Capa da publicação Limites do poder disciplinar: tipo aberto e dever de motivar
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Tipos abertos e dever de motivação no Direito Administrativo Disciplinar

12/10/2025 às 21:25

Resumo:


  • A tipicidade disciplinar é mitigada, mas não inexistente.

  • Os tipos abertos no Direito Administrativo requerem motivação densa e orientada por critérios objetivos.

  • A segurança jurídica é essencial para conciliar os tipos abertos com a previsibilidade e controle dos atos sancionatórios.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

Os tipos abertos ampliam a discricionariedade da Administração, mas exigem motivação densa e proporcional. Como compatibilizar tipicidade mitigada com segurança jurídica?

Resumo: Examina-se a categoria dos tipos abertos no Direito Administrativo Disciplinar e sua relação com o dever de motivação dos atos sancionatórios. Partindo de referências do Direito Penal (Luiz Flávio Gomes, Alice Bianchini e Cleber Masson) e do pensamento clássico e contemporâneo em matéria disciplinar (Marcello Caetano, Cretella Júnior, Maria Sylvia Zanella di Pietro, René Zamlutti Júnior, Rafael Munhoz de Mello, Antônio Carlos de Carvalho e Fábio Medina Osório), sustenta-se que a tipicidade disciplinar é mitigada, mas não inexistente, e que essa mitigação impõe uma correção metodológica: a ampliação do ônus argumentativo da Administração. Conclui-se que os tipos abertos somente se conciliam com a segurança jurídica quando acompanhados de motivação densa, proporcional e orientada por critérios objetivos e verificáveis.

Palavras-chave: direito administrativo sancionador; tipos abertos; tipicidade mitigada; motivação; segurança jurídica.


Introdução

A expressão “tipos abertos” designa descrições normativas que não exaurem, de forma minuciosa, a conduta proibida, impondo, no caso concreto, integração valorativa pelo intérprete-aplicador. No campo penal, embora menos frequentes, esses tipos existem e, conforme assinala Cleber Masson, caberia ao Poder Judiciário, diante da situação fática, complementar a tipicidade mediante juízo de valor — a rixa e os delitos culposos são exemplos ilustrativos. 1

A constatação é relevante para o Direito Administrativo Disciplinar: se o penal admite, com reservas e freios, alguma abertura semântica sem abdicar da tipicidade, não parece correto concluir que, no terreno disciplinar, a mera presença de cláusulas abertas converta todo o sistema em um regime de “atipicidade”.

Este artigo sustenta exatamente o oposto: a existência de tipos abertos, longe de dispensar tipicidade, desloca o centro de gravidade para o dever de motivação, que deve atuar como técnica de fechamento racional do enunciado indeterminado, garantindo previsibilidade, adequação, coerência e controle.


1. Tipos abertos no direito penal e no direito disciplinar: semelhanças e diferenças

Luiz Flávio Gomes e Alice Bianchini, ao assinalarem que os tipos abertos “exigem uma valoração do intérprete”, porquanto “não individualizam totalmente a conduta proibida”, reconhecem tratar-se de construção dogmática intensamente debatida, justamente porque, em um Estado de Direito, a definição do que constitui delito é matéria reservada à lei. Em outras palavras, a abertura semântica reclama integração valorativa no caso concreto, mas essa tarefa deve operar sob estritos limites de legalidade e taxatividade, sob pena de tensionar o princípio da reserva legal.2

Portanto, no Direito Penal, a abertura tipológica subsiste apenas de forma excepcional e em harmonia com a legalidade estrita, sendo a integração judicial realizada sob controles severos.

Por sua vez, no Direito Administrativo Disciplinar, a experiência comparada e a doutrina registram maior presença de cláusulas genéricas — “falta grave”, “ineficiência”, “procedimento irregular”, “mau comportamento”, procedimento irregular de natureza grave”, “incontinência pública”, entre outras —, sobretudo para abarcar um espectro amplo de deveres funcionais e condutas socialmente danosas à função pública.

A literatura clássica reconhece esse traço. Marcello Caetano advertia que as leis disciplinares frequentemente indicam fatos puníveis de modo não exaustivo, fornecendo padrões orientativos ao intérprete, frequentemente consistindo “numa apreciação de momento, em que predominam razões de circunstância.”3

Na mesma direção, José Cretella Júnior acentuava a diferença entre os contornos precisos do ilícito penal e a deliberada amplitude do ilícito disciplinar, destinada a permitir reação a violações de deveres que, por sua natureza, não comportam enumeração taxativa.4 Maria Sylvia Zanella di Pietro observa que, diversamente do penal, prevalece no administrativo certa atipicidade (ou tipicidade limitada), com o enquadramento concreto realizado pela autoridade julgadora segundo a gravidade e as consequências para o serviço.5

