Súmula Vinculante n.º11 - "Só é lícito o uso de algemas em caso de resistência e de fundado receio de fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia, por parte do preso ou de terceiros, justificada a excepcionalidade por escrito sob pena de responsabilidade disciplinar civil e penal do agente ou da autoridade e de nulidade da prisão ou do ato processual a que se refere, sem prejuízo da responsabilidade civil do Estado".
A intensa polêmica surgida em torno da questão da utilização de algemas pela polícia revelou um conflito institucional entre a polícia federal e o Supremo Tribunal Federal, cujo último capítulo – a edição da súmula vinculante n.º 11 – provocou ainda mais perplexidade, sobretudo porque a última cena envolve a violação dos limites fixados pela Emenda Constitucional n.º 45 e a nossa corte constitucional.
Apesar de compreender que o eixo da questão deva ser estabelecido na desnecessidade da exposição de presos e não na supressão de algemas, o assunto deve ser visto de um outro ângulo, de inegável e grave importância constitucional.
É certo que a Emenda Constitucional n.º 45, do ano de 2004, conferiu constitucionalidade às súmulas vinculantes, por meio do seguinte texto:
Art. 103-A. O Supremo Tribunal Federal poderá, de ofício ou por provocação, mediante decisão de dois terços dos seus membros, após reiteradas decisões sobre matéria constitucional, aprovar súmula que, a partir de sua publicação na imprensa oficial, terá efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal, bem como proceder à sua revisão ou cancelamento, na forma estabelecida em lei
O texto condiciona a edição dessas súmulas vinculantes "após reiteradas decisões sobre matéria constitucional", justamente porque objetiva assegurar a prevalência do entendimento já pacificamente acatado no Tribunal, estabelecendo segurança para os jurisdicionados, como bem observa Osmar Mendes Paixão Côrtes: "Nada mais lógico. Se o tribunal busca dar à sociedade segurança jurídica, deve ter posição consolidada sobre o assunto, com a concordância da maioria dos seus integrantes". [01]
A fixação deste pressuposto lógico para a edição de súmulas vinculantes não só impede a transformação do vinculante em vacilante, mas também se justifica diante da necessidade de ampla e suficiente discussão da matéria, imprescindível para a obtenção de um resultado interpretativo dotado de notória carga normativa. A obrigatoriedade de reiteração de decisões pelo Supremo Tribunal Federal é lembrada na doutrina, dentre tantas lições:
Pois bem, se a súmula exprime o entendimento consolidado do STF, parece-nos óbvio que reiteradas decisões devem ser proferidas adotando um determinado entendimento para a matéria discutida. Assim, não basta que o STF tenha se manifestado uma única vez em um julgamento sobre a matéria constitucional, sendo exigida uma maior evolução da discussão a respeito daquela matéria de direito. Será ilegítima a súmula que for aprovada após uma única ou poucas decisões sobre a matéria constitucional. Como a súmula terá efeito vinculante, o mínimo que se exige é que o STF tenha a oportunidade de amadurecer o entendimento considerado o mais correto para a matéria de direito constitucional, e como o novo art. 103-A da CRFB não dispõe a cerca da quantidade de julgamentos que adotaram um determinado entendimento, necessária é a observância ao princípio da razoabilidade por parte dos Ministros do Supremo Tribunal, que certamente saberão aprovar súmulas apenas quando o requisito das reiteradas decisões estiver presente. [02]
Embora corretas as observações transcritas, a previsão sobre a razoabilidade por parte dos Ministros do Supremo Tribunal Federal, na oportunidade de edição dos enunciados, não se confirmou, o que não comprometeu estas lições, pois a análise perspectiva da doutrina foi – provavelmente – atingida pelos sortilégios do dia 13 de agosto, data da edição da súmula vinculante n.º 11 e de reconhecidas preocupações para os supersticiosos.
Isto porque o julgamento que viabilizou a edição da súmula vinculante n.º 11 foi exatamente o emitido pelo Pleno do STF no HC n.º 91.952-9/SP, julgado em 7/9/2008, oportunidade em que o Relator, Ministro Marco Aurélio, deixou claro que a matéria tratada naquele julgamento envolvia a influência que a exposição do preso algemado gerava no ânimo dos jurados, conforme se vê:
Este habeas está voltado a infirmar esse ato, no ponto em que pretendida a nulidade do verdicto popular em razão de o réu ter permanecido algemado durante todo o julgamento realizado pelo Tribunal do Júri. [03]
No conteúdo do voto, observa-se ainda menção ao julgamento do HC n.º 71.195-2/SP pela 2.ªTurma, da relatoria do Ministro Francisco Rezek, que também cuida da mesma situação, precisamente a influência da exposição do réu algemado na decisão dos jurados [04], além de um julgado do Superior Tribunal de Justiça [05] e outro do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo [06].
As decisões emitidas pelo STF nos HC.º 91.952-9/SP e HC n.º 71.195-2/SP guardam correspondência exclusivamente com a influência da exposição do réu algemado diante dos jurados, tanto que a reforma processual penal executada pela lei n.º 11.689/2008 deu nova redação ao art. 474, §3.º do Código de Processo Penal [07], superando, portanto, essa específica situação.
A discrepância de situações é confirmada ainda pelos inúmeros projetos de lei que tramitam no Congresso Nacional [08], objetivando a disciplina da utilização de algemas, debate que ainda persiste mesmo após a alteração promovida pela Lei n.º 11.689/2008, restrita aos procedimentos do tribunal do júri.
