Resumo: Este artigo explora a utilização de inteligência artificial na classificação e vinculação de processos a precedentes vinculantes. O ponto de partida será a contextualização da cultura de precedentes vinculantes formada no Brasil e a sua contribuição para a garantia do princípio da igualdade, celeridade e duração razoável do processo. No capítulo seguinte, parte-se à compreensão do precedente vinculante a partir das suas razões de decidir determinantes e das dificuldades práticas de sua identificação, com exemplos práticos advindos da jurisprudência dos tribunais superiores. Após, analisar-se-á como a inteligência artificial vem sendo utilizada para a seleção e aplicação dos precedentes jurisprudenciais e os problemas que podem advir da sua utilização. Por fim, conclui-se que há a necessidade tanto do desenvolvimento de uma metodologia que disponha sobre as razões de decidir de um determinado julgado, assim como de mecanismos que solucionem o problema da explicabilidade, trazendo exposição clara sobre os comandos dados à inteligência artificial o conteúdo por ela gerado e a intervenção humana para chegar ao resultado como mecanismo essencial ao controle da utilização da inteligência artificial pelos tribunais brasileiros.
Palavras-chave: processo civil; precedentes vinculantes; inteligência artificial; jurisprudência.
1. Introdução
Nas últimas décadas, o Direito brasileiro tem caminhado no sentido do fortalecimento de uma cultura de precedentes vinculantes, aproximando-se, em certa medida, do modelo jurídico anglo-saxônico da common law, cuja principal característica é a centralidade dos precedentes. Contudo, ao contrário dos países que adotam esse sistema, nos quais os precedentes foram construídos historicamente, no Brasil sua institucionalização se deu por meio de imposições legislativas.
Dissociado de um amadurecimento teórico e prático, esse processo tem gerado distorções relevantes na aplicação dos precedentes. Como destacam Vale e Pereira (2023, p. 118-119), são comuns, por exemplo, na prática forense:
a) confusão entre ementa e precedente;
b) aplicação com base unicamente no método subsuntivo;
c) ausência de fundamentação adequada das decisões;
d) dificuldades na distinção entre as razões de decidir (ratio decidendi) e o que é dito de passagem (obiter dictum), entre outros equívocos e simplificações interpretativas.
Em razão dessas inconsistências, observa-se que precedentes vinculantes, criados para pacificar controvérsias, por vezes acabam gerando novas divergências interpretativas entre os tribunais. Isso não raro exige a formulação de teses adicionais para resolver os impasses produzidos pelas anteriores1.
Esse cenário, complexo por si só, ganha novas camadas com o advento da utilização de inteligência artificial na aplicação dos precedentes vinculantes. À míngua de regulação legislativa e contando unicamente com regulação por meio de resoluções do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), projetos de inteligência artificial como o Victor, fruto de parceria entre o Supremo Tribunal Federal e a Universidade de Brasília2, e os sistemas Sócrates e Athos, utilizados pelo Superior Tribunal de Justiça3, já vêm trabalhando no apoio à prestação jurisdicional relacionada à aplicação de precedentes.
A despeito de serem noticiadas como avanços que garantem maior celeridade na prestação jurisdicional, essas iniciativas enfrentam críticas relacionadas à opacidade algorítmica. Isso na medida em que a ausência de transparência na lógica decisória pode acarretar a reprodução automatizada de erros e vieses que já eram observados antes da sua implantação na prática jurisdicional.
É neste contexto que esta pesquisa, conduzida pelo método dedutivo, com base na revisão de literatura e jurisprudência, busca analisar os desafios e riscos associados à formação e aplicação dos precedentes vinculantes no Brasil, diante da incorporação da inteligência artificial no processo decisório judicial. Os casos selecionados para análise refletem hipóteses nas quais se constataram dificuldades para a identificação das suas razões de decidir, problema este que tende a ser amplificado com os referidos avanços tecnológicos.
O primeiro capítulo contextualiza a adoção da cultura de precedentes no Brasil e os marcos normativos que a viabilizaram. Em seguida, examina-se o conceito de precedente vinculante, sua aplicação prática e casos concretos que revelam dificuldades interpretativas. Por fim, analisa-se o impacto da inteligência artificial na classificação de precedentes, os desafios daí decorrentes e possíveis caminhos para sua superação, encerrando-se com a sistematização dos achados desta pesquisa.
