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Cargo público é uma prisão?

24/10/2025 às 15:18

Resumo:


  • É possível a flexibilização funcional na administração pública indireta, permitindo o aproveitamento de empregados públicos regidos pela CLT em áreas distintas de suas formações.

  • A mobilidade interna voluntária e compatível com a condição pessoal do empregado não configura desvio de função, mas sim uma gestão eficiente de recursos humanos, alinhada aos princípios constitucionais de eficiência e cooperação.

  • A legislação trabalhista permite ajustes consensuais nos contratos de trabalho, desde que respeitadas as normas protetivas, possibilitando a melhor alocação dos recursos humanos e a valorização profissional dos empregados públicos.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

Concurso não é sentença: como a rigidez funcional nos bancos públicos sabota a mobilidade e a vocação profissional do empregado concursado.

Este artigo analisa a possibilidade jurídica de flexibilização funcional na administração pública indireta, especialmente em empresas públicas e sociedades de economia mista como bancos públicos (BRB, CEF, BB etc.), para aproveitamento de empregados públicos regidos pela Consolidação das Leis do Trabalho – CLT, que possuem formação acadêmica e experiência profissional distinta da área em que ingressaram por concurso.

A partir de fundamentos constitucionais, dispositivos da CLT e jurisprudência do TST, defende-se que a mobilidade interna, quando voluntária e compatível com a condição pessoal do empregado, não configura desvio de função, mas sim gestão eficiente de recursos humanos. fundamentada no Princípio da Cooperação, consolidou o entendimento de que os princípios previstos no artigo 37 da Constituição Federal — expressão do constitucionalismo moderno — impõem a superação da tradicional dicotomia entre o direito público e o direito privado no âmbito da atuação dessas entidades.

Tais instituições frequentemente incorrem em um paradoxo silencioso: enquanto exigem excelência técnica e formação especializada em seus concursos, ignoram — ou até bloqueiam — o aproveitamento funcional de empregados que possuem múltiplas formações e experiências, ativos importantíssimos para uma empresa, seja pública ou privada.

A rigidez das normas internas, sob o pretexto de preservar a legalidade, acaba por converter o exercício do cargo público em uma espécie de cárcere funcional, no qual a vocação e a experiência dos profissionais são restringidas por descrições normativas que pouco ou nada contribuem para a eficiência administrativa. E justificam tal cenário pela alegação de que, embora sejam entidades públicas, as estatais são regidas por normas de direito privado — como a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) — ignorando-se, assim, o princípio da publicização, que coloca o cidadão como protagonista da gestão pública.

A propósito:

“(...) o aludido modelo pressupõe uma gama de institutos e princípios que ‘derrogaram grande parte dos postulados básicos do individualismo jurídico’ (DI PIETRO, 2013, p. 9), da autonomia privada, principalmente porque a Administração Pública não se iguala ao particular em razão da finalidade de interesse público a que está vinculada e pelo fato de atuar no exercício da função administrativa em nome do Estado (DI PIETRO, 2013, p. 20), recolocando-se no centro do direito privado o ser humano em desfavor do mero interesse econômico (FACCHINI, 2012)”.1

Considere o exemplo de um profissional da advocacia com sólida trajetória na área jurídica, reconhecido por sua atuação prática, autor de livro e diversos artigos jurídicos com experiência no magistério jurídico e ampla produção intelectual na área.

Motivado pela reputação institucional de um banco público consolidado no mercado e por legítimas aspirações profissionais e financeiras, decide prestar concurso público para um cargo técnico fora da área jurídica. Sua intenção, entrementes, é ser aproveitado na estrutura jurídica da instituição, valendo-se de sua formação especializada.

Após ser aprovado, ingressa na repartição e manifesta interesse em atuar no setor jurídico, área em que possui expertise. Contudo, seu pedido é indeferido com base em normativos internos, sob o singelo argumento de que isso configuraria desvio de função.

Tal negativa revela um formalismo excessivo, que ignora a compatibilidade funcional (formação e capacidade técnica), o interesse legítimo e voluntário do empregado e a eficiência administrativa que poderia ser alcançada com o aproveitamento de um ativo interno já disponível.

Com efeito, o artigo 37 da Constituição Federal estabelece os princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência. A gestão de pessoal deve buscar a melhor alocação dos recursos humanos, promovendo a eficiência administrativa e a valorização profissional.

Empregados públicos regidos pela CLT possuem contrato de trabalho que admite ajustes consensuais, desde que não contrariem normas protetivas. O artigo 456, parágrafo único da CLT, dispõe que o empregado se obriga a todo e qualquer serviço compatível com sua condição pessoal.