Obviamente, a compilação de julgamentos de outras cortes, seguindo uma mesma orientação, não pode fundamentar a edição de súmula vinculante pela singela razão de não constituir expressão do entendimento do Supremo Tribunal Federal.
O único julgamento em que o Supremo Tribunal Federal enfrentou a matéria da súmula vinculante n.º 11, exatamente a utilização de algemas fora do momento em que o réu está sendo julgado pelo Tribunal do Júri, foi no HC n.º 89.429/RO da 1.ª Turma, que teve como relatora a Ministra Carmen Lúcia, citado também pelo Ministro Marco Aurélio, conforme ementa abaixo:
HABEAS CORPUS. PENAL. USO DE ALGEMAS NO MOMENTO DA PRISÃO. AUSÊNCIA DE JUSTIFICATIVA EM FACE DA CONDUTA PASSIVA DO PACIENTE. CONSTRANGIMENTO ILEGAL. PRECEDENTES. 1. O uso legítimo de algemas não é arbitrário, sendo de natureza excepcional, a ser adotado nos casos e com as finalidades de impedir, prevenir ou dificultar a fuga ou reação indevida do preso, desde que haja fundada suspeita ou justificado receio de que tanto venha a ocorrer, e para evitar agressão do preso contra os próprios policiais, contra terceiros ou contra si mesmo. O emprego dessa medida tem como balizamento jurídico necessário os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade. Precedentes. 2. Habeas corpus concedido.
Durante o julgamento do HC n.º 89.429/RO, disse o Presidente da Turma e então decano do Supremo Tribunal Federal, Ministro Sepúlveda Pertence:
"Creio que é a primeira vez que o tribunal tem de enfrentar a questão do abuso das algemas que se tem tornado uma prática freqüente, destinada a dar colorido ao espetáculo da prisão"
Neste primeiro enfrentamento da matéria, os debates já tornaram evidentes as dificuldades e variabilidades do assunto, quando da intervenção do Ministro Carlos Britto, oportunidade em que a Ministra Carmen Lúcia pontuou que a utilização de algemas no transporte de presos era assunto da discricionariedade das autoridades policiais. Essas particularidades dão clara noção de que o assunto merece um debate mais prolongado e exaustivo, por meio de novos julgamentos do Supremo Tribunal Federal.
A súmula vinculante n.º 11 foi editada sem que a matéria fosse conhecida uma única vez pela composição plenária do Supremo Tribunal Federal, conforme a própria assertiva do Ministro Pertence, desatendendo pressuposto constitucional da emenda n.º 45/2004, vale dizer, as reiteradas decisões em um mesmo sentido.
As incontáveis reclamações que chegarão ao Supremo Tribunal Federal demonstrarão o equívoco desta súmula vinculante, que propõe transformar uma corte constitucional em verdadeiro juiz plantonista. A verificação da multiplicidade de situações tornará o seu texto persuasório e jamais vinculante, o que já seria esperado de uma súmula que não atende os seus requisitos constitucionais.
A edição da súmula vinculante n.º11 mostrou um nítido propósito avocatório do Supremo Tribunal Federal, executada em um momento de crise institucional entre a mais alta corte do país e a polícia federal [09], reafirmando que nas disputas institucionais perde a democracia, perde o cidadão, ignora-se a constituição.
O futuro definirá até quando o Supremo Tribunal Federal abraçará a idéia da súmula vinculante n.º 11, cujo destino deverá ser o seu cancelamento, nos termos da Lei n.º 11.417/2006.
Notas
- A experiência brasileira com a vinculação das decisões judiciais e a atual súmula vinculante. Direito Civil e processo. Estudos em homenagem ao professor Arruda Alvim. São Paulo: RT, 2007, p. 1389.
- NOGUEIRA, Gustavo Santana. Súmulas vinculantes: primeira análise. Reforma do Judiciário. Primeiras reflexões sobre a emenda constitucional n.º 45/2004. São Paulo: RT, 2005, p. 272.
- Excerto do voto do Ministro Marco Aurélio no HC n.º 91.952/SP
- Consta do relatório no voto do Ministro Rezek, reproduzindo parte do parecer da Procuradoria Geral da República: "A impetração, em primeiro lugar, insurge-se contra o indeferimento do protesto por novo júri e, em segundo lugar, questiona a validade do julgamento pelo fato de o réu ter permanecido algemado em plenário, o que teria influenciado negativamente o Conselho de Sentença".
- RHC 5.663-SP
- Apel. Crim. nº 74.542-3 (RT nº 643/285)
- "Não se permitirá o uso de algemas no acusado durante o período em que permanecer no plenário do júri, salvo se absolutamente necessário à ordem dos trabalhos, à segurança das testemunhas ou à garantia da integridade física dos presentes".
- É possível contabilizar na página da Câmara dos Deputados a tramitação de 12 projetos de lei sobre o assunto, dispostos na seguinte ordem cronológica: PL 3129/1961, PL 1918/2001, PL 2753/2000, PL 3287/2000, PL 4537/2001, PL 5494/2005, PL 5858/2005, PL 4/2007, PL 2527/2007, PL 3506/2008, PL 3746/2008 e PL 3785/2008.
- As imagens de uma reunião realizada no dia 15 de julho de 2008, com as presenças do Presidente da República, do Presidente do Supremo Tribunal Federal, do Ministro do Justiça e do Ministro da Defesa expuseram a gravidade da crise.