Resumo: A coerência entre as palavras e atos é a pedra de toque do homem de bem. O reto proceder é que o acredita como varão probo. Em certas conjunturas, no entanto, por amor da dignidade mesma da inteligência, ser-lhe-á mister (não só lícito) mudar de parecer, como praticam os espíritos verdadeiramente superiores. (Breves considerações a respeito do voto que proferiu o Ministro Luiz Fux, do STF, no julgamento da Ação Penal nº 2668-DF, movida contra os réus da denominada “trama golpista”).
Sumário: 1. Características peculiares do voto. 2. Força dialética da fundamentação do voto. 3. Preliminares: competência, contraditório e ampla defesa. 4. Atos preparatórios e tentativa: distinção e prova. 5. Alegada incoerência do voto singular. 6. Conclusão.
1. Características peculiares do voto.
No julgamento da Ação Penal nº 2668-DF, instaurada para apurar os fatos ocorridos na capital da República no dia 8 de janeiro de 2023, provocou o voto do Ministro Luiz Fux, nos que lhe ouviram a leitura, as mais fortes e diversas reações. Ninguém lhe ficou indiferente: alguns o receberam com assombro e louvor; outros, com desdém e ironia; todos porém se surpreenderam!
As razões que determinaram esses múltiplos e encontrados sentimentos revelaram-se, em toda a luz, nos seguintes pontos: empregou Sua Excelência, na elaboração do voto, estilo e técnica mui próprios, não só originais; nos argumentos, notável força dialética, roborando-os com a lição de graves doutrinadores da Ciência Penal; ao usar da palavra, preocupou-se em fundamentar bem seu voto, ainda que isto lhe exigisse larga extensão de tempo.
É fato notório que, ao decidir a sorte do réu que se apresenta à barra da Justiça, acusado de ter incorrido em crime, o juiz verificará primeiro, em exame detido e curioso dos autos, se a conduta que lhe imputa o órgão acusatório corresponde sem falta ao tipo penal descrito na lei.1 Isto ele somente alcançará após análise de sobremão da prova produzida sob a égide dos princípios do contraditório processual e da ampla defesa (art. 5º, nº LV, da Const. Fed.). Não lhe depara o sistema judiciário do País outro meio de perquirir a verdade real, alma e escopo de todo processo.
Entre os dogmas do Direito Penal Positivo inscreve-se o da adequação típica: ninguém será punido, sem se prove, pelas vias legais e acima de toda a dúvida razoável — ônus que compete à Acusação —, que cometeu infração penal. É que, ensina Damásio E. de Jesus, “somente o fato típico , i . e ., o fato que se amolda ao conjunto de elementos descritivos do crime contido na lei, é penalmente relevante”.2
Ora, ao analisar as questões jurídicas (assim as pertinentes às preliminares suscitadas pela Defesa como as que respeitavam ao mérito da causa), o eminente Ministro Luiz Fux deliberou consigo trazer ao terreiro da controvérsia, em lição de raro primor, as noções fundamentais do Direito Penal aplicáveis às espécies.
Fê-lo com observância do ditame da retórica tradicional, que aconselha a quem se propõe discorrer de um assunto dê antes o conceito e a definição dos termos que lhe constituem o objeto.
Mas, aquilo que deveras o orientava e lhe exigia o concurso da inteligência e da razão ao proferir o voto, declarou que era o dever legal, a que todo juiz estava sujeito, de fundamentar sua decisão. Fundamentar não é outra coisa que dar o juiz as razões ou motivos de seu convencimento, visto constituem a alma da sentença (“anima et quasi nervus”). Não maravilha, pois, que a própria Constituição da República preceituasse que todas as decisões, “sob pena de nulidade”, fossem fundamentadas (art. 93, nº IX).
Entrando em matéria, Sua Excelência escusou-se perante a majestosa assembleia de doutos (e semidoutos), alegando que se estenderia por força na apreciação do caso, pois que a tanto o obrigara o voto do eminente Ministro-Relator Alexandre de Moraes, que considerou profundo e brilhante. (Era sempre uma glória poder fazer justiça ao adversário!). Em seguida, pôs-se a desarticular, no intento de refutá-los, os argumentos a que se abordoara o voto do nobre Ministro-Relator.