Tais disposições revelam uma ruptura com o paradigma da imobilidade funcional tradicionalmente associada aos cargos obtidos por concurso público, ao permitir que o empregado público possa exercer diferentes funções dentro da organização, desde que compatíveis com sua qualificação, e não apenas aquelas específicas para as quais foi originalmente aprovado. Veja-se que,

“(...) um exemplo recente dessa mudança de paradigma é a edição do marco regulatório das estatais (Lei nº 13.303/2016) no direito brasileiro. A lei revela a necessidade de impor uma gestão responsável e, ao mesmo tempo, uma maior flexibilidade de procedimentos, em que se busca atenuar a rigidez do regime jurídico de direito público, dando maior liberdade para que os agentes possam realizar contratações mais eficientes”.2

Retomando ao caso do empregado com múltiplas formações, a sua atuação em atividades jurídicas não representa desvio de função, mas representa o exercício legítimo de atribuições compatíveis com sua formação acadêmica e experiência. Mais que isso: uma importante força de trabalho para a instituição pública.

Nesse sentido, confira-se a jurisprudência do Tribunal Superior do Trabalho:

“AGRAVO EM AGRAVO DE INSTRUMENTO EM RECURSO DE REVISTA. ACÓRDÃO REGIONAL PUBLICADO NA VIGÊNCIA DA LEI Nº 13.467/2017. DESVIO DE FUNÇÃO. REEXAME DE FATOS E PROVAS. IMPOSSIBILIDADE. ÓBICE DA SÚMULA 126 DO TST. TRANSCENDÊNCIA NÃO RECONHECIDA.

1. O art. 456, parágrafo único, da CLT, dispõe que ‘à falta de prova ou inexistindo cláusula expressa a tal respeito, entender-se-á que o empregado se obrigou a todo e qualquer serviço compatível com a sua condição pessoal’.

2. Depreende-se do preceito legal que o exercício de atividades compatíveis com a condição pessoal do trabalhador não enseja o pagamento de acréscimo salarial por acúmulo de funções, uma vez que o salário já remunera todas as tarefas desempenhadas dentro da jornada de trabalho, exceto se houver estipulação contratual ou normativa em sentido contrário”3.

“RECURSO DE REVISTA - ACÚMULO DE FUNÇÃO - TÉCNICO EM INFORMÁTICA - RECARGA DE TONER EM CARTUCHO - SERVIÇO COMPATÍVEL COM O CARGO - LIVRE ESTIPULAÇÃO - JUS VARIANDI DO EMPREGADOR.

O art. 456, parágrafo único, da CLT preceitua que, inexistindo ressalva a respeito no contrato de trabalho, o empregado se obriga a qualquer serviço compatível com a sua condição pessoal, entendida como a sua qualificação e demais atributos físicos e intelectuais.

Além disso, o art. 444. da CLT estabelece que as relações contratuais de trabalho podem ser objeto de livre estipulação entre as partes, desde que observadas as disposições protetivas, as normas coletivas e as decisões das autoridades competentes.

Na situação, a atividade complementar desempenhada pelo autor (recarga de toner em cartuchos de impressora) está completa e intimamente relacionada com a função para a qual foi contratado (técnico em informática) e é absolutamente compatível com a sua condição física e intelectual. Logo, não houve acumulação ilícita de funções.

Recurso de revista conhecido e provido.”4

Assim, se o próprio empregado manifesta interesse voluntário em atuar em área compatível com sua formação, não há falar em desvio de função, mas sim em ajuste legítimo e racional de recursos humanos, ativo tão caro para uma instituição pública.

O concurso público garante o ingresso no serviço público, mas não a imobilidade funcional, o engessamento. Não se trata de uma prisão institucional, e sim de uma porta de entrada para o exercício de funções compatíveis com o interesse público e com a qualificação do profissional.

A Constituição Federal não veda a mobilidade interna de empregados públicos, desde que observados os requisitos legais — como a manutenção da jornada de trabalho, a preservação da remuneração e a integridade do vínculo empregatício.

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A resposta institucional no sentido de que “não há profissionais desta ou daquela carreira neste setor”, revela uma interpretação restritiva e burocrática, dissociada da inteligência e da lógica de aproveitamento racional de recursos humanos e valorização da qualificação técnica do servidor. Tal limitação beira as raias do absurdo e impede a inovação da gestão de pessoal.

Impedir que um empregado público com formação e ampla experiência jurídica atue em área compatível com sua qualificação — sob o argumento de que o concurso foi para outro setor — é negar à administração a chance de se beneficiar de um ativo humano altamente capacitado, sem qualquer violação ao ordenamento jurídico. É ignorar o espírito da Lei das Estatais. Veja-se que:

“(...) o novo marco regulatório visa inserir no controle das estatais novos elementos diretivos e condicionantes para uma verdadeira Administração Pública de Resultados (MOREIRA NETO, 2007, p. 168), com a especial proteção de novos bens jurídicos coletivos, o respeito ao direito fundamental à boa administração pública (FREITAS, 2014) e aos vetores hermenêuticos positivados nos artigos 3º, 170, 174, 192, 205, 218, 219 e 225 da Constituição Federal e na Agenda 2030 da ONU”.5

O aproveitamento funcional racional é uma forma de valorização profissional e otimização de recursos, especialmente quando nenhuma área do órgão ficará desfalcada, tendo em vista o número razoável de pessoal.