2. Evolução histórica e legislativa dos precedentes vinculantes no Brasil
Marinoni (2014, p. 42-43) menciona que, conquanto o sistema de precedentes seja historicamente ligado ao sistema jurídico common law e a ele se possa se relacionar inicialmente uma expectativa de previsibilidade no direito, isso nem sempre foi atendido. Citando Max Weber, em sua obra A Ética Protestante no Espírito do Capitalismo, o autor discorre que foi somente a partir da incorporação dos precedentes vinculantes, decorrente da necessidade de pacificação das demandas sociais para melhor fluxo dos negócios empresariais, que o common law passou a ser um sistema dotado de mais racionalidade.
Na época, Weber (apud Marinoni, p. 30-31) enxergava maior cientificidade no sistema de origem civil law, de origem romano-germânica, já que ele trazia a lei, construída com pressuposto na generalidade e abstração, como fonte primária do seu Direito. O sistema common law, em via inversa, partindo de um raciocínio indutivo voltado à solução dos casos concretos, facilitava a existência de indesejados casuísmos.
Esse cenário mudou em relação ao sistema civil law com a superação do positivismo após a 2ª guerra mundial. Pela interpretação de que esse sistema teria permitido a ocorrência de barbáries como os regimes nazista e fascista sob o manto de uma pretensa legalidade (Barroso, 2025, p. 159), passou-se a adotar o pós-positivismo ou neoconstitucionalismo como novo paradigma de interpretação constitucional.
Entre nós, após anos de regime de exceção, esse marco se concretizou na Constituição Federal de 1988 (CF/88), que é notabilizada por redefinir o papel do Direito Constitucional, colocando-o no centro do ordenamento jurídico. Sua promulgação marcou a conquista de força normativa e supremacia material, estabelecendo uma ordem objetiva de valores que deve orientar toda a interpretação do direito infraconstitucional (Barroso, 2025, p. 52), uma das principais características do pós-positivismo.
A nova carga axiológica trazida pela Constituição Federal de 1988 permitiu a positivação de diversos direitos dotados de alto grau de abstração, como saúde, moradia, alimentação etc (art. 6º da CF/88). Amplificou, ademais, o acesso aos instrumentos de controle de constitucionalidade, ao permitir um amplo rol de legitimados à propositura das ações de controle de constitucionalidade e ao combinar os sistemas difuso e concentrado de controle.
Se, por um lado, esse cenário trouxe ao Poder Judiciário grande protagonismo na relação entre os poderes, por outro a ausência de um sistema sólido de precedentes vinculantes associada à independência funcional dos magistrados permitiu a coexistência de decisões em sentido diverso em casos de teor fático idêntico. O prejuízo que isso veio a implicar à coerência do sistema jurídico trouxe urgência para a concretização de reformas que possibilitassem a adoção de um sistema de precedentes vinculantes no Brasil.
Sobre o tema, assim discorre Marinoni (2014, p. 54-55):
No Brasil, o impacto do constitucionalismo foi maior, na medida em que todo e qualquer juiz, com base na elaboração teórica de que a validade da lei se subordina aos direitos fundamentais, passou a reter o poder de conferir significado aos direitos fundamentais. Não é preciso dizer que a tarefa de conferir significado a um direito fundamental é algo que está muito longe do raciocínio judicial moldado pelos esquemas do positivismo clássico – interpretação cognitivista de uma norma pré-existente dada exclusivamente pelo legislador e aplicação logicista da norma -, pois revela a necessidade de consideração de fatores que devem ser observados e compreendidos em outras perspectivas, como a moral e a econômica. Portanto, o verdadeiro significado da transformação da função jurisdicional está em que, ao se subordinar a lei aos direitos fundamentais, impôs-se ao juiz, além do dever de raciocinar a partir de princípios que projetam figuras não precisas, a necessidade de considerar questões de ordem moral, política e econômica que estão inseridas no tecido aberto das disposições constitucionais, o que amplifica a latitude do espaço judicial para expressar o significado do direito e resolver o caso litigioso. Como é óbvio, isso fez ruir a crença de que o juiz poderia decidir mediante mero raciocínio lógico, subsumindo as situações concretas às hipóteses abstratas contidas no sistema jurídico. Elimina-se, portanto, a pretensão de se obter certeza jurídica e previsibilidade mediante o esquema positivista próprio ao civil law do final do século XIX e início do século XX, marcado pela sistematicidade e pela plenitude.