Nada disso, entretanto, autoriza a conclusão de ausência de tipicidade jurídica na seara disciplinar, porquanto, como lembra Fábio Medina Osório, “a teoria da tipicidade é um fenômeno peculiar ao Direito, sem uma necessária vinculação com a ideia de tipos penais.”6


2. Segurança jurídica como vetor de tipicidade

Não há dúvidas que a amplitude semântica potencializa riscos de subjetivismo e disparidades decisórias. A propósito, René Zamlutti Júnior embora reconheça a utilidade da técnica (preservar a higidez da res publica), alerta para a tensão com a segurança jurídica, visto que, pelo menos em tese, “abre espaço para eventuais subjetivismos do intérprete”.7

Em remate, Rafael Munhoz de Mello, sustenta que o princípio da segurança jurídica, no campo sancionatório, dá origem à exigência de tipicidade suficiente, com comportamentos proibidos e sanções correspondentes descritos com clareza.8

É nesse ponto que o sistema “fecha” a abertura: quando o enunciado legal é amplo, o fechamento se produz pela motivação qualificada do ato, que transforma generalidades normativas em subsunção demonstrada, adequada e controlável.


3. Tipicidade mitigada não é atipicidade: função e limites

A doutrina contemporânea tem identificado, com boa dose de consenso, a ideia de tipicidade mitigada no disciplinar. Mitigada, porque a lei, por razões funcionais, não descreve exaustivamente todos os comportamentos; tipicidade, ainda assim, porque a subsunção a um padrão normativo e a correspondente sanção precisam ser justificadas à luz de critérios racionais e verificáveis.

Dois freios estruturais resultam dessa compreensão:

  1. Densidade normativa conforme a gravidade da sanção. Como nota Antonio Carlos Alencar Carvalho, se verifica uma tendência, no sentido de que, quanto mais severa a resposta (demissão, cassação), maior a tendência dos estatutos a tipificar de maneira exaustiva e minuciosa.9 Todavia, na prática, é recorrente a quantidade de tipos abertos que fundamentam penas demissórias (v.g.: conduta escandalosa, na repartição, art. 132, inciso V, da Lei Federal 8.112/90; procedimento irregular de natureza grave, art. 256, inciso II, da Lei Estadual 10.261/68; e incontinência de conduta, Lei 1.818/07, art. 157, inciso XXV).

  2. Motivação reforçada quando o tipo é aberto. Onde a lei é mais genérica, a motivação deve ser mais densa, sob pena de arbitrariedade.

É justamente nesse freio que se baseia o presente artigo.


4. O papel estruturante da motivação: “fechar” o tipo aberto

Se o tipo é aberto, a motivação não pode ser meramente conclusiva (“procedimento irregular”, “falta grave”). Ela deve realizar um fechamento argumentativo que cumpra três funções: (i) delimitar o conteúdo do tipo no caso concreto, (ii) demonstrar o nexo entre dever funcional e conduta, (iii) justificar a escolha e a graduação da sanção.

Propõe-se, para tanto, um teste de motivação qualificada em tipos abertos:

  • (a) Enunciação do padrão normativo aplicável: dever funcional violado e cláusula disciplinar invocada, explicitando seu conteúdo mínimo a partir de textos estatutários, códigos de ética e regulamentos internos.

  • (b) Reconstrução fática minuciosa: fatos certos e comprovados, com indicação das evidências que excluem hipóteses alternativas (p.ex., o servidor atuou para “separar contendores” e não para “participar da rixa”).

  • (c) Subsunção explícita: mostrar como cada elemento fático se encaixa no recorte normativo construído, evitando rótulos genéricos.

  • (d) Proporcionalidade graduada: correlação entre gravidade, consequências para o serviço, antecedentes e sanção aplicada, preferindo-se, quando cabível, respostas menos gravosas e pedagógicas.

  • (e) Consistência decisória: referência a orientações internas, precedentes administrativos e critérios prévios, para evitar decisões dissonantes sem fundamento.

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  • (f) Análise das circunstâncias do caso: consideração de obstáculos e dificuldades concretas do gestor e do serviço, evitando juízos abstratos desconectados da realidade administrativa.

  • (g) Linguagem controlável: evitar fórmulas vazias; utilizar razões verificáveis por terceiro imparcial (controlabilidade externa).

Esse desenho metodológico atende simultaneamente à legalidade, à impessoalidade e à segurança jurídica, ao mesmo tempo em que preserva a necessária capacidade responsiva do regime disciplinar.


