Capa da publicação Quem matou Odete Roitman? A lição dos Irmãos Naves
Capa: Reprodução / TV Globo
Artigo Destaque dos editores

O erro do sistema de Justiça na novela Vale Tudo.

Entre a ficção e a realidade dos irmãos Naves

19/10/2025 às 08:44

Resumo:


  • O artigo reflete sobre o erro do sistema de justiça criminal, comparando a ficção da novela Vale Tudo com o caso real dos Irmãos Naves, destacando a responsabilidade objetiva do Estado.

  • A análise contextual destaca a importância de avaliar as provas de forma racional e lógica, sem hierarquia entre elas, respeitando o contraditório e a presunção de inocência.

  • Nas reflexões finais, é ressaltado o dever de indenizar em casos de erro judiciário, a necessidade de coerência probatória e o papel do Estado em buscar a verdade para garantir a justiça verdadeira.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

Quando a confissão substitui a prova, nasce o erro judicial. O que une a ficção de Vale Tudo ao drama real dos Irmãos Naves na busca pela verdade e pela responsabilidade do Estado?

Resumo: O presente artigo reflete sobre o erro do sistema de justiça criminal, tomando como pano de fundo o enredo da novela Vale Tudo, obra televisiva da Rede Globo de Televisão, que imortalizou a dúvida: “Quem matou Odete Roitman?”. O estudo traça um paralelo entre a ficção e a trágica realidade dos Irmãos Naves, símbolo maior do erro judiciário no Brasil. Analisa-se a responsabilidade objetiva do Estado pelos danos causados a inocentes, os requisitos da responsabilização, o dever de indenizar, o instituto da ação regressiva, a necessidade de coerência probatória e a inexistência de hierarquia entre os meios de prova, conforme os artigos 155 a 250 do Código de Processo Penal. O texto propõe uma reflexão humanista e jurídica sobre a falibilidade humana e a urgência de uma justiça pautada na verdade real e não nas aparências.

Palavras-chave: Erro Judiciário; Responsabilidade Objetiva do Estado; Sistema de Provas; Irmãos Naves; Justiça Penal; Confissão; Dever de Indenizar.


INTRODUÇÃO

O último capítulo da novela Vale Tudo parou o Brasil. Milhões de telespectadores se debruçaram diante da televisão para descobrir quem matou Odete Roitman, a impiedosa vilã que simbolizava a corrupção moral e social de uma elite sem escrúpulos.

Durante as investigações, cinco pessoas foram apontadas como suspeitas, duas delas chegaram a confessar o crime, e uma das suspeitas permaneceu presa por longo período, sendo posteriormente libertada com o uso de monitoração eletrônica.

O clímax do enredo, no entanto, revelou uma reviravolta: a verdadeira autora do crime não fora nenhuma das confessas. O verdadeiro responsável, um dos diretores da empresa da vítima, fora apontado na novela em seu capítulo final, mas jamais responsabilizado judicialmente. Ocorreu, assim, o erro do sistema de justiça, em uma simulação de processo investigativo e penal que espelha a fragilidade do próprio mundo real.

Essa narrativa, embora ficcional, reproduz com impressionante exatidão o drama vivido pelos Irmãos Naves, em Araguari, Triângulo Mineiro, em 1937 — símbolo do mais emblemático erro judiciário da história brasileira. Acusados injustamente de um crime inexistente, foram brutalmente torturados até confessarem um homicídio que jamais ocorreu. Somente anos depois, com a reaparição da suposta vítima, ficou provado o equívoco mortal do Estado.

Em ambos os casos — ficção e realidade — ecoa uma mesma lição: o sistema de justiça não pode ceder ao clamor midiático nem ao autoritarismo de investigações passionais. Deve, antes, ser o guardião sereno da verdade real, fundamentando-se nas provas produzidas sob o crivo do contraditório, conforme estabelece o artigo 155 do Código de Processo Penal.


ANÁLISE CONTEXTUAL FÁTICA

Na trama, a personagem Heleninha, vivida por Paolla Oliveira, assume indevidamente a autoria do crime, movida por distúrbios emocionais e pela dependência alcoólica, fatores que a tornaram vulnerável à pressão psicológica e à sugestão. Sua confissão, embora formalmente válida, era materialmente falsa, desprovida de coerência com o conjunto probatório.