Nessa direção, destacam-se as seguintes reformas constitucionais e legislativas: a) Emenda Constitucional n. 03/1993, com a sua previsão de efeito vinculante para os instrumentos de controle abstrato de constitucionalidade; b) Emenda Constitucional n. 45/2004, responsável pela criação das súmulas vinculantes; c) Leis 11.418/06 e 11.672/08, responsáveis pela criação dos mecanismos de repercussão geral e de recursos especiais repetitivos, respectivamente.
As previsões legais acerca dos precedentes vinculantes foram reforçadas com o Código de Processo Civil de 2015 (CPC/15). Nele, houve a criação de mecanismos como o incidente de resolução de demandas repetitivas (art. 976), incidente de assunção de competência (art. 947) e a obrigatória observância dos precedentes desses precedentes pelos juízes e tribunais (art. 927).
A eficácia vinculante dos precedentes judiciais no mecanismo de controle concentrado também passou a ser adotada pelo controle difuso de constitucionalidade por interpretação do Supremo Tribunal Federal. Esse movimento, denominado de abstrativização do controle difuso de constitucionalidade, pôde ser verificado quando do julgamento do Tema Repetitivo n. 881. de repercussão geral4, julgado em 2023.
Observa-se, assim, que houve diversos marcos legislativos e jurisprudenciais desde a promulgação da Constituição Federal que potencializaram o padrão vinculante dos precedentes. Essa constatação somente reforça a necessidade da compreensão acerca das dinâmicas que vêm orientando o processo de sua aplicação.
3. Conceito de precedente vinculante e o problema da “ratio decidendi”
Didier, Braga e Oliveira (2015, p. 455) definem precedente como “a decisão judicial tomada à luz de um caso concreto, cujo elemento normativo pode servir de diretriz para o julgamento posterior de casos análogos”. Em sentido estrito, acrescentam que ele “pode ser definido como sendo a própria ratio decidendi”.
Sobre o conceito de ratio decidendi, assim dispõem Thamay, Garcia Junior e Frota Junior (2021, p. 159):
Analisando a dimensão objetiva dos precedentes, verifica-se que a única parte vinculante na decisão de um caso pretérito é, efetivamente, a sua ratio decidendi (ou holding), assim entendida como as razões determinantes de questões jurídicas debatidas e decididas no processo, ainda que não sejam suficientes e necessárias para determinar a decisão. Em contrapartida, realizando uma conceituação negativa, tudo aquilo que não constituir a ratio decidendi será considerado como obiter dictum e, portanto, de força não vinculante.
(...)
Se, por um lado, entender-se que precedentes é sinônimo de decisão judicial, gera ao julgador a necessidade de realizar a exata similitude e coincidência de todos os casos concretos, de forma irrestrita, com todas as decisões anteriormente proferidas. O que, salienta-se, seria de impossível efetivação. Na verdade, a principal imposição para a utilização dos precedentes passa, exclusivamente, pelos julgadores, no sentido de realizar o exato cotejo fático entre o caso concreto em análise e o julgamento paradigma, extraindo dele a norma geral (ratio decidendi) que poderá ou não incidir na s
Contrariando uma possível primeira impressão sobre o conceito, a identificação da ratio decidendi está longe de ser tarefa simples. Neves (2016, p. 1313) menciona estudo que enumera até 74 formas distintas de se chegar a ela. Entre os métodos consagrados, Didier, Braga e Oliveira (2016, p. 462-463) destacam o “teste de Wambaugh”, que inverte a razão de decidir para verificar sua essencialidade ao resultado, e o “método de Goodhart”, que foca nos fatos relevantes considerados pelo julgador. Embora úteis, ambos apresentam limitações, sendo recomendável sua utilização conjunta, conforme apontam os autores em menção a Rupert Cross.
