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Processo penal e gestão da prova.

Os novos arts. 155 e 156 do Código reformado (Lei nº 11.690/08)

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24/08/2008 às 00:00
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A recente reforma do CPP manteve o poder instrutório do Juiz no Processo Penal, embora tenha sido retirado da condição de protagonista e o colocado na condição de coadjuvante, privilegiando a atuação das partes, como protagonistas principais, no duelo probatório. No entanto, o Juiz se mantém capaz de, subsidiariamente, buscar a verdade dos fatos que são levados ao seu conhecimento pelas partes.

RESUMO: Os arts. 155 e 156 do Código de Processo Penal, recentemente alterados pela Lei nº 11.690/08, mantiveram o poder instrutório do Juiz no Processo Penal, embora o tenham retirado da condição de protagonista e o colocado na condição de coadjuvante, privilegiando a atuação das partes, como protagonistas principais, no duelo probatório. No entanto, o Juiz se mantém capaz de, subsidiariamente, buscar a verdade dos fatos que são levados ao seu conhecimento pelas partes e submetidos à sua decisão, sem que isto tenha o condão de comprometer o sistema acusatório, o princípio da inércia ou o princípio da imparcialidade do julgador, regras que estão preservadas, em que pese a alteração legislativa. O processo penal moderno não comporta a figura de um Juiz indiferente ao reflexo de sua sentença sobre os fatos da vida, mas exige um Juiz que busque aproximá-la, dentro dos meios lícitos de que dispõe, o mais que for possível do exato retrato do que realmente aconteceu.

SUMÁRIO: 1. INTRODUÇÃO. 2. SITUANDO A DISCUSSÃO. 3. OS DISPOSITIVOS EM ANÁLISE E SUA INTERPRETAÇÃO. 3.1 A prova do estado das pessoas; 3.2 A formação do convencimento do Juiz a partir da prova produzida em contraditório; 3.3 Atuação de ofício do Juiz na produção de provas. 4. CONCLUSÃO. 5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.

PALAVRAS-CHAVE: Sistema Acusatório – Poderes Instrutórios do Juiz – Reforma do Código de Processo Penal.


l. INTRODUÇÃO

A Carta de 1988, ao redemocratizar o país, trouxe novas diretrizes no relacionamento do Estado para com o cidadão, diretrizes essas que hão de repercutir nas mais diversas esferas dessa relação, inclusive e, talvez principalmente, na relação processual, em especial de natureza penal.

Ensina Raymundo Faoro, dissertando sobre a transição do capitalismo político para o que denomina capitalismo moderno:

O indivíduo, de súdito, passa a cidadão, com a correspondente mudança de converter-se o Estado, de senhor a servidor, guarda da autonomia do homem livre. A liberdade pessoal, que compreende o poder de dispor da propriedade, de comerciar e produzir, de contratar e contestar, assume o primeiro papel, dogma de direito natural ou da soberania popular, reduzindo o aparelhamento estatal a um mecanismo de garantia do indivíduo. Somente a Lei, como expressão da vontade geral institucionalizada, limitado o Estado a interferências estritamente previstas e mensuráveis na esfera individual, legitima as relações entre os dois setores agora rigidamente separados, controláveis pelas Leis e pelos Juízes. [01]

Costuma-se dizer que o processo penal é o "sismógrafo" da Constituição, sendo natural que, em períodos de exceção, pautados pelo autoritarismo típico das ditaduras, a preocupação com a efetividade a qualquer preço sacrifique as garantias fundamentais inerentes ao devido processo legal, ao passo em que, em períodos de normalidade democrática, esses valores tendam a requerer certa primazia, ainda que, com isto, se possa sacrificar a aparente utilidade de um processo rápido e eficaz. O maior desafio do processualista dos dias atuais consiste em, exatamente, fazer a ponderação entre as garantias fundamentais inerentes a um processo penal democrático e a efetividade deste processo, não perdendo de vista que esta também é uma garantia fundamental, como componente do direito de acesso à Justiça e que, uma vez completamente sacrificada, pode conduzir a uma impunidade que, em última análise e a longo prazo, tende a comprometer a própria manutenção do regime democrático que se pretende preservar.