A doutrina e a jurisprudência pátria firmam que não existe hierarquia entre as provas (arts. 155 a 250, CPP), e que a confissão não é a rainha das provas, devendo ser analisada em consonância com os demais elementos colhidos na instrução criminal. A prova deve ser avaliada em seu contexto, de forma racional, lógica e fundamentada, sob pena de violação ao devido processo legal e ao princípio da presunção de inocência.

Ao final, descobre-se que Odete Roitman sobrevivera ao atentado, tendo sido submetida a cirurgia e retirada do país sob sigilo, enquanto uma outra pessoa foi sepultada em seu lugar. Um erro fatal do sistema investigativo e judicial — erro que, em qualquer sociedade civilizada, impõe a responsabilidade civil objetiva do Estado, nos termos do artigo 37, §6º da Constituição Federal de 1988, bastando a conduta do agente público, o dano e o nexo causal.

REFLEXÕES FINAIS

A ficção televisiva de Vale Tudo transformou-se em espelho da realidade amarga da Justiça brasileira. Quando o Estado erra — e erra ao condenar um inocente —, não há reparação possível que restaure a honra, a liberdade e a dignidade ultrajadas.

Tal qual os Irmãos Naves, torturados e humilhados por um crime inexistente, milhares de brasileiros anônimos sofrem os efeitos de decisões precipitadas, investigações falhas e provas mal interpretadas. E, nesses casos, o erro do sistema de justiça não é apenas uma falha técnica: é um atentado à alma da Constituição e à essência dos direitos humanos.

O artigo 186 do Código Civil é cristalino: “Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, comete ato ilícito.” Assim, configurado o erro judiciário, surge o dever de indenizar, abrangendo danos morais, materiais e existenciais.

Além disso, a Constituição e a doutrina majoritária impõem ao Estado o dever de ação regressiva contra o agente responsável, quando comprovado dolo ou culpa grave, a fim de se evitar a perpetuação da irresponsabilidade funcional e de reafirmar a ética pública.

O Estado não pode se contentar com confissões frágeis, com provas manipuladas, com julgamentos apressados. O processo penal não é instrumento de vingança social, mas via de realização da justiça verdadeira.

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A coerência probatória deve ser a bússola; a razão, o guia; e o respeito à dignidade humana, a fronteira intransponível.

A verdade, ainda que tardia, é o único remédio para a injustiça. Que Vale Tudo e os Irmãos Naves sirvam como advertência eterna de que o erro judicial, quando perpetuado, mata não apenas o inocente, mas o próprio Estado Democrático de Direito.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.

BRASIL. Código Penal. Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940.

BRASIL. Código de Processo Penal. Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941, especialmente artigos 155 a 250.

BRASIL. Código Civil. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002, art. 186 e seguintes.

CASO IRMÃOS NAVES. Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Reabilitação histórica e jurídica dos acusados, 1952.

GLOBO. Vale Tudo. Telenovela, 1988. Remake: 2025. Rede Globo de Televisão.

MIRABETE, Júlio Fabbrini. Processo Penal. São Paulo: Atlas, diversas edições.

NUCCI, Guilherme de Souza. Código de Processo Penal Comentado. São Paulo: Forense, diversas edições.

TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Manual de Processo Penal. São Paulo: Saraiva.

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Sobre o autor
Jeferson Botelho Pereira