A essa dificuldade, relaciona-se a sistemática adotada nos julgamentos. Vale e Pereira (2023, p. 122) expõem que há duas técnicas tradicionais: seriatim e per curiam. Enquanto a primeira externaliza um compilado de manifestações individuais no acórdão, a segunda traz um modelo no qual o pronunciamento do Tribunal é externado num único texto.
No Brasil, adota-se a técnica seriatim, que, se por um lado, está associada a um modelo de julgamento mais transparente, na medida em que revela o posicionamento de cada um dos julgadores, por outro permite que haja casos nos quais os julgadores convirjam quanto ao dispositivo, mas nem sempre quanto à fundamentação, o que gera dúvida quanto ao modelo adotado para a identificação da ratio decidendi.
Um exemplo marcante é a ADI 1.969/DF, em que, embora todos os ministros tenham declarado inconstitucional, por unanimidade, um decreto do Distrito Federal que restringia o direito de reunião na Praça dos Três Poderes, cada qual o fez por fundamentos distintos: desde a ausência de reserva legal até juízos de ponderação entre direitos fundamentais. Como observam Vojdovic, Machado e Cardoso (2009), tal diversidade inviabiliza a formação de uma ratio decidendi institucional, permitindo apenas identificar linhas de raciocínio individuais:
Note-se, dessa maneira, a dificuldade em se determinar, ainda que em um caso de decisão unânime, qual foi a decisão tomada pelo Tribunal como um todo. Ainda que se entenda que o voto do ministro relator, que guia a tomada de decisão dos demais ministros, tem um peso maior na fundamentação do caso, podendo-se entender que a partir dele seria possível extrair a ratio decidendi, não há como deixar de considerar o fato de que fundamentações conflitantes com o voto do ministro relator relativizam a adequação dessa ratio decidendi ao que foi efetivamente decidido pelo Tribunal. A unanimidade se dá tão-somente com relação ao dispositivo da decisão, o elemento questionado por meio da ADI, mas não se reflete no momento da justificação dessa solução dada pelo Tribunal.
Uma consequência dessa peculiaridade da decisão do STF, que decorre do modo como se dá a tomada de decisão, é o alto grau de personalismo dotado aos seus julgamentos. Poder-se-ia falar em ratio do ministro, em uma linha de pensamento desenvolvida por ele e, inclusive, em aplicação de precedentes individuais. Não há, especialmente nos casos que envolvem aplicação de princípios - como ficou explícito no caso analisado -, a possibilidade de extração de uma ratio coletiva, institucional.
A preocupação com uniformização da ratio decidendi nos julgamentos motivou a inclusão do art. 104-A, §2º, no Regimento Interno do Superior Tribunal de Justiça, por meio da Emenda Regimental n. 24/20165, que traz a previsão de um incidente destinado à definição dos fundamentos determinantes de um julgado. Sua adoção se daria nos casos em que, mesmo com votos convergentes, os julgadores tenham adotado fundamentos diversos para a solução da causa. Conquanto seja uma iniciativa de grande valia, não há registro de previsões similares no âmbito dos outros tribunais superiores.
Essa medida, adotada pelo Superior Tribunal de Justiça, é salutar e sua expansão para os demais tribunais mediante lei certamente permitiria que tivéssemos um maior aproveitamento da questão jurídica subjacente, consoante a proposta de Vale6. Afinal, combina a transparência conferida pela técnica seriatim com a maior segurança quanto às razões determinantes trazida pelo modelo per curiam, extraindo-se o melhor de cada uma delas.
4. Superação e distinção (overruling e distinguishing)
A cultura de precedentes vinculantes atrai a análise dos fenômenos da superação e da distinção, já que a sua incidência pode ser razão de não aplicação do precedente ao caso concreto.
