14. Direito de dos motoristas autuados
Diante do que foi apresentado nesse artigo, cabe, caso a caso, ação anulatória de infração de trânsito com pedido de repetição do indébito em dobro, cumulado com pedido de danos morais e, eventualmente, danos materiais, pelos motoristas autuados.
Importante questão a ser levantada é que, eventual ação não possui como objeto a suspenção da cobrança do pedágio eletrônico, denominado free-flow.
O objeto da demanda deve ser o reconhecimento, pela jurisdição, da ilegalidade da cobrança das sanções administrativas do artigo 209-A do CTB aplicadas pela ANTT e pelo DER-SP, dentre outros.
Há que se pleitear, igualmente, pelo reconhecimento da inconstitucionalidade dos artigos 209-A e 320-A, ambos do Código de Trânsito Brasileiro – CTB, bem como do Inciso XVII do artigo 2414 da Lei que instituiu a ANTT, a Lei 10.233/2001.
Há farta jurisprudência a respeito concedendo, não invariavelmente, danos materiais.
É comum a condenação em indenização por danos morais na casa de R$5.000 (cinco mil reais).
O leading case e, decisão paradigmática, é o REsp 608.918-RS15 do Superior Tribunal de Justiça – STJ, que determinou a repetição do indébito e reconheceu o dano moral:
“RESPONSABILIDADE CIVIL. MULTA DE TRÂNSITO INDEVIDAMENTE COBRADA. REPETIÇÃO DE INDÉBITO. INDENIZAÇÃO. DANO MORAL. DANO PRESUMIDO. VALOR REPARATÓRIO. CRITÉRIOS PARA FIXAÇÃO. 1. Como se trata de algo imaterial ou ideal, a prova do dano moral não pode ser feita através dos mesmos meios utilizados para a comprovação do dano material. Por outras palavras, o dano moral está ínsito na ilicitude do ato praticado, decorre da gravidade do ilícito em si, sendo desnecessária sua efetiva demonstração, ou seja, como já sublinhado: o dano moral existe in re ipsa. Afirma Ruggiero: “Para o dano ser indenizável, 'basta a perturbação feita pelo ato ilícito nas relações psíquicas, na tranqüilidade, nos sentimentos, nos afetos de uma pessoa, para produzir uma diminuição no gozo do respectivo direito.” 2. É dever da Administração Pública primar pelo atendimento ágil e eficiente de modo a não deixar prejudicados os interesses da sociedade. Deve ser banida da cultura nacional a idéia de que ser mal atendido faz parte dos aborrecimentos triviais do cidadão comum, principalmente quando tal comportamento provém das entidades administrativas. O cidadão não pode ser compelido a suportar as conseqüências da má organização, abuso e falta de eficiência daqueles que devem, com toda boa vontade, solicitude e cortesia, atender ao público. 3. Os simples aborrecimentos triviais aos quais o cidadão encontra-se sujeito devem ser considerados como os que não ultrapassem o limite do razoável, tais como: a longa espera em filas para atendimento, a falta de estacionamentos públicos suficientes, engarrafamentos etc. No caso dos autos, o autor foi obrigado, sob pena de não-licenciamento de seu veículo, a pagar multa que já tinha sido reconhecida, há mais de dois anos, como indevida pela própria administração do DAER, tendo sido, inclusive, tratado com grosseria pelos agentes da entidade. Destarte, cabe a indenização por dano moral. 4. Atendendo às peculiaridades do caso concreto, e tendo em vista a impossibilidade de quantificação do dano moral, recomendável que a indenização seja fixada de tal forma que, não ultrapassando o princípio da razoabilidade, compense condignamente, os desgastes emocionais advindos ao ofendido. Portanto, fixo o valor da indenização a ser pago por dano moral ao autor, em 10 (dez) vezes o valor da multa. 5. Recurso especial provido.”
REsp 608.918-RS
É possível, ainda, a cumulatividade de danos materiais nos casos em que o condutor venha a ter sua Carteira Nacional de Habilitação (CNH) suspensa em decorrência de autuações ilegítimas lavradas pela ANTT ou pelo DER-SP, fundamentadas no art. 209-A do CTB.
Com efeito, o art. 261, §1º, inciso I 16 , do CTB estabelece que a penalidade de suspensão do direito de dirigir poderá variar de 6 (seis) meses a 1 (um) ano.
Assim, a manutenção indevida das autuações no prontuário do motorista pode gerar consequências gravíssimas ao motorista, repercutindo em sua esfera pessoal e até patrimonial .
Exemplos de hipóteses de danos materiais indenizáveis:
perda de emprego ou de oportunidade de trabalho, quando o exercício da profissão dependa da CNH (motoristas profissionais, entregadores, representantes comerciais, etc.);
necessidade de contratação de motorista particular para transporte próprio ou de familiares durante o período de suspensão;
despesas com transporte alternativo (ônibus, táxi, aplicativos de transporte), devidamente comprovadas;
prejuízos em contratos de prestação de serviços que exijam deslocamento pessoal do motorista ou profissional de qualquer atividade;
custos relacionados a eventual curso de reciclagem ou outras obrigações administrativas decorrentes da suspensão indevida.