Foi assim que Sua Excelência, não perdoando às circunstâncias de tempo (que, sem sofreguidão, escoava por invisível ampulheta) nem ao ingente esforço físico, percorreu — “mirabile dictu”! —, durante 12 horas, todos os estádios da ação penal encetada contra os réus do vulgarmente denominado “núcleo crucial”, acusados de tramar contra o Estado Democrático de Direito.
Numa palavra: não passou o Ministro Luiz Fux pelos autos como gato por brasas; ao revés, procedeu a percuciente exame da prova neles contida e, afinal, a cada um dos réus dispensou aquela que, a seu aviso, era a melhor justiça.
2. Força dialética da fundamentação do voto.
Alegar e não provar o alegado, tudo é um, reza conhecido brocardo jurídico.3 A essa conta — e porque na prova (qual farol a iluminar o juiz na busca da verdade real) é que se baseia toda decisão —, nada mais curial que procurasse o digno Ministro extrair dos elementos acumulados nos autos do processo as razões de seu convencimento. Como quem se habituara, no exercício da magistratura por quatro décadas, a catar estrita obediência às regras de seu grave e árduo ofício, não pôde menos de repetir aquilo que a ninguém era já permitido ignorar: O que não está nos autos não está no mundo. 4
Para conferir a seu voto qualidade legítima, enriqueceu-o com a energia, cautela e escrúpulo que a literatura jurídica exige somente das decisões definitivas:
“(…) a sentença tem a feição de um silogismo , constituindo a premissa maior a regra de Direito, a premissa menor a questão concreta, isto é, o fato com as suas circunstâncias, e a conclusão a aplicação de norma jurídica ao caso concreto”.5
Convicto de que ainda o pior facínora não podia ser condenado sem prova plena e cabal de sua culpabilidade, diligenciou Sua Excelência aferir todo o material probatório com que se autorizara o voto do eminente Ministro-Relator. Em remate, considerando precária e coxa a prova (que é a voz dos autos), não trepidou em julgar improcedente a ação penal, por indemonstrados os artigos da acusação.
Numa palavra: os fatos imputados aos réus — associação criminosa armada (art. 288, parág. único); abolição do Estado Democrático de Direito (art. 359-9); golpe de Estado (art. 359-M); dano qualificado (art. 163, parág. único, ns. I, II e IV), todos do Código Penal, e deterioração de patrimônio tombado (art. 62, nº I, da Lei nº 9.605/98: Lei do Meio Ambiente) —, julgou-os Sua Excelência inaptos para justificar a edição de decreto condenatório, ou por faltar-lhes tipicidade penal, ou por insuficiência de prova.
Pondo a mira em emprestar ao seu voto a força e o relevo próprios dos documentos categóricos e insofismáveis, secundou-o com oportunas lições de penalistas de prol e inúmeros precedentes jurisprudenciais do Supremo Tribunal Federal.
3. Preliminares: competência contraditório e ampla defesa
No âmbito das questões prejudiciais (ou preliminares) levantadas pelos estrênuos patronos dos réus, acolheu de boa sombra as que entendiam com a competência e com os princípios do contraditório e da ampla defesa (art. 5º, nº LV, da Const. Fed.).
À alegação, feita pela Defesa, de incompetência da autoridade judicial para conhecer e julgar da causa, deu-lhe guarida, forte na antiga jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, de que citou vários arestos. (De alguns, cortesmente, não lhes declinou, muito de estudo e “ad cautelam”, o nome do relator, não parecesse que o censurava por ter eventualmente incorrido em contradição no julgamento de casos análogos).
Neste particular, irá bem seguro o que se ativer à lição de Damásio E. de Jesus:
“À luz da CF de 1988, afigura-se inconstitucional a outorga de foro especial a ex-ocupante de cargo ou função pública”
(Código de Processo Penal Anotado, 23a. ed., p. 111; Editora Forense).
Passos avante, escreveu o acatado processualista:
“A prerrogativa do foro, afirmou o Min. Carlos Velloso por ocasião do julgamento — do Inq. nº 687 —, pressupõe o exercício do cargo ou do mandato, razão pela qual o enunciado, ampliando o privilégio, não condizia com o regime democrático. Para o Plenário, a prerrogativa é funcional e não pessoal. Assim, terminado o exercício do cargo ou do mandato, cessa também a competência funcional”
( Idem , ibidem ).