Pondera Neves (2016, p. 1316) que, com a adoção da teoria dos precedentes judiciais obrigatórios, esperava-se também a positivação desses fenômenos. No entanto, somente a superação teve disciplina legal nos §§2º e 4º do art. 927. do Código de Processo Civil, os quais versam sobre a ampla participação popular na alteração de teses jurídicas e sobre a possibilidade de modulação de eventual novo entendimento com base em razões de segurança jurídica.
Sobre a superação (overruling), assim esclarecem Thamay, Garcia Junior e Frota Junior (2021, p. 253):
O overruling pode ainda ser classificado como expresso ou implícito. Na superação expressa, o tribunal que a realiza leva em conta o precedente anterior e explicita as razões pelas quais considera necessário conferir um novo regramento à questão, abandonando o parâmetro decisório existente. Essa forma de proceder atende à chamada regra de ouro quanto a uma judicial departure: “sempre que um juiz ou tribunal for se afastar de seu próprio precedente, este deve ser levado em consideração, de modo que a questão do afastamento do precedente judicial seja expressamente tematizada”. Na superação implícita ocorre uma non-overt departure, pois há o afastamento do precedente sem que haja manifestação do tribunal sobre a regra anterior, tal como ocorre na “[...] ab-rogação indireta de uma lei”. São as decisões per incuriam, assim consideradas aquelas cujo resultado teria sido diverso caso o precedente aplicável tivesse sido considerado e seguido”
Chama especial atenção para esta análise a mencionada superação implícita, na medida em que envolve uma maior carga interpretativa e, por consequência, pode ser objeto de maiores problemas. Nesse sentido, o Enunciado 324 do Fórum Permanente de Processualistas Civis (FPPC)7 dispõe que lei nova que seja incompatível com o precedente judicial é fator ensejador da sua não aplicação, desde que não se trate de hipótese de inconstitucionalidade da norma que operou a superação.
De fato, sendo os precedentes destinados a orientar à interpretação do legislador, não faria sentido que eles representassem a petrificação da atividade legislativa. No entanto, a falta de seu cancelamento ou revisão formal diante de alterações e a sua compatibilidade perante a nova legislação ou mutações de entendimento são fatores que levantam questionamentos sobre a sua atualidade.
Nessa linha, destaque-se o Tema Repetitivo n. 706, que dispõe que “a decisão que comina astreintes não preclui, não fazendo tampouco coisa julgada”. O fato de ter sido editado anteriormente ao Código de Processo Civil de 2015 traz dúvidas sobre a sua aplicação, já que este consagrou, em seu art. 537, §1º, previsão específica sobre a possibilidade de modificação ou periodicidade da multa, mas com limitação expressa e literal à multa vincenda.
Interpretando o tema à luz da nova legislação, o Superior Tribunal de Justiça trouxe o seguinte entendimento no julgado EARESP n. 1.766.665/RS: “incide a preclusão consumativa sobre o montante acumulado da multa cominatória, de forma que, já tendo havido modificação, não é possível nova alteração, preservando-se as situações já consolidadas”
Essa interpretação conduz a um meio termo entre o precedente vinculante e à disposição literal do Código de Processo Civil, cujo destaque pode levar à compreensão de que o precedente sofreu mutação em seu entendimento. Nada obstante a relevância dessas discussões, o precedente segue sendo aplicado na jurisprudência sob a técnica da subsunção8, conduzindo a um cenário de insegurança jurídica, que é justamente o que se quis evitar com a sua edição.
O fenômeno da distinção, por sua vez, envolve a não aplicação do precedente por divergência da situação fática que conduziu ao seu resultado. Thamay, Garcia Junior e Frota Junior (2021, p. 245) dizem que, conquanto a aplicação do precedente envolva o cotejo de cenários fáticos, a sua aplicação não exige identidade absoluta, mas sim identidade essencial.
Neves (2016, p. 1317) relata que, mesmo em países que já possuem a cultura do “common law”, ainda há juízes que deixam de aplicar os precedentes sob a alegação de distinção, por considerá-los injustos ou equivocados. Para além da constatação de pura atecnia, porém, divergências interpretativas importantes podem surgir na caracterização da distinção.