Obnubilados pela messiânica tarefa de tornar o processo penal livre de qualquer ranço de inquisitorialismo, pecado que permeou a Idade Média, muitas vozes se levantaram na Doutrina, no escopo de levar a inércia do Juiz às últimas conseqüências, propondo uma figura passiva, de mero espectador, refém de uma espécie de jogo privado de interesses, tudo a pretexto de não corromper sua imparcialidade. Assim, pretendia-se um Juiz absolutamente alheio à busca da verdade dos fatos que eram postos à sua análise, completamente descompromissado com o retrato da vida que fosse representar a sua sentença, que não deveria passar de uma singela crítica literária a um roteiro escrito, protagonizado e dirigido pelas partes litigantes.

Neste sentido: Jacinto Nélson de Miranda Coutinho [02], Gilson Bonato [03], Geraldo Prado [04], Paulo Rangel [05], dentre outros, sob os auspícios do grande Luigi Ferrajoli:

Do mesmo modo que ao acusador são vedadas as funções judicantes, ao juiz devem ser em suma vedadas as funções postulantes, sendo inadmissível a confusão de papéis entre os dois sujeitos (...) É nessas atividades que se exprimem os diversos estilos processuais: desde o estilo acusatório, em que é máximo o distanciamento do juiz, simples espectador do interrogatório desenvolvido pela acusação e pela defesa, ao estilo misto, em que as partes são espectadoras e o interrogatório é conduzido pelo juiz, até o estilo inquisitório, no qual o juiz se identifica com a acusação e por isso interroga, indaga, recolhe, forma e valora as provas (...) Igualmente os testemunhos, extorquidos pelo juiz e dotados de valor probatório legal na inquisição, são entregues no processo acusatório exclusivamente à interrogação pelas partes, submetidos ao seu exame cruzado, vinculados à espontaneidade e ao desinteresse das testemunhas, delimitados no objeto e na forma pelas proibições de perguntas impertinentes, sugestivas, indeterminadas ou destinadas a obter apreciações ou juízos de valor. De fato, representam resíduos inquisitórios o interrogatório (a oitiva) das testemunhas pelo juiz (...); a ditadura por parte dele nas atas de interrogatório; o poder ilimitado do juiz de admitir ou não admitir provas e, por fim, aquele substituto moderno da tortura, que é a advertência das testemunhas por meio de incriminação e condenação por falso testemunho ou por silenciarem, salvo retratações. [06]

Na linha do equilíbrio entre um processo garantista e, ao mesmo tempo, efetivo, tentou-se, sem embargo de dotá-lo do perfil de um processo penal de partes (o que implicaria na atribuição de encargos probatórios ao menos ao autor, eis que milita em favor do réu a presunção de não-culpabilidade [07]), resguardar ao Juiz a possibilidade de uma participação ativa, ainda que supletiva, mas com plenos e eficazes instrumentos para sair em busca da verdade dos fatos que lhes foram postos pelas partes, de modo que pudesse sobre eles pronunciar o direito realmente adequado à espécie (ao que efetivamente se imagina ter acontecido).

Do processo civil vem, aliás, a idéia de que a ação é exercida contra o Estado e este, na medida em que assume o monopólio da jurisdição, vedando que se faça justiça com as próprias mãos, se responsabiliza em prestar a jurisdição de forma satisfatória e efetiva. Não qualquer tipo de jurisdição (como parecem imaginar os messiânicos que querem um Juiz pudico, envolto em uma redoma para não se contaminar com as chagas das partes litigantes); mas aquela que se mostrar adequada à satisfação do direito material posto nas pretensões antagônicas que são submetidas à batuta do Juiz. Sem lhe conferir o poder de instruir o feito de modo a buscar formar seu convencimento o mais próximo possível da realidade dos fatos ocorridos, não se vê como se alcançar a expectativa de uma boa prestação jurisdicional, que do Juiz esperam as partes.