Noção era esta que, com o traço da mais polida evidência, impunha-se naturalmente ao espírito do julgador. Ao apadrinhar-se com ela, portanto, o autor do voto solitário nada desmereceu, teve antes por si o influxo de excelente doutrina e de veneranda jurisprudência do Pretório Magno.
Outro tanto em relação à preliminar de violação do direito de defesa, que os réus agitaram com desconhecida bravura, sustentando não lhes ter sido possível — à conta da nímia exiguidade do prazo processual — examinar (e nem sequer conhecer em sua inteireza) a aluvião de provas entranhadas nos autos da ação penal, a instâncias da Acusação.
Também aqui o eminente Ministro Luiz Fux achou razão aos réus, satisfazendo-lhes a pretensão. Em consequência, fulminou com sanção de nulidade o processo intentado pela Procuradoria-Geral da República. E contra esse brioso teor de proceder não há que se diga, pois que em harmonia com as prescrições da ordem jurídica universal.
Vem de molde para o caso dos autos o que alhures foi escrito:6
Efeito grande do progresso cultural dos povos, o direito de defesa constitui, de presente, garantia impostergável do indivíduo.
Nossa Carta Magna incluiu-o expressamente em suas primeiras disposições.7 Isto mesmo fizera constar a ONU, em 6.12.48, no art. 11. da Declaração Universal dos Direitos do Homem.
É a defesa, portanto, direito que o Estado democrático deve assegurar, sem exceção, aos acusados, com o timbre de regra processual inviolável.
Não basta, porém, que o acusado tenha defesa; é necessário que a tenha em sua plenitude, porque “só merece o nome de defesa a que for livre e completa”. 8
Aquele que a tomou a seu cargo, ainda que venha a exceder-se por palavras ou atos, sempre achará quem lhe perdoe as demasias. É que a defesa do réu, sem embargo de exercida alguma vez com despropositada veemência, não decai nunca do conceito favorável daqueles que bem compreendem o ideal da Advocacia: promover a restauração do direito violado.
Daqui por que o próprio legislador quis acautelar os interesses do advogado (do cliente, fora melhor dito) contra a má fortuna, desfazendo a nota de crime nas ofensas que irrogar em Juízo, na discussão da causa: não constituem injúria ou difamação;9 tampouco desacato.10
Tal imunidade, que outros profissionais desconhecem, têm-na os advogados (e disso fazem gala e cabedal), porque no final de contas são eles, segundo a frase memorável de Rui, “a voz dos direitos legais” 11 do acusado.
Da boa estimação que insignes autores fizeram do princípio processual da amplitude do direito de defesa depõem superiormente estes dois exemplares:
a) “Só uma luz nesta sombra, nesta treva, brilha intensa no seio dos autos. É a voz da defesa, a palavra candente do advogado, a sua lógica, a sua dedicação, o seu cabedal de estudo, de análise, de dialética. Onde for ausente a sua palavra, não haverá justiça, nem lei, nem liberdade, nem honra, nem vida” (Ribeiro da Costa, Ministro do Supremo Tribunal Federal; in Diário da Justiça da União, 12.12.63, p. 4.366).
b) O grande advogado Sobral Pinto, sustentando a tese de que todo homem tem direito à palavra de defesa, acentuou: “Deus, que tudo sabe e tudo pode, antes de proferir a sua sentença contra Caim, que acabava de derramar o sangue de seu irmão, quis ouvi-lo, como narra a Sagrada Escritura, dando aos homens, com este exemplo, a indicação irremovível de que o direito de defesa é, entre todos, o mais sagrado e inviolável” (Pedro Paulo Filho, A Revolução pela Palavra, 2a. ed., p. 168).
Tem foro de garantia constitucional e está germanado à plena defesa o princípio do contraditório, que deve dominar o processo penal. Consiste na igualdade ou equilíbrio entre os litigantes, com idênticas oportunidades para produzirem provas e contradizê-las. Tudo há de ser feito às claras, ouvindo-se ambas as partes, de acordo com a regra jurídica: “Audiatur et altera pars”. Ouça-se também a parte contrária.
4. Atos preparatórios e tentativa: distinção e prova
Na causa em debate, dois temas sobrelevaram de importância, por fundamentais na teoria da legalidade penal: atos preparatórios do crime e tentativa. Deles tratou “ex professo” o ilustre Ministro Luiz Fux.