Jeferson Botelho Pereira. Ex-Secretário Adjunto de Justiça e Segurança Pública de MG, de 03/02/2021 a 23/11/2022. É Delegado Geral de Polícia Civil em Minas Gerais, aposentado. Ex-Superintendente de Investigações e Polícia Judiciária de Minas Gerais, no período de 19 de setembro de 2011 a 10 de fevereiro de 2015. Ex-Chefe do 2º Departamento de Polícia Civil de Minas Gerais, Ex-Delegado Regional de Governador Valadares, Ex-Delegado da Divisão de Tóxicos e Entorpecentes e Repressão a Homicídios em Teófilo Otoni/MG, Graduado em Direito pela Fundação Educacional Nordeste Mineiro - FENORD - Teófilo Otoni/MG, em 1991995. Professor de Direito Penal, Processo Penal, Teoria Geral do Processo, Instituições de Direito Público e Privado, Legislação Especial, Direito Penal Avançado, Professor da Academia de Polícia Civil de Minas Gerais, Professor do Curso de Pós-Graduação de Direito Penal e Processo Penal da Faculdade Estácio de Sá, Pós-Graduado em Direito Penal e Processo Penal pela FADIVALE em Governador Valadares/MG, Prof. do Curso de Pós-Graduação em Ciências Criminais e Segurança Pública, Faculdades Unificadas Doctum, Campus Teófilo Otoni, Professor do curso de Pós-Graduação da FADIVALE/MG, Professor da Universidade Presidente Antônio Carlos - UNIPAC-Teófilo Otoni. Especialização em Combate à corrupção, crime organizado e Antiterrorismo pela Vniversidad DSalamanca, Espanha, 40ª curso de Especialização em Direito. Mestrando em Ciências das Religiões pela Faculdade Unida de Vitória/ES. Participação no 1º Estado Social, neoliberalismo e desenvolvimento social e econômico, Vniversidad DSalamanca, 19/01/2017, Espanha, 2017. Participação no 2º Taller Desenvolvimento social numa sociedade de Risco e as novas Ameaças aos Direitos Fundamentais, 24/01/2017, Vniversidad DSalamanca, Espanha, 2017. Participação no 3º Taller A solução de conflitos no âmbito do Direito Privado, 26/01/2017, Vniversidad DSalamanca, Espanha, 2017. Jornada Internacional Comjib-VSAL EL espaço jurídico ibero-americano: Oportunidades e Desafios Compartidos. Participação no Seminário A relação entre União Europeia e América Latina, em 23 de janeiro de 2017. Apresentação em Taller Avanco Social numa Sociedade de Risco e a proteção dos direitos fundamentais, celebrado em 24 de janeiro de 2017. Doutorando em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidad Del Museo Social Argentino, Buenos Aires – Argentina, autor do Livro Tráfico e Uso Ilícitos de Drogas: Atividade sindical complexa e ameaça transnacional, Editora JHMIZUNO, Participação no Livro: Lei nº 12.403/2011 na Prática - Alterações da Novel legislação e os Delegados de Polícia, Participação no Livro Comentários ao Projeto do Novo Código Penal PLS nº 236/2012, Editora Impetus, Participação no Livro Atividade Policial, 6ª Edição, Autor Rogério Greco, Coautor do Livro Manual de Processo Penal, 2015, 1ª Edição Editora D´Plácido, Autor do Livro Elementos do Direito Penal, 1ª edição, Editora D´Plácido, Belo Horizonte, 2016. Coautor do Livro RELEITURA DE CASOS CÉLEBRES. Julgamento complexo no Brasil. Editora Conhecimento - Belo Horizonte. Ano 2020. Autor do Livro VIOLÊNCIA DOMÉSTICA. 2022. Editora Mizuno, São Paulo. articulista em Revistas Jurídicas, Professor em Cursos preparatórios para Concurso Público, palestrante em Seminários e Congressos. É advogado criminalista em Minas Gerais. OAB/MG. Condecorações: Medalha da Inconfidência Mineira em Ouro Preto em 2013, Conferida pelo Governo do Estado, Medalha de Mérito Legislativo da Assembléia Legislativa de Minas Gerais, 2013, Medalha Santos Drumont, Conferida pelo Governo do Estado de Minas Gerais, em 2013, Medalha Circuito das Águas, em 2014, Conferida Conselho da Medalha de São Lourenço/MG. Medalha Garimpeiro do ano de 2013, em Teófilo Otoni, Medalha Sesquicentenária em Teófilo Otoni. Medalha Imperador Dom Pedro II, do Corpo de Bombeiros, 29/08/2014, Medalha Gilberto Porto, Grau Ouro, pela Academia de Polícia Civil em Belo Horizonte - 2015, Medalha do Mérito Estudantil da UETO - União Estudantil de Teófilo Otoni, junho/2016, Título de Cidadão Honorário de Governador Valadares/MG, em 2012, Contagem/MG em 2013 e Belo Horizonte/MG, em 2013.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PEREIRA, Jeferson Botelho. O erro do sistema de Justiça na novela Vale Tudo.: Entre a ficção e a realidade dos irmãos Naves. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 30, n. 8145, 19 out. 2025. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/116007. Acesso em: 5 dez. 2025.

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