Tais idéias são assim sintetizadas por Darci Guimarães Ribeiro:

El monopolio de la jurisdicción es el resultado natural de la formación del Estado que trae consigo consecuencias tanto para los individuos como para el proprio Estado. Para los primeros, alejó definitivamente la possibilidad de reacciones inmediatas por parte de cualquier titular, consecuentemente ellos se encuentran impedidos de actuar privadamente para la realización de sus intereses. Para el segundo, el monopolio creó el deber de prestar la tutela jurisdiccional efetiva a cualquier persona que lo solicite. (El monopolio no crea para el Estado el deber de prestar cualquier tutela jurisdiccional, sino la tutela jurisdiccional apropiada al derecho material que la parte trae a juicio, es decir, el Estado que es titular de la potestad jurisdiccional debe colocar a disposición de los ciudadanos un instrumento (proceso) capaz de amoldarse a los intereses en conflicto, para poder así proporcionar justicia em un tiempo adecuado a los consumidores de los servicios jurisdiccionales, en la feliz óptica de Cappelleti, "Acesso alla giustizia come programma di riforma e come metodo di pensiero"). [08]

Não há porque afastar o processo penal das idéias acima delineadas, sendo falsa a percepção de que processo civil e processo penal são sistemas em mão e contra-mão, num dualismo que nega a existência de uma teoria geral do processo. Mão e contra-mão esta que já havia sido objeto de destaque por parte de José Carlos Barbosa Moreira [09]. Dele, aliás, a crítica mais contundente a esta "nova" linha de pensamento doutrinário que, parecendo propor uma espécie de releitura do "Antropocentrismo" em um viés processual ("Reucentrismo Processual"?), despreza valores de igual dignidade constitucional como a segurança pública, tutelável somente com um processo efetivo, que busque a verdade dos fatos, para absolver quando tiver que absolver e, da mesma forma e sem nenhuma cerimônia, punir quando tiver que punir:

Temos, no particular, a penosa impressão de ver materializar-se aos nossos olhos autêntico fantasma retardatário de um tipo de individualismo exasperadamente anti-social, que supúnhamos exorcizado há muito tempo e em definitivo. Custa-nos crer que assombrações do gênero possam fazer boa companhia na marcha para a construção de uma sociedade mais civilizada. [10]

Não havia, como efetivamente não há, a menor razão para se pretender imobilizar o Juiz no tocante à gestão da prova, papel que lhe há de ser reservado, senão como protagonista, ao menos como coadjuvante. Neste sentido, Afrânio Silva Jardim [11] e Ada Pellegrini Grinover [12], esta última exorcizando, de forma magistral, o fantasma de que a busca da prova por parte do Juiz, ainda que subsidiariamente, poderia comprometer-lhe a imparcialidade, a partir do singelo, porém suficiente argumento, de que isto se trata de um grande equívoco, pelo simples fato de que ele, Juiz, não poderia adivinhar o resultado da prova que eventualmente mandou produzir.

A crença de que é possível um sistema acusatório que preserve os poderes do Juiz no que concerne à instrução probatória, inclusive como resultado de uma evolução desse próprio sistema acusatório ao longo do tempo, tem inspiração no magistério de Giovanni Leone:

El origen del sistema acusatorio se vincula a una concepción democrática, y tan es así, que fue adoptado por los antiguos regímenes democráticos y republicanos. Carmignani hace notar que el proceso acusatorio tuvo como ‘causa natural e inmediata’ el concepto de que en una democracia ‘la autoridad soberana está en todos los miembros de la organización política’. (…) El advenimiento del Estado moderno y la necesidad cada vez más sentida de ajustar el proceso penal a la concepción del Estado de derecho, debían, efectivamente, llevar a separar en los dos precedentes sistemas la parte buena y todavía vital de la parte no ya aceptable; bosquejándose así, casi automáticamente, el sistema mixto, que se caracteriza por cualquier ‘combinación entre los caracteres del acusatorio y los caracteres del inquisitorio, combinaciones que cabe realizar en los más variados modos’ (...) El sistema mixto, que es el vigente, se construye sobre los principios siguientes: a) el proceso no puede nacer sin una acusación; pero ésta sólo puede provenir de un órgano estatal. Del proceso acusatorio deriva la necesidad de la separación entre juez y acusador (y de ahí el principio ne procedat iudex ex officio); del proceso inquisitorio deriva la atribución del poder de acusación a un órgano estatal (ministerio público); b) el proceso, de ordinario, se despliega a través de dos fases correspondientes a los dos sistemas opuestos: instrucción, inspirada en el proceso inquisitorio (escritura y secreto); el juicio, inspirado, a su vez, en el proceso acusatorio (contradictorio, oralidad y publicidad); c) la selección de las pruebas, la adquisición y la crítica de ellas, quedan a la libre facultad del juez: nos hallamos, pues, en el campo del sistema inquisitorio. [13]

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E total respaldo no grande Frederico Marques, que afasta categoricamente a preocupação de que conferir poderes instrutórios ao Juiz no curso do processo tenha o condão de comprometer o sistema acusatório:

Norteado "no sentido de obter o equilíbrio entre o interesse social e o da defesa individual" (exp. de motivos, nº XVIII), o código de 1941 teve o cuidado de atribuir ao juiz o poder de "determinar, de ofício, diligências para dirimir dúvidas sobre ponto relevante" (art. 156) – de esclarecer primeiro que a prova da alegação incumbirá a quem a fizer (art. 156); dessa forma, essa atribuição judiciária assume caráter apenas complementar e supletivo, conforme se lê logo no início do item VII, da exposição de motivos.

Não importa que em seguida venha dito que, havendo "uma fonte de prova ainda não explorada, o juiz não deverá pronunciar o in dubio pro reo ou o non liquet": em face do art. 156, e, tendo em vista a prioridade das normas constitucionais relativas à plenitude da defesa, tal atribuição judiciária tem natureza indiscutivelmente supletiva, não chegando assim a infundir caráter inquisitório ao nosso procedimento. [14]


3. OS DISPOSITIVOS EM ANÁLISE E SUA INTERPRETAÇÃO

.

Lamenta-se a manutenção do primitivo art. 155, agora sob a forma de parágrafo único. Não se concebe, nem quanto ao estado das pessoas, opor restrições a uma prova lícita, o que parece contrariar o comando que, a contrario sensu, emerge do art. 5º, LVI, da Constituição Federal [18]. Ora, ainda que diga respeito ao estado das pessoas, desde que a prova produzida nos autos tenha sido obtida de forma lícita, não há porque se reportar a eventual fórmula prevista na Lei civil que, por sua vez, também não se afina à inteligência do preceito Constitucional em destaque. O dispositivo processual não deveria ter sido reproduzido, de modo a se banir um resquício do antigo e indesejado sistema da prova legal que ainda teima em assombrar o Código de Processo Penal, em afronta ao sistema do livre convencimento, que tinha que reinar absoluto.

3.2 A formação do convencimento do Juiz a partir da prova produzida em contraditório.

Por outro lado, em boa hora declara o caput do art. 155 que somente a prova produzida em contraditório judicial pode servir para a formação do convencimento do Juiz. O texto que se segue, ao afirmar que o juiz não poderá fundamentar sua decisão "exclusivamente nos elementos informativos colhidos na investigação", pode deixar algum clima de suspense no ar, abrindo a brecha para que se venha a sustentar que o fundamento da sentença do Juiz não poderia ser "exclusivo" nos elementos da investigação, como destaca a Lei, mas poder-se-ia buscar "reforço" à prova produzida em contraditório judicial nesses elementos. Tal conclusão, contudo, seria equivocada. Há de primar a primeira parte do dispositivo, que consagra a exclusividade da formação do convencimento do Juiz com base na prova colhida em contraditório judicial ("O juiz formará sua convicção pela livre apreciação da prova produzida em contraditório judicial"), com a única ressalva de somente poderá se valer, ainda que exclusivamente, das "provas cautelares, não repetíveis e antecipadas" produzidas no curso da investigação. Logo, as provas, por assim dizer, ordinariamente produzidas na investigação, que não tenham natureza cautelar, não sejam irrepetíveis e nem antecipadas, não podem servir nem mesmo de reforço à formação do convencimento do Juiz, sendo nula a fundamentação de qualquer sentença que delas se socorrer, ainda que à guisa de complemento da fundamentação calcada na prova colhida em contraditório judicial.