Ademais, como já foi dito, a natureza do vínculo regido pela CLT permite maior flexibilidade. É dizer: Empregados públicos regidos pela CLT têm contrato de trabalho, e não vínculo estatutário, no qual deve-se (ou pelo menos espera-se) que o servidor atue conforme o estatuto que rege a sua carreira.

O singelo argumento de que “então por que não prestou concurso para a área desejada?” revela uma visão que, a par de mesquinha, revela-se excessivamente formalista e desconectada da realidade estratégica que permeia as escolhas profissionais.

Cada indivíduo traça seu percurso conforme suas circunstâncias, oportunidades e objetivos legítimos — sejam eles financeiros, institucionais ou vocacionais.

A administração pública, por sua vez, não deve se prestar à manutenção de barreiras burocráticas inflexíveis, mas sim atuar como instrumento de realização dos interesses públicos, mas sempre atenta aos seus potenciais talentos internos, pautada pela eficiência e pela valorização dos seus quadros. Deveras,

“Essa perspectiva permite compreender as constantes mutações (MOREIRA NETO, 2007) do direito público e do direito privado, a inexistência de divisão rígida entre o direito público e o direito privado, além da mudança permanente dos paradigmas da publicização do direito privado e da privatização do direito público”.

Nesse contexto, se o empregado possui formação múltipla, experiência comprovada e manifesta interesse legítimo em atuar em área compatível com sua qualificação — sem pretensão de vantagem indevida ou alteração contratual — não há fundamento jurídico razoável para impedir sua atuação, notadamente se na instituição existe a área específica onde ele manifesta interesse em atuar.

O desvio de função é reconhecido quando o empregado é prejudicado por exercer função diversa sem a devida contraprestação, ou seja, a vedação ao desvio de função visa a proteger o empregado — não a administração. Afinal, o vínculo empregatício permanece íntegro, a remuneração será devida de toda forma, a jornada será devidamente cumprida e o aproveitamento funcional representará, antes de tudo, uma escolha racional e estratégica da própria administração.

Assim, a administração pública indireta precisa superar o formalismo excessivo e adotar uma postura mais racional, eficiente e comprometida com a valorização de seus quadros funcionais, para não continuar perdendo funcionários altamente qualificados que acabam abandonando a instituição.

O reconhecimento de talentos internos com formação multiprofissional como ativos estratégicos é essencial para a promoção de uma gestão pública moderna e orientada por resultados e focada no cliente, no indivíduo, na pessoa humana!

Em última análise, todos se beneficiam: a administração pública, o empregado público e, sobretudo, o usuário do serviço público.


Notas

  1. ZIMMER, Fabiano Nobre. Direito Privado Administrativo: da superação da dicotomia direito público vs. direito privado ao dever de cooperação. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 30, n. 8148, 22 out. 2025. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/110975/direito-privado-administrativo-da-superacao-da-dicotomia-direito-publico-vs-direito-privado-ao-dever-de-cooperacao>. Acesso em: 24 out. 2025.

  2. Zimmer (idem).

  3. Tribunal Superior do Trabalho. Agravo de Instrumento em Recurso de Revista. AIRR-0000460-56.2023.5.21.0006, 5ª Turma, Relatora Ministra Morgana de Almeida Richa, DEJT 09/05/2025. Disponível em: https://jurisprudencia.tst.jus.br/. Acesso em: 22/10/2025.

  4. Tribunal Superior do Trabalho. Recurso de Revista. RR-1172-59.2016.5.19.0002, 7ª Turma, Relator Ministro Luiz Philippe Vieira de Mello Filho, DEJT 06/09/2018. Disponível em: https://jurisprudencia.tst.jus.br/. Acesso em: 22/10/2025.

  5. Zimmer (idem).

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Sobre o autor
Leonis de Oliveira Queiroz

Advogado. Analista de TI. Socioeducador. Mestre em Regulação e Políticas Públicas (Universidade de Brasília - UNB). Pós-graduado em Direito Público e Privado. Graduado em Direito e em Segurança da Informação. Ex- Conselheiro do Conselho Penitenciário do Distrito Federal COPEN/DF. Ex-Servidor do Superior Tribunal de Justiça. Autor de livro, capítulo de livro e diversos artigos publicados em diferentes periódicos e revistas eletrônicas.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

QUEIROZ, Leonis Oliveira. Cargo público é uma prisão?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 30, n. 8150, 24 out. 2025. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/116072. Acesso em: 5 dez. 2025.

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