Ao aplicar a norma penal aos fatos que lhe foram submetidos — e “uma norma é a sua interpretação”, escreveu Miguel Reale, um dos mais altos espíritos de que justamente se orgulha e envaidece a cultura jurídica do País12 —, adotou o Ministro, em seu minudente e apontado voto, critério escorreito e irrepreensível: nada afirmou, nenhum argumento aduziu, que o não abroquelasse no estalão dos melhores doutrinadores e em venerandos julgados do Supremo Tribunal Federal.
Assim, a distinção que fez entre atos preparatórios e executórios (objeto de viva disputa retórica durante o julgamento) foi a mesma que Damásio E. de Jesus, com rara fortuna e invejável forma didática, expôs em seu compêndio prestantíssimo:
“(…) só há começo de execução quando o sujeito inicia a realização da conduta descrita no núcleo do tipo, que é o verbo”
(Código Penal Anotado, 18a. ed., p. 50).
Na página seguinte rematou a lição:
“Cogita-se de tentativa somente a partir da realização de atos executórios do crime. Antes, havendo atos preparatórios, em regra, a conduta é atípica”.
Pela mesma toada falou E. Magalhães Noronha:
“(…) em nosso Código, não são puníveis os atos preparatórios (…). Para a nossa lei, só há tentativa quando há ato de execução”
(Direito Penal, 2a. ed., vol. I, p. 155).
Ao texto já expressivo antepusera convincente justificativa:
“O que se passa no foro íntimo de uma pessoa não é dos domínios do Direito Penal. Persiste ainda hoje a máxima de Ulpiano: Cogitationis poenam nemo patitur . Ou, como falam os italianos: Pensiero non paga gabella (o pensamento não paga imposto ou direito). Em intenção todos podem cometer crimes”
( Idem , ibidem , p. 154).
Após miúda análise do processo, estigmatizou com o ferrete de fracas e precárias as provas nele contidas quanto a alguns réus, cuja absolvição — por não haver prova suficiente para a condenação — teve pelo único desfecho compatível com a realização de justiça; isto mesmo determina a lei se pratique sempre, nos casos em que tenha sido relegada a miseranda orfandade a pretensão punitiva estatal.
Com efeito, dúvida, em matéria de responsabilidade criminal, vale o mesmo que falta de prova para a condenação do réu, ainda que de sombria nomeada nas expansões da delinquência. Donde o prolóquio sublime, inscrito nos brasões da Justiça Criminal: “In dubio pro reo”.
Portanto, ao dispensar absolvição à maioria dos acusados, o Ministro Luiz Fux não se desgarrou do ideal de justiça preconizado pelos luminares do Direito, como Nélson Hungria, autor do Código Penal e seu principal exegeta, além de ministro respeitabilíssimo do Supremo Tribunal Federal:
“A verossimilhança , por maior que seja, não é jamais a verdade ou a certeza , e somente esta autoriza uma sentença condenatória. Condenar um possível delinquente é condenar um possível inocente”
(Comentários ao Código Penal, 1981, vol. V, p. 65; Editora Forense).
Por essa mesma craveira de sabedoria, retidão e prudência nossas cortes judiciárias mediram sempre suas decisões:
“Não pode haver condenação sem prova plena do crime e de sua autoria. Indícios, ainda que veementes, desautorizam-na”
(Rev. Tribs., vol. 181, p. 89).
“No processo criminal, máxime para condenar, tudo deve ser claro como a luz, certo como a evidência, positivo como qualquer expressão algébrica”
(Rev. Tribs., vol. 619, p. 267).
“Sob pena de cometer possível erro judiciário, não pode o Juiz Criminal proferir condenação sem certeza total da autoria e da culpabilidade”
(JTACrSP, vol. 54, p. 190).
5. Alegada incoerência do voto singular
O voto do Ministro Luiz Fux, conquanto obra de lúcida inteligência e alto senso judicante, não ficou incólume aos pruridos da crítica demolidora, que, em tom escarninho, averbara-o de incoerente, por haver-se desabraçado do entendimento que adotara em julgamento anterior sobre os mesmos fatos (ocorridos em 8 de janeiro de 2023).