A esta conclusão se pode chegar, também, a partir da interpretação histórica do dispositivo que, na sua redação primitiva, limitava-se a declarar que o Juiz poderia formar sua convicção pela livre apreciação da prova, não especificando nada, sendo que, agora, especifica que prova é esta e quais as únicas ressalvas que são admitidas [19].

O ruim das reformas pontuais é que, quando parte delas entra em vigor e a outra parte não, sempre fica faltando um pedaço, como que numa colcha de retalhos. O art. 7º, parágrafo único, do Código de Processo Penal, na redação proposta pelo Projeto de Lei nº 4.209/01 [20], complementa o dispositivo em comento, de sorte a respaldar a linha aqui defendida, no sentido de que, em que pese o "exclusivamente" inserido de forma temerária ou pelo menos dúbia no novo art. 155 do Código de Processo Penal, certo é que a prova colhida na investigação, afora as ressalvas já apresentadas, jamais poderá servir de base à formação do convencimento do Juiz, ainda que venha somente a reforçar o convencimento já firmado com base na prova colhida no curso contraditório da instrução criminal. Do contrário, restaria arranhado o princípio constitucional do contraditório, evidentemente situado num plano muito superior ao que está situado o malfadado "exclusivamente".

E quais são essas ressalvas, em que se permite ao Juiz formar seu convencimento com base em provas colhidas no curso da investigação preliminar, muitas vezes sem a observância do princípio do contraditório?

São as provas cautelares – aí incluídas, dentre outras, as interceptações telefônicas, cuja colheita, por razões óbvias, não se compatibiliza com o princípio do contraditório em seu viés participativo [21], mas está expressamente ressalvada e portanto possibilitada pelo art. 5º, XII [22], da Constituição Federal, não havendo porque se questionar a validade como prova da conversa interceptada, apta, portanto, a formar o convencimento do Juiz, ainda que isoladamente considerada; as provas não repetíveis – aí incluídos os exames de corpo de delito ordenados durante a investigação, quando os vestígios documentados desaparecerem com o decurso do tempo, de sorte a não permitir que se possa pensar em repetir o exame [23]; e as provas antecipadas – aqui o legislador parece "chover no molhado", porque estas, as provas antecipadas, cuja previsão no Código é antiga (art. 225 do Código de Processo Penal, na redação primitiva ainda), já serão produzidas em contraditório judicial, aplicando-se por analogia os arts. 846/851 do Código de Processo Civil, estando, portanto, perfeitamente compreendidas na primeira parte do novo art. 155 do Código de Processo Penal. Há de se combinar o art. 155, caput, parte final, no ponto em que se refere às provas antecipadas, com o art. 156, I, adiante examinado.

Da análise das ressalvas especificadas de forma taxativa no dispositivo em questão se permite concluir que o exame de corpo de delito, feito na fase de investigação, quando puder ser repetido, uma vez não tendo desaparecidos os vestígios deixados pela infração penal (por exemplo: um membro mutilado, uma coisa que ainda permanece quebrada em local preservado, ou mesmo uma arma ainda apreendida cuja eficácia para produzir disparos se questiona), haverá de sê-lo, em contraditório judicial, garantindo-se a plena atuação das partes na formação da prova (contraditório prévio, participativo [24]), inclusive com indicação de assistentes técnicos (art. 159, § 5º, II, do Código de Processo Penal, com redação dada pela Lei nº 11.690/08 [25]), não servindo o primeiro exame para a formação do convencimento do Juiz.