Nesse sentido, ilustramos com o ocorrido no bojo da ADI 2135/DF, na qual se apreciava constitucionalidade formal de parte da Emenda Constitucional n. 19/1998, que tinha por escopo o fim do regime jurídico único para os servidores públicos. Após anos de litigiosidade, a alteração foi considerada constitucional, de modo a permitir a coexistência entre o regime estatutário e o celetista no âmbito de uma mesma administração.
O Ministro Flávio Dino, contudo, propôs a modulação de efeitos do julgado, no sentido de vedar a transmutação de regime em razão de possíveis tumultos previdenciários relacionados à compensação entre regimes de previdência próprio e geral. Assim justificou em seu voto:
Eu faço apenas uma ressalva ao aderir ao voto divergente do eminente Ministro Gilmar. Considero ser fundamental, Presidente Barroso, deixar claro que é vedada a mudança de regime dos atuais servidores. Explico o motivo: a questão previdenciária. Nós temos a Lei nº 8.112/1990, já a essas alturas com 34 anos. E aconteceu que a adesão dos servidores celetistas do regime geral para o regime próprio data desse momento e, claro, dos anos subsequentes. Ora, se permitíssemos a alteração unilateral dos vínculos estatutários hoje existentes, estaríamos permitindo que a adesão compulsória ao regime próprio se transformasse, repentinamente, numa inserção no regime geral de Previdência Social. Isso geraria, de um lado, um imenso tumulto administrativo. Sabemos bem as fragilidades, hoje, terríveis que acometem o INSS. Teria de haver uma espécie de compensação de arrecadações que foram dos regimes próprios para o regime geral, quando nós sabemos que nem o contrário foi concluído (...). Nessa função nobre da Suprema Corte de garantir estabilidade às relações jurídicas, eu acrescentaria - e, claro, sempre com a possível aquiescência do eminente Decano e Relator - essa ressalva. Ou seja, nós acolhemos a constitucionalidade do que o Congresso fez, porém fazemos essa modulação - chamemos assim - de que é vedada a mudança de regime dos atuais servidores para não impactar na Previdência9.
Com base nessas razões, a proposta de modulação de efeitos foi acolhida pelo plenário do Supremo Tribunal Federal, tendo sido o dispositivo redigido desta forma:
Decisão: O Tribunal, por maioria, julgou improcedente o pedido formulado na ação direta e, tendo em vista o largo lapso temporal desde o deferimento da medida cautelar nestes autos, atribuiu eficácia ex nunc à presente decisão, esclarecendo, ainda, ser vedada a transmudação de regime dos atuais servidores, como medida de evitar tumultos administrativos e previdenciários. Tudo nos termos do voto do Ministro Gilmar Mendes (Redator para o acórdão), vencidos os Ministros Cármen Lúcia (Relatora), Edson Fachin e Luiz Fux. Presidência do Ministro Luís Roberto Barroso. Plenário, 6.11.2024.
Observe-se, entretanto, que o dispositivo do acórdão foi além da razão que o motivou. A razão para a modulação de efeitos havia sido de ordem consequencialista: a migração de servidores do regime estatutário, vinculados a regimes de previdência próprios, para o regime celetista, vinculado ao regime geral de previdência, poderia comprometer a estabilidade financeira deste último, devido às dificuldades administrativas relacionadas à compensação previdenciária entre os regimes.
O caso, porém, não considerou a existência de entes públicos, notadamente municípios, que somente possuem empregados públicos celetistas e que possam vir a querer migrar ao regime estatutário. Sendo expressamente vedada a criação de novos regimes próprios de previdência (art. 40, §22º, da CF/8810) tal razão de decidir não teria aderência à hipótese, conquanto a redação da parte dispositiva do acórdão tenha se dado de forma genérica. Seria esse dispositivo vinculante a tais municípios estando o dispositivo desassociado da razão de decidir? À luz de todo o exposto, entendemos que não.
De todo modo, a análise dos fenômenos de distinção e superação, quando esta última ocorre de forma implícita, será verificável quando da sua aplicação a outros casos concretos. Como novas e relevantes divergências podem surgir daí, pensamos ser salutar a criação de um procedimento específico que, a partir de um caso concreto, permita a revisão dos limites dos precedentes em âmbito concentrado à luz da ocorrência desses fenômenos.