Há que tomar em termos hábeis esse proceder moral de Sua Excelência. Ele próprio o adiantou, sem rodeios nem ambages, que, após análise acurada dos fatos (objeto do processo-crime), neles refletiu maduramente e, por ter em muito a honestidade intelectual, pareceu-lhe bem mudar de opinião jurídica. Em assim o fazendo — e aqui bate o ponto —, não incorreu em ignomínia; não caiu tampouco em desgraça; ao contrário, cresceu em crédito de sensato e justo, confirmando aquilo da retrilhada máxima: “Sapientis est mutare consilium”. É próprio do sábio mudar de conselho ou parecer, sobretudo quando se opera tal mudança para melhor.
Isto de perseverar alguém no erro, podendo emendá-lo, não será ato de consciência reta e razão esclarecida, mas obstinação chapada ou teimosia de espírito; se magistrado, haverá também graves danos para os interesses da justiça.
Faz ao intento a magnânima confissão de Carlos Maximiliano, escritor de subido quilate e um dos mais fúlgidos ornamentos do Supremo Tribunal Federal:
“Não trepidei em mudar de voto, pública e declaradamente, toda vez que novos argumentos ou provas concludentes me convenceram do desacerto do veredictum anterior: acima do melindre pessoal de cada um está a sacrossanta causa da Justiça”
(Hermenêutica e Aplicação do Direito, 19a. ed., p. 308; Editora Forense).
Acorde com esse juízo é o de Orosimbo Nonato, figura de escol de nossa Mais Alta Corte de Justiça:
“Todos os homens erramos. Ninguém possui a pedra lídia da Verdade. (…) Ao juiz, essa confissão se torna penosa não apenas por afeição paternal que dedicamos aos partos de nosso entendimento , como dizia frei Luís de Sousa, senão ainda pelo reconhecimento dos grandes males suscitados pelas oscilações de uma jurisprudência voltária e flexível, matriz de inseguranças perturbadoras do comércio jurídico e das relações do consórcio civil.
Mas, a verdadeira coerência é a moral, e tributo constante e infalível só é devido à verdade que o juiz julga identificar em face de novos estudos retificadores de erros passados. Se a consciência dessa situação se lhe impõe com as cores da evidência, todas as demais considerações se dissipam e evaporam: confessará ele o engano e decidirá de modo diferente em obséquio à verdade.
Como dizia Cícero, judicis est semper in causis verum sequi ” 13
( in Revista Forense, vol. 177, p. 143).
Isto mesmo sentiram autores da primeira esfera:
a) “No retroceder de um caminho errado, apenas se reconhece tal, não há deslustre: há, pelo contrário, muita honra” (Antônio Feliciano de Castilho, Obras Completas, 1909, vol. LXV, t. II, p. 104).
b) “Há erros que mais crédito trazem ao emendar-se do que desdouro ao cometer-se (…)” (Manuel Bernardes, Nova Floresta, 1708, t. II, p. 206).
c) “(…) eu não me envergonho de corrigir e mudar de opinião porque não me envergonho de raciocinar e aprender” (Alexandre Herculano; apud Artur A. Torres, Questões Filológicas, p. 83).
À derradeira não sei resistir ao prazer de trasladar aqui estes enérgicos testemunhos de consciência, que, para serem bem recebidos e venerados, bastará se declare o nome de seu autor: Rui Barbosa. Têm esta substância:
I. “Felizes os que variam da ignorância para a ciência, do erro para a verdade. Afortunado o que, pecando um dia contra a verdade, ou contra a justiça, acorda, a tempo, do seu engano, e se retrata ainda utilmente do seu desvio. Benditas as mudanças de opinião, quando se operam neste sentido. Elas não abalam a consideração pública a quem a merecer. Antes recomendam à estima, ao respeito e à confiança de seus semelhantes o homem que não se desdoure de as confessar, e sem rubor pratique a nobre ação de se desdizer abertamente, pondo a consciência acima do interesse, o dever acima da vaidade, antes que o desacerto, circulando abonado com o prestígio de um nome autorizado, comece a produzir consequências malfazejas” (Obras Completas, vol. XLV, t. IV, p. 213).