3.3 Atuação de ofício do Juiz na produção de provas.

O atual art. 156 do Código de Processo Penal apresenta-se de modo tal que somente uma interpretação consentânea com o sistema acusatório, que deriva da Constituição Federal, poderá livrar-lhe das críticas que já se ensaiam, precipitadamente, dirigir [26].

Em que pese o caput do dispositivo ("A prova da alegação incumbirá a quem a fizer, sendo, porém, facultado ao juiz de ofício") generalizar a possibilidade de o Juiz agir de ofício em ambas as situações que prevê – incisos I e II – parece evidente que, no caso do inciso I ("ordenar, mesmo antes de iniciada a ação penal, a produção antecipada de provas consideradas urgentes e relevantes, observando a necessidade, adequação e proporcionalidade da medida"), o juiz só pode agir quando provocado pelo titular do direito de ação (Ministério Público ou querelante, conforme de iniciativa pública ou privada), no resguardo de uma prova pertinente e importante, que esteja em vias de perecer, tendo por parâmetro os já citados arts. 225 do próprio Código de Processo Penal e 846/851 do Código de Processo Civil. Assim se estabelece em complemento, como também já destacado, ao art. 155, caput, parte final, do Código de Processo Penal, no ponto em que ressalva as provas antecipadas, que são essas que o Juiz pode determinar antes de iniciada a ação penal (art. 156, I, do Código de Processo Penal), mas não de ofício, como parece pretender o caput, o que contrariaria, aí sim, o princípio da inércia, inerente ao sistema acusatório, com o quê mostrar-se-ia incompatível, eis que ainda não iniciada a ação por quem de direito, não cabendo ao Juiz partir em busca da prova antes de ser exercido o direito de ação, posto que, se assim o fizesse, estaria investigando, adotando comportamento tipicamente inquisitivo (nos velhos moldes dos arcaicos Juizados de Instrução), o que lhe é vedado constitucionalmente. Sugere-se, pois, uma interpretação conforme a Constituição, de modo a, na hipótese do inciso I, não permitir que o Juiz aja de ofício, só podendo determinar a produção de prova antecipada se isto for requerido pela parte interessada.

Chove no molhado o legislador, mais uma vez, quando, no inciso I em comento, manda observar a "necessidade, adequação e proporcionalidade" da medida, noções que já estão contidas nos conceitos de fumus boni juris e periculum in mora que são inerentes a este tipo de medida de produção antecipada de provas, cautelar que é. Despicienda, pois, a preocupação do legislador que, no entanto, não atrapalha, mas reforça a questão.

O ponto principal dispositivo é o inciso II ("determinar, no curso da instrução, ou antes de proferir sentença, a realização de diligências para dirimir dúvida sobre ponto relevante"). Esta, sim, uma faculdade do Juiz, de ofício, como estabelece o caput, na busca da formação de seu convencimento, quando não julgar suficientes as provas produzidas pelas partes.

Tal atividade por parte do Juiz não macula sua imparcialidade, posto que, como já ressalvado, não pode ele adivinhar o resultado das diligências ou das provas que mandou produzir.

E muito menos compromete sua inércia, já que não está ele a propor fatos novos ou a trazer fatos novos o processo, mas, tão-somente, checar, com os instrumentos de que dispõe, a veracidade dos fatos trazidos e alegados pelas partes.

Não se pode conceber um Juiz desinteressado com o acerto de sua decisão. O caráter publicista do processo, maxime aqueles em que a ação penal é de iniciativa pública, portanto obrigatória e indisponível, não condiz com um Juiz completamente alheio ao jogo probatório.

