constitucionais.


13. A Inconstitucionalidade do Repasse de Multas de Trânsito arrecadadas pela sanção do artigo 209-A do CTB às Concessionárias de Rodovias

Outro ponto inconstitucional das alterações promovidas pelo artigo 2º.12 da Lei nº 14.157/2021 no CTB é o que inseriu o §3º no art. 320. do CTB, passando a prever a destinação de recursos provenientes das sanções administrativas de trânsito do artigo 209-A, do mesmo diploma legal, para recompor perdas de receita das concessionárias decorrentes do não pagamento das tarifas de pedágios, em um esforço legiferante para atender o interesse das operadoras de rodovias.

Essa previsão levanta questões quanto à sua constitucionalidade e compatibilidade com o ordenamento jurídico vigente.

13.1. A Natureza Jurídica das Sanções Administrativas de Trânsito

As sanções administrativas de trânsito, à luz do art. 39, § 2º 13 , da Lei nº 4.320/1964, que estatui normas gerais de Direito Financeiro para elaboração e controle dos orçamentos e balanços da União, dos Estados, dos Municípios e do Distrito Federal, possuem natureza de crédito público não tributário da Fazenda Pública. O dispositivo legal é expresso ao definir como dívida ativa não tributária “os demais créditos da Fazenda Pública, tais como os provenientes de [...] multas de qualquer origem ou natureza, exceto as tributárias”.

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Dessa forma, as sanções administrativas de trânsito não se confundem com tributos, mas são receitas de caráter sancionatório e compulsório, classificadas na categoria de “outras receitas correntes” do orçamento público.

A afetação dessa receita, por determinação legal, encontra-se disciplinada no art. 320. do Código de Trânsito Brasileiro (CTB), o qual estabelece que os valores arrecadados devem ser aplicados exclusivamente em finalidades vinculadas à política de trânsito a saber: sinalização, engenharia de tráfego, policiamento e fiscalização, renovação e modernização da frota e educação para o trânsito.

A problemática se dá com a superveniência da Lei nº 14.157/2021, que alterou o art. 320. do CTB para introduzir o § 3º, nos seguintes termos:

“§ 3º O valor total destinado à recomposição das perdas de receita das concessionárias de rodovias e vias urbanas, em decorrência do não pagamento de pedágio por usuários da via, não poderá ultrapassar o montante total arrecadado por meio das multas aplicadas com fundamento no art. 209-A deste Código, ressalvado o previsto em regulamento do Poder Executivo.”

Com essa inovação, a legislação passou a admitir que as multas de trânsito possam ser utilizadas para indenizar concessionárias privadas de rodovias por inadimplemento de pedágio, hipótese que destoa por completo da lógica original do art. 320. do CTB.

Configura-se, assim, uma forma de transferência indevida da receita pública ao particular – no caso a concessionária, em patente violação ao regime constitucional de vinculação de receitas a finalidades públicas específicas.

13.2. Desvio de Finalidade e Impactos

O §3º, inserido no art. 320. do CTB pela Lei nº 14.157/2021, autoriza o uso das receitas sanções administrativas de trânsito para compensar perdas de receita das concessionárias de rodovias. Esse dispositivo desvirtua e altera a sua natureza jurídica, que vem a ser crédito público não tributário da Fazenda Pública.

O uso das sanções administrativas de trânsito como instrumento de recomposição financeira desvia-se desse princípio e viola o melhor atendimento à função social reguladora do Estado.

13.3. Competência e Destinação dos Recursos

A Lei nº 9.503/97 – CTB estabelece que as multas de trânsito compõem as receitas da Fazenda Pública, não podendo ser repassadas a entidades privadas, como concessionárias de rodovias.

Esse entendimento está em consonância com o art. 37, caput, da Constituição Federal, que exige que a Administração Pública observe os Princípios da Legalidade, Moralidade e Eficiência administrativa.

Assim, a inclusão do §3º no art. 320. do CTB é uma aberração jurídica conflitando e contrariando o disposto no art. 39, §2º, da Lei nº 4.320/64, que não admite a destinação de receitas públicas não tributárias a finalidades privadas.

13.4. Incompatibilidade com o Sistema Nacional de Trânsito

O Sistema Nacional de Trânsito – SNT, regido pelos arts. 1º, 5º e 6º do CTB, estabelece que as políticas de trânsito devem priorizar a segurança, a fluidez e a educação.

No caso, a destinação dos recursos das multas para as concessionárias é flagrantemente ilegal e inconstitucional tendo em vista que essa finalidade não atende diretamente aos objetivos, a organização e a eficácia do sistema, desrespeitando as diretrizes da Política Nacional de Trânsito.

O repasse de multas de trânsito às concessionárias de rodovias é uma afronta à legislação brasileira e os princípios constitucionais.

Além de desvirtuar a natureza educativa e preventiva das multas, a previsão contida no §3º do art. 320. do CTB compromete a finalidade pública dessas receitas, promovendo uma destinação incompatível com o ordenamento jurídico.

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Sobre o autor
Fabio Theophilo

LL.B., LL.M. Advogado, OAB-PR 24.334, formado pela Universidade Estadual de Londrina – UEL, pós graduado em Direito pela Escola da Magistratura do Paraná – EMAP-PR, em Direito da Economia e da Empresa pela Fundação Getúlio Vargas – Rio de janeiro – FGV-RJ e mestre em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Western Ontario – UWO no Canadá, cuja tese de mestrado trata do Principio da Legalidade e as concessões de rodovias: “Highway Tolls in Brazil and the Lawfulness Principle.” Disponível online: https://ir.lib.uwo.ca/etd/1267/  

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

THEOPHILO, Fabio. Inconstitucionalidades e ilegalidades do sistema de pedágio free-flow. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 30, n. 8126, 30 set. 2025. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/115821. Acesso em: 5 dez. 2025.

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