Nesses casos, cabe o reconhecimento da responsabilidade objetiva do Estado, nos termos do art. 37, §6º17, da Constituição Federal, pela prática de atos ilegais ou abusivos da Administração ou de concessionárias que atuam por delegação do Poder Público. O nexo causal entre a autuação ilegítima e o prejuízo financeiro sofrido deve ser devida e efetivamente demonstrado, ensejando a reparação.
Portanto, o motorista poderá requerer cumulativamente:
a repetição do indébito em dobro (art. 42, parágrafo único, do CDC);
indenização por danos morais pelas autuações ilegítimas e ilegais do artigo 209-A do CTB; e
indenização por danos materiais , em razão da indevida restrição de seu direito de dirigir quando a suspensão da CNH acarrete efetivos prejuízos econômicos/financeiros, desde que comprovados documentalmente.
Não é necessária a defesa administrativa da infração, tendo em vista que a ANTT e o DER-SP são incompetentes para aplicar penalidades de trânsito previstas no CTB sendo, igualmente, incompetentes para julgar recursos administrativos de sanções administrativas, incluindo e principalmente a tipificada no artigo 209-A do CTB aplicadas por elas mesmas.
Há que se recorrer ao Poder Judiciário diretamente.
Há que se requerer, de forma cumulativa, a expedição de ordem aos Departamentos Estaduais de Trânsito (Detrans) competentes, determinando a imediata exclusão ou remoção de quaisquer registros referentes às sanções aplicadas com base no art. 209-A do CTB.
Ademais, caso já tenha sido imposta suspensão do direito de dirigir em decorrência dessa sanção administrativa, deve-se requer também a anulação imediata de tais penalidades , independentemente do ente que as tenha aplicado, de sorte a restabelecer a situação jurídica dos condutores à condição anterior à aplicação indevida do dispositivo.
Tal medida se impõe para assegurar a observância dos princípios constitucionais do devido processo legal, da proporcionalidade e da legalidade, prevenindo efeitos administrativos que não encontram respaldo na realidade fática ou jurídica.
A medida se justifica pelo fato de que os Detrans, na qualidade de órgãos executivos de trânsito dos Estados (art. 22, II18, do CTB), são responsáveis pela manutenção e atualização do Registro Nacional de Condutores Habilitados (Renach), onde constam as penalidades aplicadas aos motoristas.
A permanência indevida de restrições nesse sistema acarreta sérios prejuízos ao condutor, pois impede o exercício regular do direito de dirigir e pode gerar consequências de natureza profissional, patrimonial e moral.
Em suma, ao lado da pretensão de anulação das autuações ilegais e da consequente reparação por danos morais e/ou materiais , deve-se requerer também que o juízo determine ao Detran competente que exclua de seus registros administrativos todas as anotações referentes às sanções impostas pelo art. 209-A do CTB, restabelecendo-se, assim, a higidez da vida funcional e civil do motorista.
No caso da ANTT, potencial demanda deve ser ajuizada no Juizado Especial Federal – JEF Federal, na jurisdição do domicílio do motorista, que é competente para julgar causas com o valor de até 60 (sessenta) salários mínimos (R$1.518 x 60 = de até R$91.080), devendo ser demandada tanto a ANTT, que fez a autuação indevida pela infração de trânsito do artigo 209-A do CTB, como a Concessionária cuja câmera flagrou a placa e, de ambos, deve ser requerida, cumulativamente, a repetição do indébito em dobro bem como o dano moral e, eventualmente, o dano material.
Já no caso do DER-SP, a competência é da Justiça Estadual Paulista, uma vez que se trata de autarquia estadual.
Nessa esfera, a ação poderá ser ajuizada perante o Juizado Especial da Fazenda Pública (JEFaz), instituído pela Lei nº 12.153/2009, cuja competência também se limita a causas de até 60 salários mínimos, com tramitação simplificada e célere.
Em ambos os cenários — JEF Federal (ANTT) e JEFaz Estadual (DER-SP) —, os Juizados Especiais se revelam o foro adequado por conferirem ao jurisdicionado um meio mais acessível, menos oneroso e mais rápido de obter tutela jurisdicional contra autuações manifestamente ilegais.
A parte não necessita de advogado para ajuizar a Ação no JEF ou em postos avançados. Será necessário advogado apenas em casos onde as partes desejem recorrer contra eventuais sentenças desfavoráveis.
No próprio JEF Federal e no JEFaz Estadual podem ser encontrados serviços de assistência judiciária de universidades ou de Defensor Público Federal – Defensoria Pública da União.
No entanto é recomendada a contratação de advogado por meio de honorários de contingência ou de êxito, modalidade em que o pagamento ocorre somente em caso de decisão favorável ao demandante.
Essa forma de contratação (honorários de contingência) é especialmente indicada, quando o motorista/autor não dispuser de recursos para custear as despesas iniciais do processo, permitindo ainda que se beneficie da experiência do advogado, que conhece os caminhos, os meandros e as estratégias necessárias para alcançar o êxito no processo judicial.