5. A distribuição do ônus argumentativo

Em sistemas com maior abertura tipológica, o ônus argumentativo se desloca decisivamente para quem decide. Não basta afirmar a ocorrência de uma “falta”; é imprescindível mostrar por que a conduta, tal como provada, é a falta invocada. A diferença não é retórica. Ela impacta:

  • a própria validade do ato (vício de motivação é vício de legalidade);

  • a sindicabilidade administrativa e judicial (controle de razoabilidade e proporcionalidade); e

  • a coerência institucional (padronização e previsibilidade).


7. Tipos abertos, sanções graves e exigência de precisão

Nesse contexto, é correto afirmar que quanto mais intensa a sanção pretendida, mais denso deve ser o lastro normativo e motivacional. Em hipóteses-limite (demissão, cassação), o sistema deveria optar por tipos fechados ou, ao menos, densificados por regulamentos e códigos que reduzam a margem de indeterminação. Contudo, quando, por construção legislativa, ainda subsistirem aberturas, a motivação precisa compensá-las com descrição fática rigorosa, subsunção passo a passo e justificativa circunstanciada da proporcionalidade.


Conclusão: a íntima ligação entre tipos abertos e motivação

A experiência comparada e a doutrina examinada permitem afirmar: a abertura tipológica não elimina a tipicidade no Direito Administrativo Disciplinar; ela reconfigura sua operacionalização. Onde o legislador recorre a cláusulas gerais para abarcar variada gama de violações de dever, a motivação passa a desempenhar função estruturante, transformando o enunciado aberto em decisão controlável e conforme aos princípios. Em síntese:

  • Tipos abertos exigem motivação fechada. Quanto maior a indeterminação do tipo, maior deve ser a densidade da justificação — fática, normativa e proporcional.

  • Tipicidade mitigada não é atipicidade. A subsunção segue sendo requisito de validade; apenas se desloca do texto para a motivação qualificada.

  • Segurança jurídica como critério de desenho e de decisão. A abertura é compatível com a segurança desde que a Administração assuma o ônus de explicitar padrões, evidências, coerência interna e proporcionalidade.

  • Graduação conforme a gravidade. Sanções mais severas pedem tipos mais precisos e/ou motivação ainda mais robusta, sob pena de arbitrariedade.

Assim, a íntima ligação entre tipos abertos e motivação não é contingente; é estrutural. A cláusula aberta, por definição, só se converte em comando legítimo quando a motivação cumpre a tarefa de fechar, com transparência e racionalidade, aquilo que o texto deixou intencionalmente “em aberto”. Essa é a condição para compatibilizar eficiência disciplinar com direitos e garantias do administrado — e para que o poder disciplinar se exerça, de fato, em conformidade com o Estado de Direito.


Notas

  1. MASSON, Cleber, Direito Penal, Parte Geral, 13ª edição, Gen – Editora Método, 2019, p. 230.

  2. GOMES, Luiz Flávio, BIANCHINI, Alice, Curso de Direito Penal, Parte Geral, volume I, Salvador, Editora JusPODIVM, 2015, pág. 208.

  3. CAETANO, Marcello. Do Poder Disciplinar no Direito Administrativo Português, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1932, pág. 51.

  4. CRETELLA JUNIOR, José. Prática do Processo Administrativo, 8ª. edição, revista e atualizada, Editora Revista dos Tribunais, São Paulo, 2011, p. 100/101.

  5. DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella, Direito Administrativo, 29ª edição, Forense, Rio de Janeiro, págs. 779/780.

  6. OSÓRIO, Fábio Medina. Direito Administrativo Sancionador, 5ª. edição, revista, atualizada e ampliada, Editora Thompson Reuters, 2015, p. 228.

  7. ZAMLUTTI JÚNIOR, René. Subsunção e Tipicidade no Processo Disciplinar, Revista da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo - Procedimentos Disciplinares, n. 85, jan/jun de 2017, pág. 31.

  8. MELLO, Rafael Munhoz. Princípios Constitucionais de Direito Administrativo Sancionador, Coleção Temas de Direito Administrativo, n. 17, Editora Malheiros, São Paulo, 2007, pág. 134.

  9. CARVALHO, Antonio Carlos de Alencar, Manual de Processo Administrativo Disciplinar e Sindicância – À luz da Jurisprudência dos Tribunais e da Casuística da Administração Pública, 2ª. edição, Editora Fórum, Belo Horizonte, 2011, pág. 276.

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Sobre o autor
Messias José Lourenço

Procurador do Estado de São Paulo - Aposentado. Mestre em Processo Penal - USP. Ex-professor da Academia de Polícia Militar do Barro Branco - SP. Advogado. Sócio do Escritório: Lourenço & Batista Advocacia e Consultoria Especializadas.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LOURENÇO, Messias José. Tipos abertos e dever de motivação no Direito Administrativo Disciplinar. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 30, n. 8138, 12 out. 2025. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/115941. Acesso em: 5 dez. 2025.

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