II. “Só a ignorância ou a imbecilidade se não contradizem; porque não são capazes de pensar. Só a vulgaridade e a esterilidade não variam, porque são a eterna repetição de si mesmas. Só os sábios baratos e os néscios caros podem ter o curso das suas ideias igual e uniforme como os livros de uma casa de comércio, porque nunca escreveram nada de seu, nem conceberam nada novo.
A sinceridade, a razão, o trabalho, o saber não cessam de mudar; não há outra maneira humana de acertar, e produzir. Varia a fé; varia a ciência; varia a lei; varia a justiça; varia a moral; varia a própria verdade; varia nos seus aspectos a criação mesma; tudo, salvo a intuição de Deus e a noção dos seus divinos mandamentos, tudo varia. Só não variam o obdurado, ou o fóssil, o apedeuta, ou o néscio, o maníaco, ou o presumido” ( Ibidem , p. 203).
III. “Pois, se a toga do magistrado não se deslustra, retratando-se dos seus despachos e sentenças, antes se relustra, desdizendo-se do sentenciado ou resolvido, quando se lhe antolha claro o engano, em que laborava, ou a injustiça, que cometeu, não compreendemos que caiba no senso comum dar em rosto a um jurista, ou a um advogado com o repúdio de uma opinião outrora abraçada” ( Ibidem , p. 205).
6. Conclusão.
Ao versar matéria de tanta gravidade e aspereza, protesto que não levei o fito senão em sustentar que o voto divergente do Ministro Luiz Fux e sua inteligência acerca dos fatos de 8 de janeiro de 2023 não foram — como inculcou a crítica demasiado severa (ia quase a dizer mesquinha) — atos que mortificaram o senso comum e ofenderam a honra subjetiva do juiz; ao revés, nos julgamentos colegiados, “o voto vencido não é uma rebeldia, é uma semente” 14, um raio de luz sobre futuras decisões, porventura mais razoáveis e justas; a mudança de opinião, essa é, muita vez, se o impuser a lógica dos fatos, apanágio de consciência reta e de caráter sem jaça.
As razões aqui apontadas, fortalecidas com a lição da melhor doutrina e com a praxe forense (consolidada em infinitos arestos do Supremo Tribunal Federal), afiançam que Sua Excelência, em ambas as situações, houve-se em estrita conformidade com a usança pretoriana e com os elevados padrões da ordem moral.
Em texto profundo e eloquente, resumiu Hélio Tornaghi a essência da Magistratura:
“Na verdade, os homens dependem mais da justiça do que da lei; muito mais do juiz que do legislador. É utilíssimo para um povo ter boas leis; mas é melhor ainda ter bons juízes” (Curso de Direito Processual Penal, 9a. ed., vol. I, p. XIV; Editora Saraiva).
Pelo que, embora não deite a barra tão longe, que diga preferir errar com o Ministro Luiz Fux a acertar com os seus colegas, tenho para mim que, no denominado “julgamento da trama golpista”, demonstrou Sua Excelência possuir, em grau assinalado, as qualidades que distinguem o tipo acabado e perfeito do juiz: integridade, alto saber e fino senso de justiça.
Notas
É a aplicação imperativa do princípio da reserva legal (ou da anterioridade da lei), gravado no pórtico do Código Penal: “Não há crime sem lei anterior que o defina. Não há pena sem prévia cominação legal” (art. 1º).
Código Penal Anotado, 18a. ed., p. 333; Editora Saraiva.
“Allegare nihil, et allegatum non probare paria sunt”.
“Quod non est in actis non est in mundo”.
Inocêncio Rosa; apud De Plácido e Silva, Vocabulário Jurídico, 1973, vol. IV, p. 1.427; Editora Forense.
<https://jus.com.br/artigos/73456/o-sagrado-direito-de-defesa>︎
“(…) aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes” (art. 5º, nº LV, da Const. Fed.).
J. Soares de Melo, O Júri, 1941, p. 16.
Art. 142, nº I, do Código Penal.
Art. 7º, § 2º, da Lei nº 8.906, de 4.7.94 (Estatuto da Advocacia).
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Obras Completas de Rui Barbosa, vol. XXXVIII, t. II, p. 10.
Filosofia do Direito, 2016, p. 57; Editora Saraiva.
Nas causas, deve sempre o juiz ater-se à verdade (Dos Deveres, II, 14).
Eliézer Rosa, A Voz da Toga, 2a. ed., p. 50.