O sistema acusatório não pressupõe, necessariamente, as partes como adversárias, livres para competirem segundo suas exclusivas expensas, ficando o Juiz numa posição de árbitro, passivo, à deriva da condução que as partes resolverem dar aos rumos da demanda, na posição clássica de "O Pensador" (Le Penseur) de Auguste Rondin. O sistema acusatório pode, perfeitamente, conviver com um processo de cunho publicista, tendo o Juiz uma postura ativa, de condutor do mesmo, agindo como timoneiro. É o inquisitorial system, em contraposição ao adversarial system, de que nos fala Ada Pellegrini Grinover [27], ambos plenamente compatíveis com o sistema acusatório, ficando a opção por um ou outro sistema no âmbito discricionário do Legislador.

Uma vez posta a demanda, o Juiz, que preside o processo, não pode ser passivo, preguiçoso, nem se contentar com a dúvida ao primeiro sinal de sua manifestação, simplesmente porque a finalidade do processo não é produzir a dúvida na cabeça do julgador. A dúvida – e, por conseguinte, o in dubio pro reu – é uma conseqüência inevitável e um resultado invencível, não o objetivo do processo.

Assim, o Juiz pode e deve, usando seu poder instrutório supletivo, tentar vencer a dúvida e descobrir a verdade dos fatos postos em discussão. Somente se isto não for possível, é que deverá, por não poder presumir o réu culpado, absolvê-lo, declarando o in dubio pro reu.

É o princípio da busca da verdade real, que propõe uma releitura do velho princípio da verdade real de outrora, distorcido infelizmente no passado e usado como arma terrorista pelos messiânicos que querem um Juiz puritano. Ora, é evidente que, ao se falar em verdade real nos tempos atuais, nem de longe se está a defender o que se chegou em nome deste princípio outrora. Ninguém defende tortura, é lógico! O que se quer, no entanto, é não engessar o Juiz, não mumificar o Juiz, como pretendem alguns, de sorte a permitir que ele parta em busca da verdade dos fatos que foram submetidos ao seu conhecimento, evidentemente com os meios lícitos de que dispuser, respeitados os direitos de ambas as partes, notadamente do réu, que não é obrigado a provar sua inocência e, muito menos, colaborar para a colheita das provas que poderão contra ele ser utilizadas, o que todo mundo sabe e ninguém está a contestar.

Reconhece-se, no entanto, que a nova configuração processual, sobretudo em virtude da adoção do sistema do cross examination na coleta da prova oral, ante a nova redação dada pela Lei nº 11.690/08 ao art. 212 do Código de Processo Penal [28], em substituição ao sistema presidencial de antes, tornou esta atividade instrutória do Juiz supletiva, subsidiária, "complementar" no dizer do parágrafo único do aludido dispositivo, cabendo às partes, inicialmente, se desincumbirem do ônus de provarem os fatos por elas alegados. Na verdade, cabendo ao autor o ônus desta prova, já que, como dito, para o réu, a prova é somente um direito, que pode exercer ou não, não lhe cabendo conferir nenhuma conseqüência negativa caso não se desincumba desta atividade, ou por não querer, ou por não poder.

Mas, pelo menos, a preservação do poder instrutório do Juiz no curso do processo, que já constava da redação primitiva do art. 156 do Código de Processo Penal, além de seu art. 502, dentre outros, é uma vitória daqueles que desejam compatibilizar o processo garantista com o processo efetivo, e lutam para que esses conceitos não se antagonizem, como parecem querer alguns tantos, mas se complementem.

Méritos para a professora Ada Pellegrini Grinover, grande responsável pela manutenção desta conquista de um processo justo.

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Sobre o autor
Marcelo Lessa Bastos

promotor de Justiça do Rio de Janeiro, mestre em Direito pela Faculdade de Direito de Campos, doutorando pela Universidade Gama Filho, professor de Processo Penal da Faculdade de Direito de Campos (Centro Universitário Fluminense)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BASTOS, Marcelo Lessa. Processo penal e gestão da prova.: Os novos arts. 155 e 156 do Código reformado (Lei nº 11.690/08). Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 13, n. 1880, 24 ago. 2008. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/11593. Acesso em: 23 abr. 2024.

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