A publicação deste artigo, cuja tese se revela extremamente robusta do ponto de vista jurídico, contribuirá decisivamente para ampliar o debate no meio jurídico, oferecer aos operadores do Direito — incluindo advogados, magistrados, membros do Ministério Público, da advocacia pública, acadêmicos, professores e estudantes, assim como a comunidade interessada no tema — uma referência técnica sólida sobre a matéria, e possui o condão de promover maior segurança jurídica ao reforçar a ilegalidade e a inconstitucionalidade do modelo de pedágio free-flow.
15. Conclusão
A implementação do sistema de pedágio free-flow no Brasil, introduzido pela Lei nº 14.157/2021, apresenta sérias inconsistências do ponto de vista jurídico, configurando um modelo que viola Princípios constitucionais e normas legais fundamentais.
A análise demonstra que a aplicação do artigo 209-A do Código de Trânsito Brasileiro (CTB) no contexto do free-flow é tanto ilegal quanto inconstitucional por diversas razões.
Inicialmente, observa-se a clara incompetência material da ANTT e dos órgãos rodoviários estaduais, como o DER-SP, para fiscalizar e autuar infrações de trânsito, qualquer que seja.
O Sistema Nacional de Trânsito (SNT) define de forma taxativa os órgãos executivos de trânsito.
A ANTT atua como órgão regulador e de fiscalização das concessões de rodovias, tal qual a ARTESP enquanto que os DERs desempenham funções rodoviárias executivas; nenhum desses órgãos possui competência para exercer o poder de polícia de trânsito, atribuição exclusiva dos integrantes do SNT, como a PRF em rodovias federais e os Polícias Rodoviárias Estaduais – PRE/Detrans nos Estados.
A tentativa de delegar tal competência via convênio configura excesso de atribuição e afronta ao Princípio da Legalidade Estrita.
Além disso, a própria tipificação prevista no artigo 209-A do CTB não se aplica ao sistema free-flow.
O tipo penal “evadir-se” pressupõe a existência de uma barreira física, ou seja, uma praça de pedágio da qual o motorista possa evadir.
No modelo free-flow, inexistem obstáculos ou controles físicos que possibilitem a configuração de “evasão”.
Outro ponto é que, a relação que se estabelece entre a concessionária e o usuário é de natureza civil e de direito obrigacional , derivada da identificação da placa do veículo que passa sob o portal.
O não pagamento dentro do prazo de 30 dias, que decorre de liberalidade da concessionária sem respaldo legal, caracteriza apenas inadimplência contratual, regulada pelo Código Civil e pelos meios de cobrança próprios, e não infração administrativa de trânsito.
A conversão de uma dívida civil em infração de trânsito é totalmente impróprio.
O procedimento adotado pelas concessionárias e agências também viola garantias processuais essenciais. A imposição de sanção administrativa de trânsito sem notificação formal que constitua o devedor em mora, conforme exige o artigo 397 do Código Civil, e sem assegurar o contraditório e a ampla defesa prévios, fere o devido processo legal, consagrado no artigo 5º, inciso LV, da Constituição Federal.
A comunicação intimidatória veiculada pelas concessionárias nas rodovias, ameaçando usuários com “multas”, é enganosa e abusiva, induzindo o cidadão a acreditar na legalidade de sanção que, na prática, é ilegítima.
A utilização da sanção administrativa de trânsito, popularmente denominada “multa” como meio coercitivo de pagamento configura ainda, prática vexatória, expressamente vedada pelo artigo 42 do Código de Defesa do Consumidor.
Ainda. O dispositivo que destina o valor das multas às concessionárias (§3º do art. 320. do CTB) é juridicamente inaceitável e inconstitucional. Sanções administrativas de trânsito são receitas públicas não tributárias, que devem ser obrigatoriamente reinvestidas em políticas de trânsito, como sinalização, engenharia e educação.
O desvio desses recursos para o caixa de empresas privadas constitui utilização indevida de verba pública, afrontando o Princípio da Finalidade e o regime jurídico das receitas públicas.
Diante desse contexto, conclui-se que o modelo de cobrança e de sanção por “evasão” no sistema free-flow é juridicamente insustentável.
Caso o free-flow fosse revestido de juridicidade, o que à exaustão demonstrou-se que não é, a potencial via adequada para a concessionária cobrar valores não pagos a título de tarifa de pedágio seria a esfera cível, administrativa ou judicialmente, neste caso em especial, v.g. por meio de ação de cobrança, e não a utilização indevida do aparato sancionatório do Estado.
Os motoristas e usuários injustamente autuados devem recorrer ao Judiciário para obter a anulação das multas, a repetição do indébito em dobro, com fundamento no Código de Defesa do Consumidor, e a reparação por eventuais danos morais ou materiais. A tese apresentada é consistente e oferece base sólida para que a sociedade, os operadores do direito e, especialmente, o Poder Judiciário reavaliem o tema e reconheçam a plena inconstitucionalidade do pedágio free-flow, à luz dos argumentos expostos.